As mutações da periferia na ‘narrativa legitimada’ dos Racionais MC’s

Uma contradição entre o discurso e a realidade. É dessa forma que o pesquisador Tiarajú Pablo D’Andrea, autor da tese de doutorado A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo, resume o que foi a década de 1990 com a chegada do neoliberalismo e os efeitos que esse provocou nos bairros populares.

Por Simone Freire e Eduardo Sales, no Brasil de Fato

Racionais MC's - Reprodução

De um lado, o avanço dos produtos importados, shoppings e condomínios fechados. Do outro, o desemprego, a precarização do trabalho, as privatizações e os ataques aos direitos sociais provocados por essa mesma ideologia, que tinha como objetivo criar um pensamento que glorificava o individualismo.

Para o discurso, a sociedade havia chegado ao seu melhor momento. A realidade, no entanto, mostrava o contrário. Chacinas se multiplicavam nas peri-ferias paulistas e as formas clássicas de organização política entravam em crise. Em meio a essa contradição, eis que surge um grupo de rap que começa a narrar a realidade que até então estava invisível: o Racionais MCs.

Formado por Mano Brown, KL Jay, Edi Rock e Ice Blue, o grupo, de acordo com Tiarajú, conseguiu, através de suas canções, fazer toda uma geração ter o autoconhecimento de que a arte era a única maneira de se sobressair diante daquele labirinto social iniciado na década de 1990.

O pesquisador cita como exemplo a música Fórmula Mágica da Paz, uma das que compõem o CD Sobrevivendo no Inferno, lançado em 1997. Em um dos trechos da música, em que fala “descanse o seu gatilho, meu rap é o trilho”, Tiarajú explica que esse é o discurso de que ‘a arte me salvou’.

“Eles conseguiram com esse discurso potente fazer toda uma geração dizer para si mesma 'pô, vamos fazer arte que é mais legal. Vamos ficar se matando? Vamos cantar rap. Esse discurso ajudou a formar uma geração que falou ‘vamos cantar, vamos abrir um sarau, fazer uma comunidade do samba porque aqui tem uma saída interessante’”, explica.

Racionais e o lulismo

Após uma década de desesperança, 2002 renovou os ânimos no país. Lula ganha as eleições, e o Brasil, a Copa do Mundo. Lula assume em 2003 a presidência da República. No plano político, o lulismo seria marcado por uma ascensão social ao consumo nos anos seguintes. Fato que o Racionais antecipou um ano antes com o lançamento de seu novo – e último – disco Nada como Um dia Após o Outro Dia. Para explicar, Tiarajú cita o exemplo da música Negro Drama que, segundo ele, evidencia a ascensão ao consumo de quem mora nas periferias.

“A música [negro drama] cantou a bola de uma questão subjetiva que ia perpassar toda uma geração. É uma obra artística muito louca, porque o cara cantou a bola antes de acontecer. Aí você tem uma rapaziada da periferia de São Paulo que fala que negro drama é a música que fala a trajetória da minha vida”, argumenta.

Por outro lado, Tiarajú também reconhece que esse cd causou bastante polêmica na época.

“Esse cd foi muito criticado no mundo do rap, porque foi um cd que fez várias alusões ao mundo do consumo. É um cd que bate muito numa questão: eu consegui cantandorap, hoje eu consigo ter um carrão, consigo ter mulheres bonitas, consigo me inserir no mercado de consumo. Em vez de brigar com o consumo, eu vou consumir mais que você. É um cd que a todo momento fala deles”, observa.

O pesquisador complementa dizendo que o Racionais foi o despertar de uma geração que não via outra saída. Em meio ao mundo do crime, da violência e das drogas, o rap veio como uma alternativa para a juventude da época.

“O papo reto é mais eficaz. A crítica direta é mais eficaz. O realismo é mais eficaz. Eles conseguem elaborar um discurso sobre o que foi morar e o que é morar na periferia de São Paulo nos últimos 20 anos. Eles elaboram o melhor discurso. Eles conseguiram falar os anseios de uma população em determinado tempo. É a narrativa legitimada”, conclui.