Nelson Rodrigues: o mestre das crônicas imortais

Este texto, do ministro do Esporte, Aldo Rebelo, é a Apresentação do livro A Pátria em Chuteiras, de Nelson Rodrigues, reeditado pela Nova Fronteira / BNDES. E que mostra como vem de longe a torcida contra o Brasil por uma minoria de brasileiros. Como hoje, sempre foram pessimistas em relação à participação em Copas do Mundo, e hoje são contra a Copa no Brasil. Nelson Roddrigues dá, neste livro, lições de brasilidade contra o persistente "complexo de vira-latas"

Por Aldo Rebelo

Nelson Rodrigues
Na crônica “O grande sol do escrete”, publicada em 1970, Nelson Rodrigues citou o poeta Rainer Maria Rilke para dizer que o “que chamamos glória é a soma de mal entendidos em torno de um homem e sua obra”. O dramaturgo de Vestido de noiva, o memorialista das Confissões, o cronista de À sombra das chuteiras imortais, e de A pátria em chuteiras, morto em 1980, parecia antecipar próprio epitáfio. Viveu, morreu e passou à posteridade calcinado por adesões e rejeições. A posteridade e o cenário perfeito para que os desafetos reavaliem a obra rodriguiana sem ressentimento retroativo – desde os que o achavam tarado e proibiam suas peças, aos que se melindravam com as diatribes ideológicas. Mas há, grosso modo, um terceiro grupo que o fantasma de Nelson Rodrigues continua a assombrar: o dos que não acreditam no Brasil. A estes é endereçada esta seleção de crônicas. 
 
A biografia O anjo pornográfico, publicada por Ruy Castro em 1992, já exibia à exaustão a personalidade multifacetada e a obra inovadora de Nelson Rodrigues, mas a reedição sucessiva de seus textos, por ocasião de seu centenário de nascimento em agosto de 2012, e a transplantação de suas análises, reflexões e chistes para a atualidade, também nos propiciam a conclusão, no âmbito desta antologia, de que a fugacidade peculiar à crônica de jornal se transmuta em perenidade. O cronista esportivo permanece atual, vibrante, inovador, como o futebol de sua paixão. Para uma fatia de seus críticos, Nelson, longe de atingir a unanimidade que chamou de burra, acomodou-se na condição mínima de aceito, seja em sua dramaturgia antes estigmatizada de maldita, seja no caleidoscópio politico em que filtrou, com conservadorismo (“sou o único reacionário do Brasil!”) e sagacidade (“o Brasil é muito impopular no Brasil”), uma visão generosa de seu país.
 
A exemplo de outros grandes homens que cederam a sereias autoritárias e depois mudaram a rota do barco ideológico, como Dom Helder Câmara Santiago Dantas e Gilberto Freyre, Nelson deu sinais de que estava a caminho de mudara biografia. Como Freyre, que chegou apoiar o movimento de eleições democráticas Diretas Já, pouco antes de morrer, em 1987, Nelson se arriscou no campo inimigo ao defender, em 1978, a anistia – ampla, geral e irrestrita – que beneficiaria seu filho, Nelsinho, condenado a 72 anos de prisão sob a acusação de integrar uma organização de esquerda. Venerado apelo governo militar (chegou a ser amigo do general Garrastazu Médici), Nelson acreditava piamente que não havia tortura no Brasil, até ser informado pelo filho que o pau de arara era uma invenção tão brasileira quanto a folha-seca de Didi. 
A obra de Nelson Rodrigues é uma cornucópia de onde diferentes correntes podem divisar a grande aventura humana sem apequená-la em breviários. Do ponto de vista nacionalista, valorizou a língua portuguesa, introduziu o coloquialismo literário em peças cujas personagens eram visíveis no subúrbio carioca e não nos salões da elite europeia. Em vez de nobres empoados, subiam ao palco funcionários públicos, escriturários, donas de casa e até jogadores de futebol. Em tudo o que escreveu entornou amor ao país. 
A bagagem do dramaturgo da vida como ela é e do cronista das chuteiras imortais continha as obras de Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, dois intérpretes que fizeram o brasileiro deixar de arranhar o litoral, na expressão de frei Vicente do Salvador, e olhar para as entranhas da identidade nacional. A leitura de suas crônicas esportivas é um passeio deleitoso não só pelo estilo coloquial como pela fina capacidade de compreensão da aventura humana e sua organização social que distingue os escritores. 
Nelson observa o esporte além do horizonte limitado de um jogo. Uma partida da seleção era uma cruzada épica. Os jogadores, argonautas em busca do velocino de ouro, ou seja, a Taça Jules Rimet. Apreciava o talento, a técnica, mas ponderava que o futebol não e um jogo gentil, e a Copa do Mundo, “uma guerra de foice no escuro”, e daí repudiava a “humildade” que muitos pregavam para a seleção. Repetia que ninguém era mais violento que os aristocráticos jogadores ingleses, e, sem meias palavras, mostrava compreensão quando um ofendido reagia ao pontapé com outro ainda maior. Divisava o vaivém de homens concretos, movidos a virtudes e deformidades, encenando a vida em forma de futebol num campo verde. Sabia avaliar um caráter, exaltar uma virtude, e por isso era pródigo em alcunhas, tipos e comparações. Se, como ainda hoje, seus colegas perdiam-se em discussões bizantinas acerca da inteligência e o infantilismo de Garrincha, o olho e a pena do escritor eram certeiros em observar e imprimir argúcias deste naipe: “Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou chupamos um Chicabon, sem todo um lento e intrincado processo mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puto e irresistível do instinto.”
 
Tomando o futebol como metáfora da sociedade nacional, esforçou-se para superar o “complexo de vira-latas” instalado no subconsciente do torcedor após as Copa de 1950 e 1954. Persistia a convicção de que o jogador brasileiro era covarde, tremia diante do estrangeiro. O cronista combateu a ofensiva derrotista como um zagueiro zeloso. Uma de suas cruzadas foi contra os “entendidos” – seus colegas da crônica esportiva, “Narciso às avessas, que cospem na própria imagem”. Não importava que o “entendido” fosse ninguém menos que Leônidas da Silva, o Diamante Negro, inventor da bicicleta, um dos maiores centroavantes da história, comentarista de rádio na Copa de 1958. Nelson o arrasava quando Leônidas jorrava bobagens como sugerir que Pelé fosse barrado. Por incrível que pareça hoje, o Rei debutante não era unanimidade em 1958, mas Nelson fez campanha para que fosse à Suécia, mesmo machucado, por vislumbrar no jovem gênio da bola “plenitude de confiança, de certeza, de otimismo”, e escandalizava os moderados ao dizer que a maior virtude de Pelé era a “imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos”. E é nesse altiplano que na crônica esportiva do Brasil eleva-se a genialidade de Nelson Rodrigues.
Brasília, setembro de 2013 
Aldo Rebelo é ministro de Estado do Esporte