Sem categoria

O Mao Tsetung de Halliday e Jung Chang: de Deus a Diabo

“As quase mil páginas produzidas pelos dois novos anões intelectuais, que naturalmente se julgam gigantes, podem ajudar a escrever um bom livro de cem páginas sobre Mao”, conclui a impiedosa crítica de  Armen Mamigonian sobre Mao, a história desc

Atualmente o movimento editorial está cada vez mais acelerado, como o capitalismo, ao qual está subordinado, e de tempos em tempos são lançados novos best-sellers e logo esquecidos. Sidney Sheldon, Dalai Lama, Paulo Coelho vendem milhões de exemplares pelo mundo afora, sendo que o brasileiro granjeou admiradores como Clinton e Chirac. Esses autores precisam dominar algumas “ferramentas”, na expressão dos jornalistas, como psicologia elementar, escrever acessivelmente, abusar dos suspenses, além de bons conhecimentos de marketing e até de logística… É possível dizer que Jung Chang e Jon Halliday preencheram estas características quando anunciaram “a história desconhecida” de Mao Tsetung.



“Ninguém explicou Mao como nós”



Mesmo não representando um quarto da humanidade, como dizem os dois, mas um quinto, a China é um tema inesgotável, não só pela sua civilização multimilenar e vigorosa, sua história tumultuada no século 19, quando foi transformada em semi-colônia de um condomínio estrangeiro de várias potências, a Inglaterra em primeiro lugar, mas também pela sua violenta revolução camponesa e anti-imperialista na primeira metade do século 20, sua via original para o socialismo, seu espantoso crescimento nas últimas décadas e seu papel no futuro do Banco Mundial assinalou que de 1990 a 2001, o “crescimento da China derrubou a pobreza mundial”, que permaneceu igual na América latina, aumentou muito na África, mas diminuiu na China de 337 milhões para 212 milhões de pessoas, vale dizer de 33% para 16,6% de sua população.



Ora, a temática China é abordada por dezenas de livros anualmente, mas o livro clássico de J.K. Fairbank, atualizado por M. Goldman e recém editado no Brasil, não mereceu o devido destaque. Assim como o livro de J. D. Spence, incluindo uma biografia de Mao, estão quase esquecidos, enquanto Cisnes Selvagens de Jung Chang já vendeu mais de dez milhões de exemplares em trinta idiomas e permitiu a montagem da dobradinha com Jon Halliday para o livro Mao, a história desconhecida, lançado na Inglaterra e Austrália, chegando aos EUA (primeiro os anglo-saxões…) e daí se espalhando pelo mundo. Como a fama subiu à cabeça, Jung Chang garantiu que “ninguém explicou Mao como nós”.



Uma entusiasmada guarda vermelha



Quando a chamada Revolução Cultural estourou na China, Jung Chang assumiu a condição de guarda-vermelha adolescente entusiasmada, e atravessou o país com outros jovens até Pequim, a aldeia natal de Mao e outros lugares. No seu primeiro livro, rico em informações, assinalou que mesmo entre os jovens houve resistências aos abusos dos guarda vermelhos como ela e seus irmãos. Ela confessou que na época considerava Mao divino, etc, etc. Começou a acordar quando seus pais, comunistas exemplares, passaram a ser perseguidos injustamente, na esteira das lutas de facções e mesmo assim não desconfiava da responsabilidade de Mao… Por fim passou a imputar todos os problemas, abusos e crimes… a Mao, que deixou de ser Deus para ser o Diabo. Este é o principal defeito de Cisnes Selvagens e principalmente de Mao, a história desconhecida: uma visão religiosa elementar dos seres humanos.



Em Cisnes Selvagens Jung chang relata as histórias de sua avó, de sua mãe e dela mesma, as “três filhas da China”, ao longo do século 20. Esta seqüência de gerações genuínas é fortíssima no seu país de origem e também tem ou teve força em outras culturas, certamente uma das explicações do merecido sucesso do livro. Entretanto, o primarismo de sua visão do mundo empobreceu suas ricas descrições.



Afinal, sua avó desde menina não teve os pés quebrados e comprimidos para ser valorizada pela estética masculina dominante? Não foi oferecida como concubina de um chefe militar, que teve participação decisiva na corrupção de parlamentares “democraticamente” reunidos em Pequim? Não foi sua mãe que desde cedo, como seu pai, assumiu a militância comunista, ajudando a china a recompor sua dignidade e seu destino conspurcados pelas potências estrangeiras? E, finalmente, não foi ela que teve chances de estudar, ir à Inglaterra e defender doutorado em 1982?



A China e a questão feminina



Todo este salto radical e extraordinário não teria acontecido sem o PCC e a liderança de Mao Tsetung, que nossa autora, entusiasmada pelo fog, pelos ônibus e pela “tranqüilidade” da capital inglesa parece não compreender. Assim sendo, Mao talvez tivesse alguma razão em dizer que para alguns chineses “sentir peido de estrangeiro e achar cheiroso” era a máxima maravilha (Cisnes Selvagens, cap. 26).



Sobre a questão feminina, quando ela e Jon Halliday reconheceram, com ressalvas naturalmente, a adoração que Mao tinha pela mãe, mas enfatizaram a prática de “conquistador” de mulheres, já revelada por Li Zhisui, médico de Mao, e criticada pelo marechal Peng Dehuai como “postura imperial”, mesmo um jornalista conservador como Nicholas D. Kristof (NY Times) discordou dos exageros dos autores e lembrou que a China era “um dos piores lugares do mundo para se nascer menina” e passou a ser um lugar “onde as mulheres têm mais igualdade do que no Japão ou na Coréia do Sul”.



Afinal na China travou-se uma revolução popular e não uma simples modernização de cima para baixo e onde no PCC e no exército vermelho as mulheres tiveram numerosa presença e importante papel na vitória da revolução agrária e anti-imperialista e que foi também uma revolução nas relações entre homens e mulheres. Assim, o provérbio de Mao segundo o qual “as mulheres carregam a metade do céu” passou a fazer parte da sabedoria chinesa, corrigindo neste particular o confucionismo.



Um epílogo que é uma ordem



Se, na chamada Revolução Cultural, Jung Chang assumiu alegremente a condição de guarda-vermelha, onde estava Jon Halliday naquela época? Era um entre muitos promissores intelectuais marxistas, que havia começado a colaborar na New Left Review em 1964, encerrando sua colaboração em 1981, onde escreveu sobre os assuntos da moda, desde o movimento operário na Itália e no Japão, o capitalismo japonês, a liberação feminina e até a pressão imperialista na Ásia, quando fez referências à China. O que se passava no interior daquele país não lhe interessou. Entretanto já em 1966, pouco antes de falecer precocemente I. Deutscher denunciou na mesma revista o xenofobismo e o esquerdismo infantil da Revolução Cultural e o mesmo fez  S. Schram na mesma época, numa biografia de Mao.



Eles, com pouquíssimas informações vindas da China, tinham olhos para enxergar, enquanto quarenta anos depois Jung Chang e Jon Halliday, com fontes muito maiores, permanecem a quilômetros de distância daqueles analistas e daqueles acontecimentos, pois o objetivo que assumiram foi escolhido antecipadamente, sem necessidade de comprovação: denegrir as imagens de Mao e do PCC ao invés de tentar entender os acontecimentos para os quais ele não se interessou anteriormente e ela vivenciou sem saber onde estava metida.



Juntaram centenas de informações, muitas delas preciosas, mas não se propuseram a dar a menor interpretação, fora a demonização. Sintomaticamente, o epílogo do livro de quase mil páginas, tem duas linhas e meia, “ordenando” ao governo chinês retirar a foto de Mao da Praça Celestial.



Lacunas na biografia evitam o contraditório



Jon Holliday e Jung Chang pretenderam esmagar o leitor desavisado montando um verdadeiro blitzkrieg de informações, livros, revistas, entrevistas, etc, mas os resultados “pour épater le burgeois” são precários. Em primeiro lugar excluíram a apresentação de fatos importantes e também excluíram da bibliografia autores fundamentais como I. Deutscher e J. Spence e outros importantes como M. Meismer, N. Bernal, G. Sofri entre outros.



Ora, Jon Halliday não desconhecia a contribuição dos dois primeiros, até porque I. Deutscher foi patrono da New Left Review, e por outro lado Jon se inspirou visivelmente em J. Spence na descrição da área de Hunan onde se localizam as aldeias do pai e da mãe de Mao, em vales próximos, mas separados, para escrever as primeiras páginas do livro. A exclusão bibliográfica evitou o contraditório ou o diálogo com opiniões divergentes, obedecendo a onda pós-moderna de muitos intelectuais (sic) pós-marxistas.



 I. Deutscher argutamente caracterizou Mao como uma combinação entre Lênin e Stálin e viu nele um líder camponês como o russo Pugachev, do século 18. Por sua vez, J. Spence comparou Mao aos “senhores da desordem” das cortes medievais européias, que patrocinavam as breves inversões de papéis hierárquicos nos dias de final de ano, pois Mao parecia se sentir mais a vontade no mundo da desordem do que no mundo da ordem.



Mesmo as ricas observações de Deutscher e de Spence contém alguma dose de euro-centrismo. Como Deutscher notou muito bem, os chineses importaram o leninismo antes que o stalinismo ganhasse força, mas na verdade Li Dazhao, o primeiro intelectual marxista chinês, que estudou economia política no Japão, se apoiou diretamente em Marx para analisar a realidade chinesa e enfatizar a importância fundamental dos camponeses. Isto permite entender por que Mao, mais que Pugachev, fez parte da tradição chinesa de rebeliões agrárias, pois afinal de contas a China sempre foi a mais importante nação camponesa de toda a humanidade. E na China a tradição taoísta, de base camponesa e anti-burocrática, sempre estimulou a rebeldia, no pensamento e na ação, e é muito anterior aos reis medievais da Europa.



Uma demolidora resenha australiana



Entretanto, a dobradinha Chang-Halliday além de excluir de maneira duvidosa Deutscher e Spence da sua bibliografia caudalosa, excluiu também M. Meismer, autor de importante biografia de Li Dazhao, fundador do PCC e pensador fundamental para entender a China do ponto de vista marxista.



Por razões deste tipo The China Journal, da Universidade Nacional da Austrália (Camberra), uma das melhores revistas sobre a China contemporânea, considerou o livro excessivamente unidimensional e publicou no seu número de janeiro de 2006 quatro resenhas demolidoras sobre Mao, a história desconhecida, abrangendo os períodos até 1940, de 1940 a 1949, de 1949 a 1965 e de 1966 a 1976, num total de 45 páginas (p.95 a 136), a cargo de cinco especialistas, que unanimemente lamentaram a inversão simplória da ótica do período maoísta, substituindo a biografia do santo pela biografia do monstro, simplificando causalidades complexas, em favor da visão míope das maquinações de um tirano individual (G. Benton e S. Tsang, p. 95-96).



Para a dupla Chang-Halliday o ponto de partida para a condenação de Mao aos fogos do inferno (como se essa condenação fosse possível para o próprio demônio) foram os seus comentários ao livro do filósofo alemão F. Paulsen, “Sistema de Ética”, solicitados pelo seu mestre Yang Changji da Escola Normal de Changsha (Hunan). No limite extremo de seu hedonismo e utilitarismo, o filósofo garantia que “todos os seres humanos, sem exceção, tendem a enfatizar o interesse próprio sobre o interesse dos outros”. Chang-Halliday (p.31-34) “editaram” os comentários de Mao como se ele concordasse em gênero, número e grau com Paulsen e simplesmente suprimiram a passagem em que ele criticava a visão egoísta: “A ajuda mútua representa a realização do individual; o interesse próprio é realmente básico à existência humana, mas ele não deve parar por aí. É da nossa natureza estendê-lo a fim de ajudar aos outros.  Desta maneira, trabalhar para o interesse dos outros é na minha visão interesse próprio”.



Para os resenhistas, ao suprimirem estas observações escritas por Mao, Chang-Halliday montaram uma caricatura dele (p.96-97). A criteriosa biografia de Mao escrita por J. Spence discutiu de maneira honesta os comentários de Mao sobre F. Paulsen, mas o autor foi suprimido mesmo sabendo-se que ele vem se dedicando desde os anos 70 às pesquisas sobre a China, como também foi o caso de J. K. Fairbank, editor da monumental The Cambridge History of China, em vários volumes. O volumoso index de Chang-Halliday não seria sobrevivência do antigo dogmatismo deles? Estranhos intelectuais. Apenas estranhos?



Chang-Halliday não se cansaram e garantiram que Chiang Kai-shek deixou o Exército Vermelho atravessar tranqüilamente o Rio Xiang, como gesto de boa vontade em relação a URSS (p.173-177), quando o historiador Kuo Hua-lun, de Taiwan, entrevistando participantes da Longa Marcha constatou perdas de milhares de pessoas. Peng Dehuai, o “mais honesto” comunista segundo a dupla, escreveu em suas memórias sobre “duras batalhas” travadas, assim como Otto Braun deixou depoimento semelhante e ambos estão na bibliografia. O livro ignorou estas testemunhas oculares e de primeira mão, segundo G. Benton e S. Tsang (p.98). Chang-Halliday continuaram na mesma toada por mais centenas de páginas, que, aliás, mereceram dezenas de ressalvas dos resenhistas. Mesmo assim é preciso reconhecer que Chang-Halliday contribuíram para clarear pontos das conversações Mao-Stálin, como na insistência de Mao em conseguir instalações industriais e militares, com transferência de tecnologia de ponta, em contrapartida da participação chinesa na Guerra da Coréia, por exemplo.



Da esquerda à direita, sempre autoconfiantes



N.D. Kristof lamentou a viva auto-confiança dos autores e estranhou que Zhang Hanzhi, amiga íntima de Mao, tenha sido citada como entrevistada, quando ela nega o fato. Também duvidou das estatísticas de mortes dos camponeses durante o “Grande Salto” (1958-61) e lamentou a falta de visão histórica dos autores.



Como Li Zhisui, médico de Mao, que registrou a admiração que ele nutria por Shi Huangti, Kristof assinala a semelhança das duas figuras históricas. Shi Huangti, o primeiro imperador, fundador da nação chinesa, unificou militarmente vários pequenos reinos há 2200 anos, construiu boa parte da Muralha da China, padronizou pesos e medidas, criou a moeda comum e o sistema legal, mas queimou livros e enterrou eruditos vivos, assentando os fundamentos da dinastia seguinte, Han (206 a.C. a 220 d.C.), uma das eras douradas da civilização chinesa.


 


Mao também impiedosamente e às vezes de maneira selvagem ajudou decisivamente a estabelecer os alicerces do renascimento e ascensão da China, depois de muito tempo de insuportáveis sofrimentos impostos pela decadência da dinastia Manchu associada à ação civilizatória da Inglaterra de Jon Halliday, que aliás encontrou tempo para exibir seu esnobismo britânico ao apontar Mao numa foto “com ar de Oscar Wilde”. Talvez tenha se esquecido que o genial e rebelde irlandês escreveu um antológico “A alma do homem sob o socialismo”.



É útil lembrarmos que nos 80 a ofensiva desencadeada por R. Reagan intimidou os aprendizes de feiticeiros da Perestroika e abriu caminho à passagem de centenas de “marxistas” de ocasião ao campo bem nutrido do anti-comunismo. Se na época do marxismo de fachada estes intelectuais faziam ideologizações de “esquerda” ironizando de maneira grosseira os EUA, por exemplo, eles passaram a ajudar a montagem da ideologização de extrema-direita, mantendo a mesma auto-confiança de antes, fingindo uma superioridade intelectual anteriormente “marxista” e hoje anti-marxista.



Nunca como nos dias atuais o mundo “intelectual” sob o capitalismo se subordinou tão servilmente à gigantesca ideologização reinante, com conclusões pré-estebelecidas, infensa ao debate e dispensando comprovações empíricas. Assim, numa época em que o “criacionismo” vai ganhando forças nos EUA dos neoconservadores, não há porque estranhar a demonização de Mao. Aliás, G. Dimitrov, da Internacional Comunista, já havia previsto que a segunda grande onda fascista mundial partiria dos EUA, que foram criando a partir de seus balcões de negócios verdadeiros zumbis anti-latinoamericanos (Vargas Llosa e FHC), anti-muçulmanos (S. Rushdie e M. Amis), anti-chineses (Chang e Halliday) e assim por diante.



Entretanto, como disse Deng Xiaoping, discípulo de Mao, parafraseando o mesmo, “o governante que acerta 70% das decisões pode ser considerado um estadista, mesmo cometendo alguns graves erros”, como foi o caso de Mao Tsetung. Paradoxalmente as quase mil páginas produzidas pelos dois novos anões intelectuais, que naturalmente se julgam gigantes, podem ajudar a escrever um bom livro de cem páginas sobre Mao.



* Intertítulos do Vermelho