Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução

Este texto foi extraido da dissertação de mestrado Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino, que Anna Paula Soares Lemos defendeu perante o Departamento de Ciência da Literatura   da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , em 2007.

Por Anna Paula Soares Lemos

 

Romance da Pedra do Reino
“Os palhaços estão presentes em todos os circos. No entanto, suas funções e inserções alteram-se de acordo com o tipo de espetáculo” (1). Os circos médios e pequenos colocam o palhaço no centro da trama e, de acordo com o enredo, o palhaço adapta-se à personagem. Eram esses pequenos circos que, na década de 1930, passavam pela também pequena cidade de Taperoá, no sertão da Paraíba, onde o escritor paraibano Ariano Suassuna passou a infância e começou a construir todo o imaginário dual – popular-erudito – que retrata e transfigura em sua obra. 
 
O mundo é um circo e o mundo de meu teatro procura se aproximar dele: um mundo de sol e de poeira, como o que conheci em minha infância, com atores representando gente comum e, às vezes, representando atores, com cangaceiros, santos, poderosos, assassinos, ladrões, prostitutas, juízes, avarentos, luxuriosos, medíocres – enfim, um mundo de que não estejam ausentes nem mesmo os seres de vida mais humilde, as pastagens, o gado, as pedras, todo este conjunto de que o sertão, como qualquer terra do mundo, está povoado. (Suassuna, 2000. In O Percevejo, p. 110 e 111) 
 
Ao se referir à sua produção literária, Suassuna diz “o meu teatro”. Define-se ator e circense frustrado. “Eu tenho voz baixa, feia e rouca […] é por isso que eu escrevo para teatro, para botar os outros para falar por mim” (2). E escreveu mesmo a maioria de seus textos para teatro: em 1947, o então estudante de direito escreve o primeiro deles, Uma mulher vestida de sol, e daí por diante são mais 16 peças escritas (3). Mas não só por isso ele se resume teatral. A estrutura de seu romanceiro não foge à regra. Seus romances transbordam em teatro circense, que engloba inclusive o mundo do teatro grego e da commedia dell’arte, que por sua vez influenciam o Romanceiro popular do Nordeste (literatura de cordel), fio condutor de toda a obra do autor.
 
É por influência da cultura oral e de cima de um palco ou do centro de um picadeiro que ele sempre se expressa – por meio de suas aulas-espetáculo e de sua literatura – e o bibliotecário, editor de folhetos, astrólogo e memorialista Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, narrador-personagem de O Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, não é diferente. O tom circense aparece logo na primeira página do romance, lembrando os palhaços que chegam anunciando o espetáculo pelo megafone que reverbera pela cidade: 
 
Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta – Romance-enigmático de crime e sangue, no qual aparece o misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicações sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e Sinésio! Como seu pai foi morto por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram o velho Rei e raptaram o mais moço dos jovens Príncipes, sepultando-o numa Masmorra onde ele penou durante dois anos! Caçadas e expedições heroicas nas serras do Sertão! Aparições assombráticas e proféticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas Caatingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte! (Suassuna, 1971) 
 
Repara-se aí o tom tragicômico dessa obra que já se anuncia palco do que se propõe a trilogia ainda inacabada: A maravilhosa desventura de Quaderna, o decifrador e que continua com a História do rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da onça caetana e segue com O romance de Sinésio, o Alumioso, príncipe da bandeira do divino do sertão, em produção desde o fim da década de 1970 e que, segundo Suassuna, terá mais de oitocentas páginas. Vontade de Sherazade, de As mil e uma noites, como veremos mais adiante. “Muita fé em Deus”, diz Suassuna em entrevista (4). Religiosidade e vaidade que buscam a imortalidade do artista e do discurso.
 
O personagem-narrador Quaderna, do centro do picadeiro, medeia, qual palhaço em função de mestre de pista, cada dualidade, cada discurso que perpassa a obra. Ele é ao mesmo tempo fidalgo e popular, tradicional e peculiar, religioso e satírico, sangrento e cheio de gargalhadas. Do risível e cômico ao dramático e trágico, Quaderna, nesse ponto, transparece a voz de seu criador Suassuna e é um maestro conciliador de suas (4) contradições e das tensões de pensamento que provoca com o seu discurso. Regente de tensões opostas. O que coincide diretamente com a noção de artista do teórico espanhol Miguel de Unamuno em seu O sentimento trágico da vida. Ao tom de Unamuno, o artista espalha contradições. “Contradição naturalmente. Pois que a vida é uma tragédia, e a tragédia é perpétua luta, sem vitória nem esperança de vitória, é contradição.” (Unamuno, Miguel de. Do sentimento trágico da vida nos homens e nos povos. São Paulo: Martins Fontes, 1996). 
 
Durante todo o Romance da Pedra do Reino, Quaderna – narrador que nos parece também a representação em personagem do próprio Movimento Armorial criado por Suassuna em 1970 – está sempre em questionamento, sob juízo, no meio de tensões de pensamento, entre o popular e o erudito: mora em uma casa que é também biblioteca e Academia de Letras dos Emparedados do Sertão, tem dois tutores de ideologias opostas – o promotor alourado e poeta de direita Samuel Wandernes e o advogado negro e filósofo de esquerda Clemente Hará de Ravasco Anvérsio. O próprio título do primeiro capítulo do romance já mostra o encontro entre o popular e o erudito: Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução. Além disso, Quaderna responde a um inquérito pela morte de seu padrinho Sebastião Garcia Barreto e pela (possível) participação nos acontecimentos que levariam à entrada de uma cavalgada moura trazendo o Príncipe do Cavalo Branco (Sinésio, o Alumioso) à Vila de Taperoá. É durante esse inquérito que ele conta sua epopéia ao Corregedor e a sua escrivã, Dona Margarida. E é durante esse depoimento, e mesmo entre personagens de tons de legslidade – Clemente é advogado e Samuel é promotor – , que constrói o seu castelo poético, a sua “obra lapidar” que une o popular e o erudito numa única obra. Na voz de Quaderna, Suassuna concilia, observa e justifica as críticas que seu discurso Armorial provoca. Transfigura as tragicidades de um sertão nordestino que ele pretende universal e raiz da cultura brasileira, deixando transparecer nesse momento o tom professoral-ideológico do autor: eis aí o coração do problema.
 
(1) BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. In: O PERCEVEJO. Número 8, 2000. p. 65 a 73. 
(2) In SUASSUNA, Ariano. Aula Magna à Universidade Federal da Paraíba. 1994. p.20.
 
(3) O desertor de princesa (1948), Os homens de barro (1949), Auto de João da Cruz (1950), Torturas de um coração ou em boca fechada não entra mosquito (1951), O arco desolado (1952), O castigo da soberba (1953), O rico avarento (1954), Auto da Compadecida (1955), O casamento suspeitoso e O santo e a porca (1957), O homem da vaca e o poder da fortuna (1958), A pena e a lei (1959), Farsa da boa preguiça (1960), A caseira e a Catarina (1962), além dos espetáculos de dança A demanda do Graal dançado e Pernambuco do barroco ao armorial (1998).
(4) In O Globo, 6 de agosto de 2006, p. 13. 14