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Próximo à aposentadoria, Saramago recorda sua trajetória

Por Fernanda Eberstadt (New York Times Syndicate)
Certa noite em junho, o romancista português José Saramago falava para um pequeno grupo em um encontro literário em Lisboa. A ocasião era o relançamento de um volume de seus poemas, publicado o

Saramago ganhou fama no mundo de língua inglesa há duas décadas com a publicação de seu romance Memorial do Convento, uma história de amor picaresca situada durante a Inquisição portuguesa e escrita em uma veia fantástica que lhe valeu comparações com Gabriel García Márquez. Seus romances posteriores lhe renderam a reputação de profunda versatilidade.


 


Em sua parábola política de 1995, Ensaio sobre a Cegueira, uma cidade é reduzida à selvageria por uma misteriosa praga de cegueira. Fernando Meirelles, o cineasta brasileiro que dirigiu Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel, está atualmente fazendo um filme baseado no livro. Em outubro de 1998, Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.


 


Não é exagero dizer que Saramago, um membro do notoriamente linha-dura Partido Comunista de Portugal, considera sua fama literária acima de tudo como um meio de divulgar suas convicções políticas. Mas há cinco anos ele conseguiu provocar um escândalo mundial quando, em uma visita a Cisjordânia, ele comparou a situação nos territórios palestinos a Auschwitz.


 


No encontro literário em Lisboa, Saramago estava com um humor mais lírico. Seu discurso improvisado de meia-hora tratou desde seu próprio sentimento de “escuridão”, quando a Revolução Portuguesa esquerdista de 1974 seguiu o caminho da social-democracia, até a escadaria projetada por Michelangelo para a Biblioteca Laurenziana, em um claustro de San Lorenzo, em Florença. Saramago concluiu seu discurso: “Todo homem tem seu próprio pedaço de terra a cultivar. O importante é que ele cave fundo”.


 


Visita


 


No dia seguinte, visitei Saramago em sua casa em Lisboa. Sua residência permanente fica nas Ilhas Canárias, na Espanha, onde vive em um exílio simbólico desde 1992, quando o governo português, aparentemente sob pressão da Igreja Católica, impediu que seu romance supostamente herético, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, fosse indicado a um prêmio literário europeu.


 


Todavia ele mantém um “pied-à-terre” em um moderno bairro de classe média de Lisboa. O interior da casa, com a veneziana fechada para impedir a entrada do sol, é tão impessoal quanto uma suíte de hotel.


 


Pilar del Rio serviu café. Del Rio é uma jornalista elegante e eloqüente de Sevilha. Segunda mulher de Saramago – eles se casaram em 1988 -, ela é quase 30 anos mais jovem que ele. O casamento parece ser calorosamente simbiótico. Del Rio responde as correspondências de seu marido e serve como sua tradutora para o espanhol.


 


Logo Saramago desceu do estúdio no andar de cima e se sentou em uma poltrona. Conversamos por quatro horas. Seu tom era seco, professoral: ele parecia como se pudesse prosseguir por mais um dia ou dois sem transpirar ou esboçar um sorriso.


 


Nascido em 1922, Saramago cresceu em uma cidadezinha a cerca de cem quilômetros a nordeste de Lisboa. Seus avós maternos eram camponeses sem terra que criavam porcos. Em seu discurso do Nobel, Saramago descreveu seu avô Jerônimo como “o homem mais sábio que conheci”.


 


Nas noites de verão quando Saramago era pequeno, ele recordou, seu avô o levava para fora para dormir sob uma figueira e o presenteava com “lendas, aparições, terrores”. Era “um incansável rumor de memórias” que posteriormente alimentaram sua própria imaginação literária. Quando Saramago tinha dois anos, seus pais, à procura de emprego, mudaram a família para Lisboa.


 


Fantasia e alegoria são escapes naturais para escritores criados sob ditaduras políticas. Em 1926, quando Saramago tinha três anos, um golpe militar derrubou a república portuguesa. Pelos 48 anos seguintes, Portugal foi governado por um regime fascista cujo slogan era Deus, Pátria, Família.


 


No chamado Estado Novo do ditador Antônio Salazar, partidos políticos independentes e sindicatos trabalhistas foram proibidos, a imprensa foi impiedosamente censurada, e a economia passou a ser controlada por poucos oligarcas protegidos do Estado.


 


Saramago cresceu em um lar amplamente ancorado no sistema salazarista: seu pai foi um policial que, com o passar do tempo, ascendeu a chefe. “Ele não era da polícia secreta”, Saramago buscou esclarecer. “Ele era apenas um policial de rua, orientando o trânsito, uma profissão procurada por muitas pessoas sem instrução.”


 


Ricardo Reis


 


Apesar de José Saramago ter sido um bom aluno, seus pais não tinham recursos para mantê-lo na escola. Aos 13 anos, ele foi enviado para uma escola técnica, onde estudou para ser mecânico de automóveis. Lá, na biblioteca da escola, descobriu os poemas de um homem chamado Ricardo Reis, supostamente um médico que vivia no Brasil.


 


O que o adolescente não sabia era que Ricardo Reis era um dos pseudônimos inventados do grande poeta modernista de Portugal, o fantasticamente excêntrico Fernando Pessoa. Por mais que o jovem Saramago admirasse a contenção clássica de Reis, foi a frase “sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo” que lhe alfinetou com seu cinismo.


 


Tal frase, ele explicou em seu discurso do Nobel, no final inspirou o romance que é amplamente considerado como sendo sua obra-prima, O Ano da Morte de Ricardo Reis. O livro, publicado em 1984, é uma obra de rica ambigüidade, no qual Saramago lida mais diretamente com a ditadura sob a qual passou grande parte de sua vida.


 


O romance começa no inverno triste e cheio de enchentes de 1935. O protagonista Reis, ao tomar conhecimento da morte de seu amigo Pessoa, volta para Lisboa de seu exílio no Brasil para visitar o túmulo do poeta. O Reis de Saramago é um “homem sem qualidades” absurdista, e a ação no livro é mínima.


 


Reis, que é um monarquista conservador, prova ser um transmissor inconscientemente cômico das notícias do dia: “Graças aos céus ainda há vozes neste continente, vozes poderosas nisto, que estão preparadas para falar em nome da paz e harmonia, estamos nos referindo a Hitler. (…) Que o mundo saiba que a Alemanha buscará e acalentará a paz como nenhuma outra nação acalentou antes”.


 


Mas o que torna o romance tão tocante é o controle com que Saramago retrata a leve conscientização de seu herói de que suas próprias idéias preconcebidas não são mais adequadas a um entendimento dos horrores do mundo.


 


Ao longo das três décadas seguintes, Saramago trabalhou “na previdência social, como serralheiro, como mecânico, como gerente de produção em uma editora”. E também como tradutor, crítico em revista, colunista de jornal e editorialista. Aos 22 anos, ele se casou com uma secretária da companhia ferroviária estatal.


 


Portugal fascista


 


Em 1947, Saramago publicou seu primeiro romance – que nunca foi traduzido para o inglês. Demorou 30 anos para que seu próximo trabalho de ficção fosse lançado. “Eu não tinha nada a dizer, então não disse nada”, é a explicação caracteristicamente fleumática de Saramago. “Eu estava infeliz? De jeito nenhum.”


 


Nessa época, seu casamento acabou, e ele foi demitido de vários empregos por razões políticas. Em 1969, ele faz a transição que descreveu como a de um “cidadão crítico” para membro do Partido Comunista.


 


Não é difícil ver por que Saramago foi tentado pelo comunismo. Seguindo as prescrições da “realpolitik” da Guerra Fria, as democracias ocidentais aceitaram alegremente um Portugal fascista em instituições como a Otan. Por décadas, a mais forte oposição à ditadura de Salazar veio do Partido Comunista português, e seus membros sofreram de acordo.


 


Salazar morreu em 1970, e seu sucessor, Marcelo Caetano, provou ser incapaz de liberalizar um regime que era ridiculamente obsoleto. Portugal era o país mais pobre da Europa Ocidental. Em 25 de abril de 1974, forças armadas rebeldes esquerdistas lideraram uma revolta bem-sucedida.


 


Ao anoitecer, tropas ocuparam as duas principais cidades de Portugal, Lisboa e Porto, os líderes do governo estavam presos e as pessoas celebravam nas ruas. No primeiro ano e meio da revolução, três quartos da economia foram estatizados, e as colônias africanas de Portugal ganharam a independência.


 


Saramago foi nomeado vice-diretor do ex-fascista Diário de Notícias – um jornal recém-estatizado e dominado pelos comunistas. Sob sua influência, alegam as pessoas, ele se tornou um órgão não-oficial do Partido Comunista. A antipatia de muitos intelectuais portugueses por Saramago deriva desse período.


 


No ano seguinte, a revolução começou a desandar. O país foi debilitado por greves. Uma série de governos de coalizão divergentes entrou em colapso. Em novembro de 1975, houve uma tentativa fracassada de golpe por facções esquerdistas, após a qual o país caminhou gradualmente para uma linha social-democrata, voltada ao mercado.


 


Saramago foi prontamente demitido de seu cargo no jornal. “Foi um período sombrio para ele”, disse-me Zeferino Coelho, o editor português de Saramago. Saramago não concorda. “Ser demitido foi a maior sorte da minha vida”, ele me disse. “Me fez parar e refletir. Foi o nascimento de minha vida como escritor.”


 


Enxurrada de prosa


 


O primeiro grande sucesso de Saramago foi Memorial do Convento, de 1987. Ambientado no Portugal do século 18, o romance de Saramago conta a história de um trio de desajustados pegos pela Inquisição: um padre interessado em construir uma máquina voadora e os dois amantes que o servem – um ex-soldado maneta, chamado Baltazar, e Blimunda, uma filha de feiticeira.


 


A principal marca registrada de Saramago é sua pontuação, ou melhor, a falta dela. Suas ficções são construídas em sentenças longas interrompidas apenas por vírgulas, uma enxurrada de prosa na qual a observação narrativa, os pensamentos dos indivíduos e o diálogo não são marcados.


 


Além disso, muitos de seus livros fazem referência uns aos outros e todos os personagens falam exatamente da mesma forma, dando às suas conversas a sensação de um monólogo interno. É como se um rolo contínuo de filme mudo estivesse sendo projetado em um cinema vazio, exceto por um espectador extremamente tagarela.


 


Tal espectador é o narrador de Saramago, uma personalidade não identificada que preside todos os romances. O crítico literário James Woods descreveu a voz deste narrador como a de um “astuto velho camponês português, que sabe tudo e nada”.


 


Se Saramago e seu narrador não são a mesma pessoa, eles, entretanto, compartilham um pessimismo fundamental. “Eu não lhe direi nenhuma novidade se lhe disser que o mundo é um pedaço do inferno para milhões de pessoas”, me disse Saramago.


 


“Há sempre uns poucos que conseguem encontrar uma saída, os seres humanos são capazes do melhor e do pior, mas você não pode mudar o destino humano. Nós vivemos em uma era sombria, na qual as liberdades estão diminuindo, em que não há espaço para críticas, na qual o totalitarismo – o totalitarismo das corporações multinacionais, do mercado – não precisa nem mais de uma ideologia, e a intolerância religiosa está em ascensão. 1984, de Orwell, já está aqui.”


 


O Evangelho Segundo Jesus Cristo, publicado em 1991, é a obra mais irritantemente subversiva de Saramago. O ponto de partida de seu romance é o Massacre dos Inocentes, quando Herodes, o rei romano da Judéia, toma conhecimento de que o futuro rei dos judeus tinha acabado de nascer em Belém e ordena a morte de todos os meninos recém-nascidos daquela aldeia.


 


Na versão de Saramago, José, o marido de Maria, ouve por acaso a sentença coletiva de morte e consegue esconder seu próprio filho, abandonando os demais à morte. É, portanto, em expiação ao pecado de seu pai terreno pelo conluio indireto com a iniqüidade de Herodes, assim como pela de Deus em permitir que o massacre ocorresse, que Jesus é posteriormente forçado a dar sua vida. Na cruz, o Jesus de Saramago pede à humanidade que perdoe Deus por seus pecados.


 


O Evangelho polarizou leitores, tanto em Portugal quanto no exterior, e levou o autor ao exílio simbólico auto-imposto nas Ilhas Canárias. O efeito sobre a obra de Saramago é evidente. Seus romances nas Ilhas Canárias são parábolas austeras e admoestatórias, além de freqüentemente ocorrerem em uma paisagem urbana alegórica tão estilizada quanto um jogo de computador.


 


Em um livro como As Intermitências da Morte, que será publicado nos Estados Unidos no ano que vem, seu assunto não é nada menos do que o desatino da busca do homem pela vida eterna.


 


A cegueira na tela


 


Para alguns observadores, o exílio de Saramago o tornou menos relevante do que outros grandes portugueses contemporâneos. Para outros, Saramago assumiu o papel de uma consciência mais universal, dando a suas fábulas literárias sobre as falhas da democracia ou a tirania das corporações um maior alcance.


 


Para o diretor Fernando Meirelles, que está filmando Ensaio sobre a Cegueira, este universalismo foi a grande conquista de tal obra. “É uma alegoria sobre a fragilidade da civilização”, me disse Meirelles.


 


“Há dez anos, eu queria que meu primeiro filme fosse uma adaptação do livro – eu fui atraído pelo paradoxo de fazer algo visual sobre a cegueira -, mas Saramago disse não. Tanto Whoopi Goldberg quanto Gael García Bernal tentaram comprar os direitos; ele recusou. Finalmente, minha produtora e meu roteirista vieram às Ilhas Canárias e passaram dois dias com Saramago e o convenceram.”


 


Atualmente Saramago está planejando seu próximo romance. “Talvez seja meu último livro”, ele arriscou durante nossa conversa em Lisboa. “Quando termino um livro, espero pela próxima idéia – o que às vezes leva muito tempo, e me preocupo. Quando terminei As Pequenas Memórias, eu me perguntei se o ciclo estava completo. Pela primeira vez na minha vida, tive uma sensação de finitude, e não foi um sentimento agradável.”


 


Ele olhou para a mulher com quase um brilho nos olhos e disse para ela: “Se eu tivesse morrido antes de conhecer você, Pilar, eu teria morrido me sentindo muito mais velho”. Ele prosseguiu: “Aos 63 anos, minha segunda vida começou. Não posso me queixar. As coisas que você considera importantes não são tão importantes. Eu ganhei um Prêmio Nobel. E daí?”