Campanha nacional e jornada por cotas marcam este 13 de maio

Apesar de o movimento negro celebrar o 20 de Novembro (data da morte de Zumbi dos Palmares), o dia da abolição da escravatura ainda é marcado no Brasil por mobilizações e atividades de combate à desigualdade

"Eu estava no ônibus com meu ex-marido, que é branco. Teve uma blitz. Fui a única a ser revistada", relata a empregada doméstica Luzia de Cássia. "A gente levou o nosso afilhado de três anos numa festa e uma criança da mesma idade disse pra ele: – Minha mãe detesta gente preta. E eu também", conta Ana Carolina Delgado, produtora de moda. Esses são dois trechos dos 18 depoimentos reais retratando situações de preconceito racial que estão nos comerciais da segunda fase da campanha nacional “Onde você guarda o seu racismo?”, lançada nesta quinta-feira, às vésperas do dia 13 de Maio, quando o país lembra da abolição da escravatura.

O dia 13, no entanto, está longe de simbolizar festa para a população afro-descendente; é uma data negada como tal pelos descendentes do povo escravo. A maioria das celebrações se dá no dia 20 de novembro, dia de Zumbi dos Palmares. No entanto, algumas organizações do movimento negro aproveitam a ocasião para reacender debates sobre a desigualdade racial no país. “A leia áurea desinstitucionalizou a escravatura, mas não libertou ninguém. Para nós é um dia de protesto, de denúncia”, explica Edson França da União de Negros pela Igualdade (Unegro).

A iniciativa da campanha do grupo Diálogos contra o Racismo, que reúne mais de quarenta organizações e redes da sociedade civil, vai neste sentido, de promover a reflexão. O projeto pretende mostrar situações do dia-a-dia em que o racismo se manifesta, mesmo que de forma velada, para destacar como elas são freqüentes e estimular as pessoas a identificarem em si mesmas o preconceito para se livrar dele. Por meio desses momentos cotidianos, que envolvem homens e mulheres de todas as idades e classes sociais, pretendem mudar pensamentos e atitudes automáticas e inconscientes, interiorizadas no comportamento da população brasileira, que constituem o preconceito e a discriminação racial.

A primeira fase, que teve início em dezembro de 2004, buscava motivar a população brasileira a falar sobre o tema, a partir da pergunta que dá nome à campanha, sem despertar uma atitude defensiva, para que por meio da reflexão cada um pudesse reconhecer a presença do racismo em suas atitudes e a partir disso combater esse problema. A campanha tomou como ponto de partida uma pesquisa de opinião realizada em 2003 pela Fundação Perseu Abramo. Ela revela que 87% dos brasileiros acreditam que há racismo no Brasil. No entanto, somente 4% dos mesmos entrevistados reconhecem que são racistas.

A iniciativa, que conta com comerciais para a TV, busdoors, cartazes e panfletos, é voltada principalmente à população não negra e a maior parte das organizações que a integram não faz parte do movimento negro. São entidades do movimento de mulheres, de defesa do meio ambiente, do direito à saúde, à educação, entre outros, que acreditam que o racismo não é um problema apenas do movimento negro, mas de todas as pessoas e organizações.

Jornada pelas cotas –
Em meio aos debates sobre racismo no Brasil, a questão das cotas é das mais polêmicas hoje em dia. O Projeto de Lei 73/99, da deputada Nice Lobão (PFL-MA), que prevê a reserva de vagas nas universidades federais, está pronto para ser votado no plenário da Câmara Federal. Apesar das pressões negativas, o movimento negro tem esperanças de que o projeto seja aprovado, para que “se acabe com a lógica do mercado das universidades e se democratize o saber e a sua produção. As universidades estão muito preocupadas com o mercado em vez de se preocuparem em serem pública, no acesso e na sua produção”, critica Edson França, da Unegro.

Nesta sexta (12), dezenas de organizações deram início à Jornada por Cotas e Reservas de Vagas nas Universidades Públicas Federais, visando garantir direitos de alunos negros, indígenas e vindos da rede pública de ensino. Segundo as entidades, a Jornada é uma manifestação de repúdio a parte da intelectualidade brasileira que se coloca contrária à aprovação do projeto de lei 73/99. “Já falaram até mesmo sobre a inconstitucionalidade do projeto, mas ganhamos o debate porque provamos que não há”, conta França.

Para ele, o protesto em São Paulo tem ainda um outro objetivo: minar a resistência da USP à idéia das cotas. “Acreditamos que, minando a pressão na USP, o trabalho poderá ser mais fácil em todo o Brasil”, disse. Várias universidades já aderiram, com bons resultados, à política de cotas, como é o caso de instituições no Rio de Janeiro, Ceará, Pará e Brasília. “É uma forma de furar o bloqueio a este projeto da elite, que são hoje as universidades, porque elas não foram criadas para o povo”, afirma. As manifestações da Jornada terminam na noite desta sexta, com uma Marcha noturna, onde também será pedida a permanência das cotas no texto da Reforma Universitária.

Vanguarda feminista –
Ao lado da luta pelo acesso ao ensino superior, o movimento negro vem traçando outras estratégias de democratização e igualdade racial na esfera pública. Uma delas foi lançada recentemente pela organização não-governamental Fala Preta!, que defende os direitos das mulheres negras. O projeto PIMNDHESC, que vai formar 60 mulheres, visa a potencializar líderes negras em matéria de direitos humanos econômicos, sociais e culturais. A idéia é ajudar as mulheres negras a lutar pelos seus direitos dando-lhes os meios necessários para conhecê-los e os caminhos mais viáveis para reivindicá-los.

“Quando se fala em direitos humanos e direitos econômicos, pensa-se muito no mundo branco. O mundo negro, que sofre violações de tais direitos, não explora este aspecto nas suas comunidades no sentido de conhecer os meios para a sua proteção. Acho que, a partir daqui, as mulheres poderão tomar posições mais duras”, acredita Deise Benedito, coordenadora da Área de Articulação Política e Direitos Humanos da Fala Preta!. “Hoje muitas mulheres negras estão fora das universidades e instituições de ensino. Por isso essas capacitações são necessárias, para que todos possam participar na vida pública. E a mulher negra tem de alcançar este nível. Esta foi a raça que mais morreu pelo Brasil”, afirma. Por tratar-se de líderes comunitárias, elas “podem influenciar as comunidades; por isso têm de estar bem preparadas e melhor informadas”.

Deise é crítica ao dizer que não se pode falar em exclusão da mulher negra no país, porque ela nunca esteve incluída. “É como se não existisse. É só ligar a TV e reparar nos comerciais. Nós ainda estamos num país onde o modelo europeu é o paradigma do sucesso. Nos últimos cinco anos, não vejo grandes avanços nesta área. Já nas universidades, se conseguiu trazer para o público debates sobre o racismo. Juntaram-se os antropólogos, sociólogos e historiadores para falar da questão. Assumir, por exemplo, que existe uma relação ancestral entre África e Brasil é ainda difícil, mas reconhecer a descendência, as origens, é uma forma de elevar a auto-estima”.

O direito à saúde, à alimentação adequada, à moradia, a um salário digno, à segurança e à greve estão no topo da lista dos direitos reivindicados pela Fala Preta! Faz parte ainda dos direitos estudados no projeto a redução da taxa de mortalidade infantil de crianças negras. Depois da sessão de formação, as líderes devem capacitar outras pessoas, transformando-se em multiplicadoras do processo. Cerca de 20 municípios de São Paulo estão representados. O PIMNDHESC termina em dezembro, com um seminário que as próprias mulheres, agora em formação, deverão organizar.