A "Canção de outono", de Paul Verlaine, e a arte da tradução

O portal poesia.net trouxe aula sobre as dificuldades e as virtudes da tradução poética ao comparar o esforço de grandes poetas, como Alphonsus de Guimaraens, Guilherme de Almeida, Onestaldo de Pennafort, Paulo Mendes Campos e Nelson Ascher, para colocar, em português, este poema de Paul Verlaines.

Por Carlos Machado

Canção de outono
Caros,
 
Em junho de 2003, há exatos onze anos, publiquei o poesia.net nº 24, que discutia sobre três traduções do poema Chanson d’Automne do mestre simbolista francês Paul Verlaine. Descobri agora mais duas traduções dessa página antológica e resolvi atualizar aquele boletim, incluindo-as na discussão. 
 
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De la musique avant toute chose — a música antes de qualquer coisa. Com este verso definitivo, o francês Paul Verlaine (1844-1896) abre o poema Art Poétique, de 1885, considerado um verdadeiro manifesto da poesia simbolista. De fato, Verlaine colocou a música acima de tudo. Ele queria um verso fluido, ritmado, solúvel no ar. 
 
Exemplo disso é essa pequena jóia, a Chanson d'Automne, publicada em seu livro Poèmes Saturniens (Poemas Saturninos), de 1866. A música está de tal forma entranhada nesse poema que traduzi-lo para o português parece tarefa impossível. Por isso mesmo, transcrevo aqui três versões dessa canção de outono, escritas por poetas brasileiros de diferentes gerações: Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), Guilherme de Almeida (1890-1969) e Onestaldo de Pennafort (1902-1987). 
 
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Adiciono agora, neste boletim de revisitação ao poema, dois novos tradutores, de duas gerações mais recentes: o poeta e cronista mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991) e o jornalista, poeta e tradutor paulistano Nelson Ascher (1958-). Veja, ao final desta coluna, mais informações sobre todos os tradutores.
 
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Vamos à leitura. Ainda que você conheça o francês apenas de orelhada, dá para perceber as artimanhas sinfônicas empregadas por Verlaine. Basta escutar a primeira estrofe. Há ali como que um violão, inicialmente executado nas cordas mais graves: sanglots longs, violons, automne. De repente, a ação se transfere para as cordas médias (coeur, langueur) e retorna à nota inicial (monotone). 
 
A música se desenvolve aparentemente mais suave na segunda estrofe e, na terceira, se rende ao sopro do "vento mau". Ali, as palavras oscilam como uma folha ao vento (deçà, delà, pareil a la) que afinal se acomoda no chão. Bem, não sou músico, mas isso é o que meu ouvido me diz. 
 
Agora, como traduzir (verter, recriar, transcriar etc. etc.) esse poema em português? A seguir, algumas observações sobre as traduções.
 
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Onestaldo de Pennafort conseguiu equilibrar bem texto e música na primeira estrofe. O trio sons-violões-outono dá conta do recado. No entanto, perde-se um pouco da mudança de tom: as palavras dor e langor não fazem o mesmo papel sonoro de coeur/langueur. Outro ponto forte da versão de Pennafort é a manutenção do bailado da folha seca ao vento: de cá pra lá,/ como faz à/ folha morta. Também vale destacar que, dos três, Pennafort foi o único a manter a métrica original, ou seja, estrofes com versos de 4-4-3-4-4-3 sílabas. Os outros trabalharam com 5-5-2-5-5-2 (Guimaraens) e 4-4-2-4-4-2 (Almeida).
 
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Os dois tradutores recém-chegados juntam-se a Pennafort: tanto Paulo Mendes Campos como Nelson Ascher conservam o esquema métrico original de Verlaine.
 
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Em sua tradução, Guilherme de Almeida introduziu, no início, a palavra "lamento", para corresponder ao original sanglots (soluços). Para dar o tom de corda grave, ele também optou por violões, e não violinos, como fez Guimaraens. Violino é o correspondente de violon, mas, no contexto, desafina a orquestra. Nesse item, Alphonsus de Guimaraens mostrou-se o mais fiel ao sentido das palavras (por exemplo, usou "soluços"). Em compensação, foi o que menos se aproximou da melodia verlainiana.
 
Guilherme de Almeida foi o único a manter o ar de desconsolo indicado pelo verso "Qui m'emporte", na última estrofe. Mas é um jogo terrível: ele ganha esse dar-de-ombros e perde a flutuação da folha ao vento.
 
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A versão de Paulo Mendes Campos merece algumas informações especiais. Durante algum tempo, o poeta manteve na hoje extinta revista Manchete um espaço no qual publicava, além de crônicas, poemas próprios e traduções. A tradução reproduzida aqui saiu na edição de 28/03/1964 com o título Arieta
 
Mas Mendes Campos não produziu somente esta versão. Lembro-me de ter lido certa vez na própria Manchete uma página na qual ele mostrava diferentes soluções para os mesmos trechos da Canção de Outono. Recordo, vagamente, que ele experimentava com os timbres. Não consegui localizar esse artigo da revista. 
 
De todo modo, no site do Instituto Moreira Salles, encontram-se fac-símiles de cadernos do poeta onde se podem ler dezenas de tentativas manuscritas dessa tradução. Em vez de "Os longos trinos / Dos violinos / Do outono", há outras versões, entre as quais "Soluços finos / De violinos / Do outono". 
 
A rigor, os soluços ou trinos de violinos, embora sejam fiéis ao instrumento original, falseiam o timbre do trecho inicial da canção: Les sanglots longs / des violons / de l’automne. Essa sequência com aliterações em L e o som fechado produz, como já vimos, a ideia de notas graves, e não agudas: trinos, finos, violinos. 
 
Os dois primeiros versos da segunda estrofe também não parecem muito felizes. A palavra "alvar" (branco, esbranquiçado) corresponderia ao original blême (pálido). Perfeita no campo do significado, essa escolha no entanto quebra a aparente espontaneidade da canção. Mendes Campos logra melhor resultado na terceira estrofe. Mantém o ritmo e reproduz o bailado da folha levada pelo vento. 
 
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Mudam-se os tempos e com eles as palavras e os conceitos poéticos e musicais. O que antes parecia fluido e natural pode hoje soar estranho e fora de tom. Por isso, os especialistas em tradução afirmam que as obras clássicas precisam ser retraduzidas de tempos em tempos, para ajustar os autores antigos às visões de época. 
 
Creio que a tradução de Nelson Ascher, a mais recente de todas, exemplifica bem essa ideia. O tradutor reproduz com perfeição os esquemas métrico e rímico da canção outonal. Exibe também grande fidelidade ao que diz o texto em francês. No entanto, o recurso dos enjambements — seja pela quebra de palavras no final do verso (assom-/bram, mor-/to), seja pela quebra da frase (ao soar / da hora enquanto, pouco importa / aonde) — não permite sentir a música no padrão verlainiano. Essa música, aliás, constituiu o eixo de referência do boletim de 2003. 
 
É óbvio que, depois de Verlaine, o campo da música já se expandiu bastante. Talvez a canção de Nelson Ascher tenda para o dodecafonismo, enquanto a de Verlaine, sem a menor dúvida, é tonal, popular e cantável.
 
Mas isso é natural. Ascher emprega em sua tradução alguns recursos poéticos (como a quebra de palavras) que não seriam sequer imagináveis para um Alphonsus de Guimaraens. Eu diria que nem mesmo Paulo Mendes Campos ousaria usá-los. As soluções de Ascher já têm como referência uma série de transformações por que passou a poesia no século XX: o modernismo, as infinitas liberdades formais propostas pelas vanguardas, a poesia concreta. É uma tradução pós-tudo. 
 
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Talvez eu esteja sendo maçante com essas observações quase técnicas. No entanto, o objetivo é mostrar como é difícil chegar a uma tradução que, idealmente, traga para o idioma de destino tanto o significado direto das palavras como outros sentidos e impressões que elas podem carregar — a música, por exemplo.
 
Deixo bem claro que não estou comparando as três (mais duas) traduções com o objetivo de apontar "a melhor". A ideia é, de certo modo, comprovar a lição drummondiana: não há vencedor inequívoco nessa luta com as palavras. Só é possível algum tipo de barganha: para ganhar algo aqui, o tradutor tem de abrir mão de outro detalhe acolá.
 
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Em algum ponto mais acima, afirmei que a canção de Verlaine é cantável. Numa pesquisa na internet encontrei uma lista com dezenas de melodias, em registro erudito ou popular, aplicadas ao poema. Para terminar, incluo abaixo a versão mais popular do poema musicado. 
 
Trata-se da versão do cantor e compositor francês Charles Trénet (1913-2001), lançada em 1940. Grande cancionista, Trénet é famoso graças a músicas como "La mer", "Douce France" e "Que reste-t-il de nos amours", todas compostas por ele, sozinho ou com parceiros. 
 
Um abraço, e até a próxima,
 
Carlos Machado
 
 
A Canção de Outono revisitada
 
Paul Verlaine
 
CHANSON D'AUTOMNE
 
          Paul Verlaine
 
Les sanglots longs
Des violons
     De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
     Monotone.
 
Tout suffocant
Et blême, quand
     Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
     Et je pleure.
 
Et je m'en vais
Au vent mauvais
     Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
     Feuille morte.

CANÇÃO DO OUTONO
 
          Tradução: Alphonsus de Guimaraens
 
Alphonsus de Guimaraens – (Ouro Preto, 1870-Mariana, 1921). Advogado e poeta, foi um dos principais nomes do simbolismo basileiro, com uma poesia de traços místico-católicos.
 
Os soluços graves 
Dos violinos suaves 
     Do outono 
Ferem a minh'alma 
Num langor de calma 
     E sono. 
 
Sufocado, em ânsia, 
Ai! quando à distância 
     Soa a hora, 
Meu peito magoado 
Relembra o passado 
     E chora. 
 
Daqui, dali, pelo 
Vento em atropelo 
     Seguido, 
Vou de porta em porta, 
Como a folha morta 
     Batido… 
CANÇÃO DO OUTONO
 
          Tradução: Onestaldo de Pennafort
 
Onestaldo de Pennafort – (Rio de Janeiro, 1902-idem, 1987). Poeta, jornalista e tradutor. A ele Carlos Drummond de Andrade dedicou o poema "Dentaduras Duplas", do livro Sentimento do Mundo (1940).
 
Os longos sons 
dos violões,
     pelo outono, 
me enchem de dor
e de um langor 
     de abandono.
 
E choro, quando 
ouço, ofegando,
     bater a hora, 
lembrando os dias,
e as alegrias 
     e ais de outrora.
 
E vou-me ao vento 
que, num tormento,
     me transporta 
de cá pra lá,
como faz à 
     folha morta.
 
CANÇÃO DE OUTONO
 
          Tradução: Guilherme de Almeida
 
Guilherme de Almeida – (Campinas, 1890-São Paulo, 1969). Advogado, jornalista, poeta e tradutor. Traduziu 21 poemas de As Flores do Mal e publicou-os no volume Flores das Flores do Mal.
 
Estes lamentos
Dos violões lentos
     Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
     De sono.
 
E soluçando,
Pálido, quando
     Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doidos
     De outrora.
 
E vou à toa
No ar mau que voa.
     Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
     E morta.
CANÇÃO DE OUTONO
 
          Tradução: Paulo Mendes Campos
 
Paulo Mendes Campos – (Belo Horizonte, 1922-Rio de Janeiro, 1991). Poeta, jornalista e grande cronista, também traduzia poemas e os divulgava em suas crônicas.
 
Os longos trinos
Dos violinos
     Do outono
Ferem minh'alma
Com uma calma
     Que dá sono.
 
Ao ressoar
A hora, alvar,
     Sufocado,
Choro os errantes
Dias distantes
     Do passado.
 
E em remoinho,
O ar daninho
     Me transporta
De cá pra lá,
De lá pra cá,
     Folha morta.
 
CANÇÃO DE OUTONO
 
          Tradução: Nelson Ascher
 
Nelson Ascher – (São Paulo, 1958). Jornalista, poeta, tradutor e crítico literário. Tem traduções poéticas reunidas nos volumes O Lado Obscuro (1996) e Poesia Alheia (1998).
 
Violinos com
seu choro assom-
     bram o outono
e eu, corpo mor-
to de torpor,
     me abandono.
 
Quase sem ar,
desmaio ao soar
     da hora enquanto,
lembrando em vão
os dias de então,
     caio em pranto.
 
E o vento cruel
leva-me ao léu
     pouco importa
aonde, em vaivém,
vago que nem
     folha morta.
 
O cantor francês Charles Trénet interpreta a Chanson d'Automne, musicada por ele, na gravação original de 1940:

Fonte: poesia.net