Carlos Pompe: A renúncia de Bento XVI e os desafios ideológicos

O anúncio da renúncia do papa Bento XVI, a revelação do mundo corrompido abrigado no Vaticano, as manobras do papa para garantir que seu sucessor seja de seu grupo na hierarquia católica estão sendo analisadas por jornalistas e estudiosos de variadas tendências.

Por Carlos Pompe, para o Portal Vermelho

Confrontando a distância entre a pregação moralista e ética e a prática efetiva da entidade religiosa, não está descartado o aumento do indiferentismo religioso dentre os seguidores da Igreja de Roma. Mas resultará também na adesão de pessoas ao racionalismo, ao materialismo?

Karl Marx escreveu no Uma Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844): “O sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas”. A análise levava em conta o papel que era – e continua sendo – cumprido pela religião, num período em que se sucediam os abalos causados pelos avanços científicos nos dogmas bíblicos numa Europa oficialmente cristã. Um período em que os modos científico e religioso de considerar o mundo se contrapunham abertamente.

Mas, ao longo do século XX, cientistas e intelectuais de renome voltaram a buscar o “diálogo” entre o conhecimento científico e a visão teológica do mundo. Não poucas vezes, o mesmo pesquisador, pensador ou cientista que contribuía com seu trabalho para avançar o conhecimento da realidade objetiva, recusava a possibilidade de uma imagem racional do mundo que prescindisse de um criador.

Lenin, num texto de 1922, já denunciava a dependência “que possuem os intelectuais contemporâneos em relação à burguesia dominante” e acentuava que “a maioria esmagadora das tendências filosóficas da moda que surgem tão frequentemente nos países europeus” estão ligadas “aos interesses de classe e à posição de classe da burguesia”, deplorando “o apoio que esta presta a todas as formas de religião”.

Lukács, em Para a Ontologia do Ser Social, analisa as violações da razoabilidade da concepção do mundo que oferece “curso livre para as opiniões de acordo com as quais a necessidade religiosa não está em contradição com os fundamentos reais do ser da natureza”. Assim, um divulgador da ciência e especialista em física, como Marcelo Gleiser, por exemplo, adota o diletantismo ao criticar o ateísmo radical de Richard Dawkins porque “não acredito em extremismos e intolerância. … É a hipocrisia usada sob a bandeira da fé que deve ser combatida, não a fé em si”.

Ora, por traz desse posicionamento, opera uma tendência socialmente conservadora. A “fé em si” debilita a ideia de que a humanidade pode modificar sua vida terrena com meios terrenos. Num momento em que as classes dominantes empreendem um bombardeio ideológico para afastar as amplas massas da política e da ação mudancista, inclusive semeando a ideia de que toda a revolta é inútil, o debilitamento teórico do senso de realidade, o mascaramento do antagonismo entre a ciência e a religião favorece a confusão, a perplexidade.

Aos materialistas militantes – injustamente caluniados como torturadores por alguns propagandistas religiosos –, este momento de crise por que passa a Igreja Católica Apostólica Romana é uma oportunidade para contrapor à religião a concepção materialista, científica, do mundo e da sociedade. Demonstrar que a visão religiosa perdeu a energia para pôr objetivos concretos que levem à emancipação da humanidade.