Racionamento de água: Dois pesos e duas medidas na imprensa

A ausência de informação qualificada na mídia sobre o risco de falta d'água em São Paulo revela a estratégia de blindagem do PSDB. Mesmo não havendo apagão elétrico, desde o governo FHC, as políticas energéticas do Governo Federal não são poupadas por editoriais desconfiados.

Por Cezar Xavier*

Não houve um dia sequer de racionamento de energia elétrica nos últimos dez anos. Ao contrário, houve uma forte redução no preço da energia, que permanece, embora a imprensa anuncie o fim dessa política de preços, há meses. Mesmo esta sendo uma antinotícia, a imprensa fez uma cobertura intensiva de uma suposta possibilidade de apagão elétrico nos últimos três governos. Vimos tudo que é possível saber caso ocorra o tal apagão que nunca houve, numa postura exemplar da imprensa investigativa.

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Por outro lado, uma das maiores cidades do mundo vive um risco iminente de racionamento de água. Não se trata de suposição, mas de imagens assustadoras de um reservatório de água praticamente seco. No entanto, a população paulistana vive um apagão jornalístico sobre o assunto. As análises dos motivos que levaram ao cataclismo e sugestões de políticas públicas possíveis de serem aplicadas no caso não merecem espaço nas páginas de jornais ou escaladas de notícias de televisão.

O silêncio é perturbador e cria um clima de hesitação e expectativa nos 65% dos paulistanos servidos pela represa, que passam a imaginar o pior. A única informação concreta que o usuário recebe vem das campanhas da Sabesp. Gastos enormes com filmes e material gráfico pedindo que se economize água.

A gambiarra

As motivações políticas para o tratamento diferenciado ao Governo de São Paulo, em relação ao Governo Federal, ficam mais evidentes conforme a imprensa se manifesta sobre o tema do fornecimento de água. Um vídeo do grupo Folha em parceria com o SBT sobre a “inauguração” do uso do volume morto no reservatório do Sistema Cantareira, é revelador dessa estratégia de blindagem do Governo Alckmin.

Diante da ausência de alternativas que o Governo poderia ter criado em seus 20 anos de vigor, Alckmin apelou para uma medida polêmica, a captação de água da reserva técnica da represa Jaguari/Jacareí. A água retirada da reserva técnica ou volume morto, como também é chamada, acrescenta 182,5 bilhões de litros de água ao Sistema Cantareira, o que fará com que o nível suba 18,5%.

A imprensa é convidada como se estivesse indo para a inauguração de um reservatório, quando na verdade, assistirá uma “gambiarra”para tentar resolver emergencialmente um problema com o qual a Sabesp nunca se preocupou. O vídeo acima poderia ter sido feito pela própria assessoria de imprensa do Governo, tal sua sintonia com a distorção dos fatos. Vemos a “inauguração” de uma grande obra, que mostra o governo agindo com presteza diante da crise da água. A imagem do jorro de água contrabandeada sintetiza a impressão de problema resolvido. Não há um comentário sequer contextualizando porque a gambiarra está sendo feita, nem uma notinha sobre a falta de investimentos que previssem uma crise dessa dimensão, nada sobre os riscos que esta estratégia traz. Apenas a tranquilizadora imagem de água subindo, como se fosse infinita.

Para garantir o efeito propaganda, o vídeo encerra com o governador anunciando outras medidas para garantir em definitivo que não ocorra falta d´água: a troca do sistema de fornecimento de água para determinados bairros, ou seja, outra gambiarra que implica em sobrecarga de usuários em sistemas que já atendem milhões de paulistas. Outro detalhe curioso é a substituição, no texto da repórter, do termo negativo “volume morto”, por “reserva técnica”, mais neutro.

“O governo de São Paulo não está esperando São Pedro para resolver o problema da seca. Nós estamos trabalhando 24 horas por dia com todo o empenho, engenharia e técnica para garantir o abastecimento de água à população”, diz o texto meticulosamente ensaiado pelo governador, durante entrevista coletiva.

A inauguração apressada e espetacular do bombeamento de água revela um fato que qualquer usuário deve estar se perguntando. Por que fomos privados de uma notícia sequer sobre esta obra que o governo vinha construindo? Simplesmente, porque é uma obra tão duvidosa e apressada, que era melhor não haver análises anteriores, apenas a inauguração. As deficiências seriam explicitadas e questionaram o uso de milhões em recursos financeiros numa obra duvidosa.

Outro detalhe tratado de escanteio pela imprensa é o fato do bombeamento ser feito com apenas quatro das 14 bombas instaladas. De imediato, imaginam-se as manchetes caso a obra fosse do Governo Federal. A manchete positiva é sempre acompanhada de um senão: Bombeamento começa com apenas quatro das 14 bombas instaladas.

Engenheiros independentes questionam o fato desta obra não estar preparada para a chegada de eventuais chuvas, que cobrirão as instalações impedindo-as de serem utilizadas. Assim, caso as chuvas escasseiem, as bombas não poderão ser usadas até que o nível do reservatório chegue aos níveis dramáticos atuais. A obra não foi feita prevendo as secas que continuarão pelos próximos anos, apenas a necessidade de água até a eleição. Um diretor da própria Sabesp diz que “só haverá problemas se não chover até outubro”.

Silêncio ensurdecedor

A articulação PSDB/mídia é antiga. Como o próprio jornalista Gilberto Dimenstein, lamentou em 2001, o apagão de energia ocorrido no Governo FHC nunca subiu ao topo da agenda da imprensa, mesmo com alertas frequentes de especialistas. Só quando era inevitável e a população sofria os efeitos de um racionalmento, os especialistas compareceram para revelar a omissão do governo.
“Sejamos honestos: se os governantes foram incompetentes (e foram), a imprensa estava refém da desinformação, não investigou como deveria e não fez o barulho que poderia. Agora, quando os especialistas ganham mais espaço, vemos como a crise estava anunciada, resultado de tantos erros e de tantas omissões de diferentes governos nas mais variadas dimensões”, disse Dimenstein ao final do governo.

Como se vê, não foi preciso contratar Ombudsman. O colunista Ancelmo Góis, do jornal O Globo, disse que "a imprensa, a exemplo do governo, demorou a ligar a tomada da crise de energia.” Até o editor da Folha, Clóvis Rossi, fez um mea culpa implorando a misericórdia do leitor no texto "Quase todos apagamos", de 13/05/01. “Os jornalistas somos imbatíveis na hora de informar coisas como ‘os apagões começaram ontem’. Mas perdemos o hábito de lidar com tendências, de olhar consumo, demanda e investimento e dizer: olha, se tudo ficar assim, os apagões serão inevitáveis”, assume com timidez o jornalista.

Águas cariocas

Curiosamente, um jornal do Rio de Janeiro, não de São Paulo, O Globo, destacou aspectos que têm sido omitidos pelos jornais paulistas. Os leitores cariocas são informados que, em relatório distribuído em março para seus acionistas, a Sabesp já alertava que poderia ser obrigada a “tomar medidas drásticas, como o rodízio de água”.

O Globo ainda “chutou o balde d´água” ao mostrar que a empresa pública prioriza o lucro dos acionistas, ao dizer que os dividendos de lucros da Sabesp distribuído aos seus acionistas é suficiente para financiar todas as obras que teriam garantido o abastecimento de São Paulo.

“Enquanto isso, os acionistas da Sabesp comemoram os resultados dos lucros da companhia, que é uma empresa mista e tem ações sendo negociadas nas bolsas de São Paulo e Nova York. Nos últimos dez anos, a Sabesp pagou R$ 3,6 bilhões de dividendos, metade dos quais vai para o Tesouro estadual.”

Manchetes no escuro

São de 2013, muito recentemente, as manchetes martelando o risco do apagão elétrico, em claro ataque ao Governo Federal. Ou seja, o nível da água em São Paulo já estava baixando, e os jornais berravam contra uma crise energética que nunca existiu e nem tem perspectiva racional de ocorrer.
Apoiando-se no apagão ocorrido durante o governo FHC, os jornais fingem que não sabem do sistema emergencial das usinas térmicas, do sistema de transmissão totalmente integrado e as tecnologias de controle de fluxo. Todas medidas que não existiam em 2001.

Agora, com a integração do sistema de transmissão, os reservatórios cheios das geradoras do Sul do Brasil podem amenizar a situação em locais com fornecimento elétrico mais crítico. Mesmo dizendo tudo isso, as autoridades, técnicos e profissionais do setor são ignorados pelas manchetes.
Quando admitem a impossibilidade de apagão, como fez O Estadão, insiste na incapacidade do governo manter o custo baixo da energia. Fora o festival de ironias, como a dO Globo: “Governo conta com térmicas e São Pedro”.

Devido ao trauma de 2001, hoje, as pessoas são mais econômicas e o mercado disponibiliza equipamentos de baixo consumo elétrico, o que também beneficia o atual governo. Isto foi resultado do papel benevolente da imprensa com o presidente tucano, evitando criticá-lo num momento tão difícil, preferindo adotar com orgulho sua campanha “sabendo usar, não vai faltar.” Aparentemente, a estratégia vai se repetindo ipsis literis.

*Cezar Xavier é jornalista do portal Grabois.org