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Por que a mídia adota o calypso, mas não engole o rap?

Por Henry Burnett *
Há mais de uma década o mercado fonográfico brasileiro começou a sua mais radical transformação. Compositores, bandas, produtores, críticos e todos os envolvidos na complexa rede que dá sustentação à música brasileira viram os mo

Sem falar que o empresariado especializado não deixou de exercer mais o poder que tinha antes; foi, portanto, uma crise positiva. A despeito da pequena revolução, essa autonomia também oculta algumas peculiaridades. Os ''movimentos musicais'' criados pelo mercado fonográfico, como o pagode, a axé-music, o sertanejo estão suspensos, como resultado direto da perda de poder da indústria ''oficial'' da música.


 


Mas não só: essa mudança também se relaciona com o amadurecimento geral da população do país – afinal, política e cultura estão ligadas de forma profunda, ainda que isso seja constantemente esquecido. As pessoas agora escolhem o que querem ouvir com mais liberdade, como mostra uma pesquisa divulgada pela ''Ilustrada'', da Folha de S.Paulo (22/7/2007).


 


O que poderia ser acrescentado ao resultado da pesquisa, é que essas escolhas em nada se distinguem daquelas impostas em épocas recentes – e que, ao contrário, mesmo compositores lançados pelas multinacionais da indústria fonográfica ainda aparecem na pesquisa, como é o caso de Zezé Di Camargo.


 


Ser ou não ser comercial


 


Ocorre que, no lugar dos movimentos artificialmente criados, outros quase movimentos despontaram de modo independente na cena da música, ora positivos ora nem tanto: o mangue-beat de Chico Science é o exemplo mais importante; alguns socialmente determinantes e vivos, como o rap, e outros, que parecem não passar de apenas um grupo, como o calypso.


 


Pensando no mangue-beat como um último movimento dotado de um líder, podemos dizer também que foi a última aparição de um cantor-compositor nos moldes da MPB tradicional. Os outros dois, rap e o calypso, são forças midiáticas de grande intensidade, mas não se equivalem de um ponto de vista social.


 


Por pouco a banda Calypso não foi gestada num escritório empresarial. Poderia ter sido – prova inequívoca é que recentemente a gravadora Som Livre contratou esta banda -, mas é mais difícil imaginar os Racionais MC's numa reunião com João Araújo, o empresário da gravadora.


 


Não há nenhuma condenação no fato de a música comercial brasileira ser… comercial. De certa forma toda a MPB o é, por princípio. O que o contrato da banda Calypso com uma gravadora ligada à rede Globo mostra é que, nesta área, as coisas se movimentam de forma extremamente rápida e quase sempre de modo pouco compreensível.


 


O fato de ter vendido milhões de discos sem nenhum vínculo contratual e agora, público consolidado, vendas estáveis, a banda tenha resolvido assinar contrato é um lance comercial meio inexplicável. Quem reflete sobre a música popular no Brasil, fora os puristas, podia ver na banda um tipo de ''resistência'', agora perdida. Pura ingenuidade.


 


Quem entra no ar


 


No entanto, contra a afirmação do antropólogo Hermano Viana de que ''a pesquisa revela algo que já percebíamos, mas não tínhamos dados para provar: há uma nova realidade na indústria cultural brasileira'', parece que há um grande equívoco.


 


Há tempos programas de TV aberta já haviam levado Joelma e Chimbinha para exibições em nível nacional. Faustão (Globo), Gugu (SBT), Gilberto Barros (Bandeirantes, esse uma espécie de ''mecenas'' da banda), todos sacaram a força do ritmo e a empatia absoluta que causava em crianças e até em seus pais.


 


A dupla forçou o convite, atropelou o esquema ''normal'' – antes intermediado por empresários e contatos oficiais com gravadoras – e arrombou a porta; ponto para eles. Uma vitória? Apenas pessoal, jamais social. Fora os grandes cânones da MPB, ninguém vai a um programa de auditório na TV aberta no Brasil sem que seu apelo popular seja reconhecido e consolidado.


 


Quer dizer, a banda Calypso é uma espécie de substituto independente dos falsos movimentos de antes, uma nova febre, de menos extensão que as anteriores, ainda que seja importante por revelar um ritmo amazônico-caribenho que, de outro modo, jamais chegaria aqui -a não ser como chegou o açaí: com banana e granola e sem farinha de tapioca.


 


Acontece que entre uma criação industrial e um fenômeno independente existe o público, o povo. Ninguém lembra muito dele. Aí as coisas não apenas deixam de ser tão passíveis de ordem, como elas são completamente imprevisíveis. É aí que entra o rap. Uma coisa é o Calypso, o Calcinha Preta e afins, outra é Mano Brown e o Rappin' Hood.


 


Tiro no pé


 


Sem essas distinções mínimas, podemos achar que tudo é válido, tudo é bom, e não é, porque senão bastaria dizer que se trata de preconceito de classe – e aí como explicar que Chega de Saudade seja uma canção diluída na memória coletiva, tendo sido criada no interior de um movimento burguês carioca como a bossa nova? Tom Jobim tem memória.


 


Da mesma forma, como parece querer nos convencer, parte da crítica musical ligada à TV Globo, representada por Hermano Vianna, não é porque a banda Calypso encerra uma vitória em suas conquistas pessoais – Chimbinha tem uma história similar a Zezé di Camargo e a outros que ''vencem na vida'' – que por si só ela tem importância histórico-cultural.


 


Se fosse assim, por que não se louva um negro pobre que vendeu milhões de discos e hoje segue uma carreira internacional sem precedentes, como Alexandre Pires? Simples, porque a crítica intelectual parece ter se cansado da ditadura Rio-São Paulo e resolveu abraçar a Amazônia, mas não percebe o quanto de etnocentrismo existe nessa postura ''salvadora''.


 


A Amazônia não faz música ingênua – o calypso é o resultado pueril de mais de 30 anos de história do brega paraense, que se construiu sobre uma auto-ironia e riso de si extraordinários e que agora são matéria da antropologia ''global''.


 


O rap, que tem uma importância capital para o país neste momento, não serve de exemplo para a TV Globo. Seu discurso antimelódico é a única força vital que milhões de pessoas têm para se expressar com orgulho diante da situação social que os oprime. Mano Brown é sua voz política. E não adianta tentar aliviar as coisas, levando-os para os programas de celebridades. É um tiro no pé.


 


* Henry Burnett é doutor em filosofia pela Unicamp e professor da Universidade Federal de São Paulo


 


Fonte: Trópico, com intertítulos do Vermelho