Flávio Paiva: Cultura e gesta popular

O jornalista e escritor Flávio Paiva, em sua coluna deste sábado, dia 13 no Diário do Nordeste, faz uma interessante abordagem sobre a relação do cangaço e do MST com a cultura.

Os dois maiores movimentos sociais ocorridos nas fronteiras do último século no Brasil se assemelham enquanto fenômeno de insurgência popular contra os valores do tempo político de cada um, embora difiram em suas motivações, interesses, forma de agir e relação com a cultura. O Cangaço, que teve o seu maior impulso no início do século XX, caracterizou-se como uma expressão cultural destituída de formulação política; enquanto o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), levado à prática nas duas décadas finais do século passado, com avanço mobilizador nesse começo de século XXI, desenvolve-se como manifestação política, sem apurada atenção cultural.

O Cangaço brotou de um mal-necessário na convivência entre destemidos habitantes da caatinga, com seus latifúndios e coronéis rurais. A vida no interior do nordeste brasileiro, marcada por secas cíclicas, arbustos espinhosos e, principalmente, pela ausência dos poderes públicos coloniais, desenrolou-se em um cenário indiviso no qual as pessoas não conheciam restrições. E como não havia regra ou ordem reconhecida como tal, a violência tornou-se sinônimo da própria lei. A autoridade legalmente constituída mais relevante era representada pelos destacamentos policiais que os cangaceiros desdenhosamente chamavam de macacos.

O MST germinou na zona temperada do sul e do sudeste brasileiro, distinguida pela predominância de minifúndios, resultantes da presença de uma cultura de imigrantes que chegaram ao Brasil em busca de um lugar para viver. A omissão atávica dos poderes públicos na resolução dos problemas agrários fomentou o crescimento de ações inspiradas nos princípios doutrinários marxistas e numa utopia comunitária baseada no respeito à pequena propriedade familiar, na tática de ocupação a terras improdutivas, na hostilização ao uso concentrador de poder econômico e no ataque às formas de produção que ameaçam o equilíbrio do meio-ambiente.

Em que pese o caráter criminal propagado pelo oficialismo contra esses movimentos, tanto o Cangaço quanto o MST conquistaram, em seus sentidos de história paralela, uma certa simpatia da sociedade. No primeiro momento a cultura do cangaço desdenhou do rei e depois desconheceu a figura do presidente, negando a ambos a obrigação de pagar impostos e a obediência civil. Por sua vez, o MST conta com a aprovação da grande parcela da população que vê na concentração da terra uma explícita situação de injustiça social em um País de tantas abundâncias.

Mas se por um lado o Movimento dos Sem-Terra é uma resposta ideológica à questão da desigualdade no campo, por meio da luta de inclusão social e econômica; por outro lado, o Cangaço caracterizou-se pela instituição de um estilo de vida próprio do enfrentamento da adversidade, sem qualquer perspectiva de inclusão nos meios de produção. A tática do MST implica na criação de novos modelos de sistemas produtivos, ao passo que o Cangaço fez do culto à coragem o seu instrumento inclusivo.

O isolamento a que esteve relegado o sertão no período compreendido entre o final do século XVII e todo o século XVIII – ciclo do gado – fez com que nele se mantivessem valores do colonizador mesclados ao jeito nativo de viver. O historiador Frederico Pernambucano de Mello salienta em seu livro ´Guerreiros do Sol´ (A Girafa Editora, SP, 2004) que ´O sertanejo não conheceu feitor que lhe orientasse o serviço, nem fiscal que lhe exigisse o cumprimento estrito de tarefas; não conheceu cerca que lhe barrasse o caminhar solto e espontâneo; não sofreu o disciplinamento da proximidade do patrão e muito menos a ação coercitiva do poder público´.

Esses valores foram preservados por todo o ciclo do algodão, até meados do século XX, quando os mecanismos de ordem fundamentados na intolerância pela espera da justiça pública seguiram a eficácia do heroísmo social. Entre as décadas de 1920 e 1940, o Cangaço alcançou um grau de sofisticação como expressão cultural que pôde ser registrado em fotos e até pelo cinema. Ao longo dos anos, esse poder local exercido pela associação entre cangaceiros e coronéis do sertão, fez proliferar uma sofisticada cutelaria artesanal. Nas fazendas, os proprietários exibiam preciosas peças de cavalgadura, com toques de brasões coloniais e marcas de ferro de gado; enquanto pelas veredas os cangaceiros demonstravam seu poder em esfuziante indumentária de arte popular.

O princípio ativo do Cangaço não estava na luta pelo poder central, como se pode identificar no MST, mas numa simples conquista existencial. Por se confundirem com o modo de ser e com os saberes locais, os cangaceiros inventaram uma moda, um luxo pragmático e um jeito próprio de falar, como afirmação política. A indumentária dos bandos representava uma plasticidade inerente à arte popular: cores fortes, colagem de espelhos, estrelas de Israel, crucifixos, bordados florais e anéis em todos os dedos. Mas não era apenas essa comunicação visual que mitificava o Cangaço e dava orgulho aos integrantes dos grupos de cangaceiros. Havia uma dança e uma música, sobretudo o xaxado, que lastreava essa estética catingueira e se expressava intensamente nos bailes perfumados, chamados de samba.

Por sua vez, o MST, referendado na racionalidade ideológica, organizou timidamente alguns elementos simbólicos, do tipo foice e bandeira vermelha com estampa de um verde mapa do Brasil, para sua identificação na abertura de trilhas na luta por terra e crédito agrícola. A despeito de não terem como foco a cultura, os líderes dos sem-terra não reprimem manifestações religiosas, da cultura de massa e do folclore, a exemplo da musicalidade sertaneja e das lendas brasileiras. Nada aquém, nada além de uma valorização circunstancial dos aspectos subjetivos dos participantes.

Neste ponto, a orientação do MST concatena-se com os dizeres da cultura popular de que todo rio só enche com água toldada. Depois decanta. Ou seja: primeiro é necessário tomar o poder econômico e político para depois fazer a revolução cultural. Essa ausência de atenção especial ao entendimento da dimensão cultural talvez seja o maior problema do MST na escalada fora da sua região de origem. O conceito de cultura vivenciado nesse movimento pressupõe que as pessoas se modificam na medida em que modificam suas relações entre si e com o meio-ambiente.

O exercício de modelagem de um novo comportamento relacionado à produção e ao trabalho cooperativo resultaria, assim, no desenvolvimento de uma visão de mercado posicionada no atendimento do consumo das classes mais desfavorecidas. O pensamento dogmático dos líderes do movimento acaba reduzindo o seu potencial de conquista ao subestimar a cultura como aliada indispensável das condições econômicas e políticas. Com base nesse juízo, o máximo que o MST consegue é utilizar o teatro em incursões pedagógicas realizadas por meio de encenações de histórias reais representadas pelos próprios integrantes do movimento.