Por trás das vaias, ódio de classe e machismo 

A presidenta da República, Dilma Rousseff, e o presidente da Fifa, Joseph Blatter, decidiram não discursar na abertura da Copa, como se faz nos espaços em que há civilidade num país republicano, mas isso não poupou a presidenta de ofensas das piores possíveis.

Por Gabriel Nascimento*

Da ala mais elitizada do estádio, onde estava a classe média branca, acompanhada da burguesia rentista de sempre, desde Cabral, herdeira não só dos meios sociais de produção, mas do seu atraso, ouviu-se ofensas a uma presidenta republicana.

Que o ódio de classe ali foi retumbante e essencial, chocando inclusive colunistas de portais conservadores de nossa mídia, já sabemos bem. O ódio de classe à inclusão dos mais de 50 milhões que viviam sem consumir na massa de consumidores ativos, dos 36 milhões que passavam fome, daqueles que precisavam de um teto para morar, daqueles que viviam sem energia elétrica. Por trás das vaias a Dilma, desde aquele dia da abertura da Copa das Confederações, está o ódio dos que querem os privilégios de antes, com exclusividade, os que agora estão dividindo os aeroportos e o espaço público com esses novos consumidores. E eles querem a volta do encolhimento do espaço público, encenado aqui pelos dois governos neoliberais de FHC.

Entretanto, ao que parece, não é só ódio de classe o que está por trás das vaias e agressões.

Qualquer homem pode ser vaiado e ofendido com um sonoro “vá tomar no c***”, mas não há registro, até onde se saiba, de outras chefes de Estado do mundo que foram agredidas da mesma forma. As ofensas que a presidenta recebeu também são resultado de uma nação com história mal resolvida, cheia de tentativas de golpe, em que as mulheres representam 8% do congresso nacional, ainda recebem os menores salários comparados aos homens e não gozam da cidadania plena em diversos espaços. Não é só uma questão feminista ou de gênero, é uma questão de respeito e fidelidade aos dados. Pela primeira vez uma mulher foi eleita Presidenta da República em um governo de centro-esquerda, advinda de uma base de esquerda, que reúne um bloco de um projeto que há dez anos luta pela soberania do povo brasileiro. Dilma é, sobretudo, a maior liderança feminina do Brasil na contemporaneidade. Vai entrar para a história como a líder mundial que enfrentou o desrespeito dos Estados Unidos em relação à privacidade, como a economista que prefere acelerar a economia sem perder o foco na busca pela queda do desemprego, como a presidenta que deu continuidade ao programa de desenvolvimento macroeconômico, sem perder os investimentos na distribuição de renda e no salário social, do ex-presidente Lula. Mas, sobretudo, Dilma vai entrar para a história como uma mulher. É duro para essa elite vira-lata engolir isso.

Dilma é a presidenta que causou furor nos jornalistas gramatiqueiros da grande imprensa que insistem em chamá-la de presidente. Mesmo sendo “presidenta” um termo dicionarizado desde o século 19, tais jornalistas insistem em chama-la de “presidente”, com o falso morfema neutro de gênero (porque a língua está longe de ser neutra), não por obediência a um padrão gramatical que nem eles mesmos sabem ou seguem, embora se proponham rigorosamente nas asneiras a perder de vista a dizer que seguem, mas por machismo. A grande imprensa, ao insistir em chama-la de presidente, atende aos aspectos que as políticas culturais machistas sempre fizeram funcionar nas mais diversas alas conservadora da sociedade. O lugar da mulher, nessas alas, ainda se restringe ao lar, às comendas de resolução exclusiva dos problemas familiares e da distancia do espaço público.

Foram as mulheres da classe trabalhadora que iniciaram suas lutas na esfera pública, travando combates para conseguir legitimidade no espaço público, zelando pela luta em prol da cidadania plena, do direito ao voto, da redução da carga horária de trabalho etc. Se o espaço social, nessa máxima conservadora, é restrito aos homens, caso uma mulher brigue por chegar até lá e consiga, como é o caso de Dilma, o falso morfema neutro está ali para provar que a língua é o espaço mais intenso da luta de classes, entraves de gênero e políticas culturais, como diria o linguista e historiador russo Mikhail Bakhtin, e que a mulher pode até ocupar aquele espaço, mas que, ao fim e ao cabo, ali é um espaço de homens. Não vamos ser ingênuos, senhoras e senhores.

O furor das vaias e o do suposto morfema neutro de “presidente” utilizado para Dilma, mostram tanto o desconhecimento linguístico desses jornalistas e pseudo manifestantes mal educados dessa classe média branca, quanto a raiva de ter que assistir uma mulher figurar como a maior liderança política do Brasil na atualidade. Em tempo de vaias, é bom sempre lembrar que se trata de uma elite perdedora e, nesse caso, vaias e ofensas de elite atrasada chegam a ser um elogio.

*Gabriel Nascimento é da União da Juventude Socialista (UJS) e mestrando em Linguística Aplicada (UnB)