Rousseau e "o direito de obrigar o indivíduo a ser livre"

A frase do pensador franco-suíço, expressa em Do Contrato Social, é uma das mais surpreendentes soluções dadas ao clássico dilema entre liberdade e organização que desafiou teóricos da política em todos tempos.

Por Francisco Ferraz em seu blog

Dizia Jean-Jacques Rousseau:

"(…) Quem quer que se recuse a obedecer a vontade geral deve ser compelido pelos seus concidadãos a obedecê-la. O que nada mais é do que dizer que pode ser necessário obrigar um homem a ser livre (…)"

A ideia articula a liberdade individual com a vontade geral. Quando ambas coincidem, o indivíduo é plenamente livre. Quando divergem, as pessoas devem ser obrigadas a aceitar o ditame da vontade geral, porque somente assim serão livres.

Não é demais lembrar que Rousseau (1712/1778) é um dos inspiradores de textos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, produzida pela Revolução Francesa.

Trata-se de um dos famosos "philosophes" do século 18, mentores da revolução cultural do Iluminismo, que abalou os fundamentos da tradicional concepção da política, antes baseada na tradição, na religião e na desigualdade. Como tantos outros pensadores anteriores a ele, Rousseau, ao elaborar seu modelo de sociedade política, precisava resolver o conflito entre a liberdade e a organização. Concedido que o homem tem direito a ser livre, forçoso também é reconhecer que a vida em sociedade não é possível sem algum grau de organização.

Os extremos dessa polaridade são excludentes: uma sociedade em que cada um seja livre para fazer o que e quando quiser está fadada a se desintegrar, enquanto uma sociedade na qual todas as ações humanas estão sujeitas a regras que as disciplinem não tem espaço para a liberdade. A primeira frase de Do Contrato Social já enuncia o princípio básico da liberdade individual que Rousseau pretende resgatar:

"O homem nasce livre, mas em todos os lugares é um prisioneiro… Como esta mudança aconteceu? Eu não sei. O que pode torná-la legítima? A esta questão eu espero ser capaz de fornecer uma resposta." Foi no conceito da "vontade geral" que Rousseau encontrou sua resposta para o dilema.

Ela, entretanto, não deve ser confundida simplificadamente com a vontade da maioria, aferida por votação. Ao contrário, constitui uma manifestação da vontade coletiva obtida mediante um ritual próprio e específico, sobretudo numa sociedade em que não se admite a existência de grupos e representantes. A vontade geral, portanto, se manifesta numa assembléia de cidadãos, algo que corresponde à forma mais radical de democracia direta.

Ditadores do século 21

É óbvio que a influência revolucionária do pensamento de Rousseau conquistou as mentes por suas ideias gerais, os princípios que enunciava, a denúncia das formas de governo em existência – e não pelos detalhes logísticos sem os quais (para ele) os princípios não funcionariam. Sua teoria foi sendo "operacionalizada" enquanto os fatos se sucediam, tendo como principal campo de aplicação a Revolução Francesa.

Como tal, os detalhes incômodos e demasiado abstratos de manifesta inviabilidade foram sendo abandonados em favor dos princípios da soberania popular, da superioridade ética da vontade coletiva em relação à individual, da retórica dos direitos individuais e da Assembleia como sede que concentra o poder legítimo.

Com tal dissociação, alguns princípios ganharam vida própria, independentemente do contexto teórico no qual foram concebidos. Um deles é o princípio de que o interesse coletivo e o processo histórico podiam legitimamente restringir – e até mesmo revogar – os direitos individuais. Quem alcançasse o poder, se auto-legitimasse – fosse indivíduo, partido ou grupo organizado – e se auto-investisse da condição de representante do interesse coletivo ganhava o poder de impor sua vontade sobre os indivíduos, usando a força, se necessário fosse.

Ao agir assim, nada mais estaria fazendo do que obrigando os indivíduos a ser livres. Os totalitarismos do século 20 fartaram-se desse princípio, que, removido do seu contexto teórico, transmutava-se numa aberração, numa monstruosidade e numa violência sem limites. Tal "princípio enlouquecido" tornou-se, na verdade, um claro indicativo da mente totalitária. Sempre que indivíduos – ou grupos, ou partidos – arrogam-se a capacidade de conhecer melhor que os próprios indivíduos seus interesses (aqueles que "deveriam ter", de acordo com sua ideologia, mas que na prática, por alguma razão, "não têm"), estamos diante de um pensamento que não hesitará – se lhe for dada a chance – em "obrigar os indivíduos a ser livres".