Chile: A agonia de San Pedro de Atacama

Pouco mais de oito mil vidas estão praticamente sem água no meio do deserto mais árido do mundo. No pequeno povoado de San Pedro de Atacama (1.8 mil km ao norte de Santiago), de abundantes tesouros arqueológicos e culturais, um dos destinos turísticos mais procurados por turistas sucumbe à deterioração dos já escassos recursos hídricos locais.

Por Victor Farinelli e Paola Cornejo, na Carta Capital

Chile: A agonia de San Pedro de Atacama

A agonia da cidade é consequências da privatização das águas no Chile. Em 1981, no auge da política de enxugamento do Estadopromovido durante a ditadura de Augusto Pinochet, foi decretado o Código de Águas, que permite a compra e o controle de recursos fluviais por parte de empresas privadas. A maioria das interessadas era composta por companhias do ramo de mineração – o que branqueou diversos casos de contaminação ilegal existentes desde o início da exploração do cobre.

O código trouxe enormes consequências sociais. Só neste século foram iniciadas 47 disputas judiciais entre pequenas cidades do interior (21 ao norte e 26 ao sul de Santiago) e empresas mineradoras, termoelétricas, madeireiras e de celulose, seja pelo desvio dos cursos de água, represamento ou sua utilização para depósito de dejetos.

O brasileiro Augusto Dauster está há três meses em San Pedro, trabalhando em empresas de turismo. Ele diz que precisou de tempo para se adaptar ao problema. “Primeiro, a gente aprende a nunca tomar água da torneira. Está sempre contaminada. Banhos curtos, lavar roupa e louça com o mínimo possível, e principalmente, comprar galões de água mineral em garrafa. Sempre recomendo aos turistas trazerem sua própria água para cá, é muito mais saudável”, explicou.

Luta pela sobrevivência. Entre tantos casos de escassez de água, os mais urgentes são os de três povoados do norte chileno: Petorca, Caimanes e San Pedro de Atacama. Os locais estão em vias de desaparecer devido à contaminação dos rios que abastecem suas regiões.

Segundo dados da Secretaria regional de Saúde de Antofagasta (província a qual pertence San Pedro de Atacama), a cidade dispões de apenas 2 metros cúbicos por segundo (m³/s) de água potável, e precisaria de 80 para satisfazer sua própria população, os turistas e a pequena agricultura local.

Em 15 de fevereiro, a junta de moradores de San Padro se reuniu para debater as próximas medidas a serem tomadas. Antes disso, alguns participantes trouxeram relatos das dificuldades locais. Karen Luza, representante da associação de famílias agricultoras da região, contou como as empresas que controlam a água na região diminuíram o fluxo destinado à irrigação das lavouras.

“Em outubro, plantamos batata, alho, favas e milho, mas a água demorou 16 dias em chegar, e só abriram a chave durante duas horas, depois tivemos que esperar mais vinte dias. Que semente pode resistir tantos dias?”, perguntou a camponesa. Karen também contou o quanto e difícil manter os seus cinco cavalos. Ela diz não contar com água suficiente para cria-los. Sua situação não se diferencia em nada da que vivem as demais famílias de camponeses da zona.

Estava preparada a discussão sobre a construção de uma represa, em um reduto capaz de acumular água das chuvas, para que fosse usada exclusivamente pela população. Porém, a prefeita Sandra Berna trouxe a notícia de que uma empresa mineradora havia se apropriado do local onde haviam planejado a represa, e o projeto teve que ser momentaneamente rechaçado.

Durante o encontro, a prefeita Berna mostrou seu descontento a um representante regional do Ministério de Saúde que estava presente, dizendo que “quando o governo assume a culpa por essa situação, atua novamente em favor dos interesses das empresas donas da água, que são as verdadeiras responsáveis. Se a culpa não é por omissão, então que obriguem as empresas a devolver e recuperar o rio”.

Ao final da reunião, foi aprovada a proposta feita pela comunidade indígena Likana Antay, de levar um documento à ONU e diversos organismos de direitos humanos, para pedir o apoio da comunidade internacional ao direito da comunidade de soberania das águas que a abastecem.

Enquanto as pessoas se retiravam do salão, uma senhora indígena, representante da comunidade Ayllu, desabafou: “Se não houver água, não temos mais nada o que fazer aqui. Vão ficar só esses empresários do turismo, gente de fora, tentando vender a carcaça da nossa cultura, ou a cultura fantasma, para os estrangeiros entenderem o que acontece quando se olha somente para a economia, e se esquece do espírito humano”.