Audálio Dantas e as novas trincheiras da reportagem

Como em filme açucarado de Hollywood, do tipo “admiradora secreta”, eu acompanho Audálio Dantas sem qualquer obsessão desde sua primeira e vitoriosa campanha a deputado federal, em 1978.

Por Christiane Marcondes

audálio dantas

Estava no primeiro ano de faculdade da primeira turma de jornalismo da PUC-SP e prestes a depositar meu primeiro voto nas urnas. Pesava sobre os meus ombros a candidatura do meu avô para o mesmo cargo de Audálio, concorriam pelo mesmo partido e ambos tinham uma base eleitoral forte na mesma região, o Vale do Paraíba, antiga terra do café e da minha família.

Audálio levou a melhor em Taubaté e no meu coração. Votei no jornalista que expandiu a luta de um sindicato para o campo social antes mesmo dos metalúrgicos do ABC paulista. Fez isso em 1975, quando presidiu por breve tempo e em circunstâncias trágicas o sindicato da nossa categoria. Mal começou o mandato, enfrentou o “assassinato” de Vladimir Herzog no Doi-Codi. Tomou posição, se juntou às massas e daí para frente seguiu embrenhado na luta pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos.

Nunca contei ao meu avô que o traí com o Audálio e nunca esperei conhecer o destinatário do meu voto. Aconteceu em um encontro prosaico no supermercado e o curto episódio não teve continuidade, apesar da protocolar troca de cartões. Em outra data, muitos meses depois, tive o prazer de revê-lo em um lançamento de livro do Ruy Castro, novamente por obra do acaso, e, para ser reconhecida, me identifiquei pela segunda vez como sua eleitora na primeira candidatura.

O terceiro encontro foi planejado, uma entrevista, esta. Pretendia publicá-la em breve, a vida fez meia volta e a hora certa só surgiu agora. Audálio chegou apressado ao café em que eu o entrevistaria, tinha uma reunião logo depois e um texto para escrever. Fiquei constrangida, precisava ser objetiva e rápida, ir ao assunto sem aquecimento. E foi o que fiz, desajeitada, tentando seguir direto ao tema que, na época, me inquietava:

– Você viveu o jornalismo nos tempos da ditadura, havia…

Ele não me deixou concluir:

– Medo…

Pensei que sim, medo da morte, tortura, ameaças reais…

– Pois é, e, no entanto, as pessoas expunham suas convicções, escreviam, manifestavam-se contra a censura e a violência. Qual é o medo hoje?

– De perder o emprego.

– Mas então esse medo é…

– Institucional?

Não, não pensara nisso. Mas achei a resposta boa, por um lado. Por outro, se o medo no Brasil é uma instituição, só poderá ser abalado quando o país estiver abalado em seus alicerces institucionais, o que não é o caso hoje.

Demos continuidade a algo que nem era entrevista nem conversa. Audálio elogiou o Wikileaks e classificou os blogueiros de “onanistas”, porque não falam pela categoria, mas por si mesmos, explicou-me. Entendi, emendei na minha cabeça, blogueiros são uma categoria de comunicadores e não uma categoria profissional, não precisam ser jornalistas, não seguem dogmas ou os ultrapassados leads.

O blog, em si, não é um mau caminho para o jornalismo, parece-me, mas uma saída de emergência. Se o circo pega fogo e o circo é a arena de interesses de uma grande empresa, como a Globo, o jornalista pode se acostumar à alta temperatura e continuar na rotina do salário no final do mês ou pode cair fora e criar um blog. Caso de Paulo Henrique Amorim, Paulo Moreira Leite e tantos outros.

E por falar em Amorim, toquei no assunto “rótulos”, porque há redações entre as ditas alternativas em que tal assunto ou tal pessoa (por exemplo, um ex-Globo) não passa pela porta de entrada, fica rotulado como persona non grata. Audálio perguntou se eu lera a entrevista da Míriam Leitão, na última edição de “Negócios da Comunicação”, publicação que dirige atualmente.

– Não, respondi.

– Míriam mostra um outro lado, muito além da jornalista econômica, o da defensora dos direitos humanos, para o qual pende cada vez mais.

Mensagem dada: não se julga pela aparência ou nadando apenas na superficialidade dos fatos. Pessoas mudam, há que se investigar antes de sacramentar verdades eternas.

Audálio aproveitou para falar da Comissão da Verdade, ele acredita que irá estimular mais matérias reveladoras de episódios encobertos pela censura.

Questiono: “Mas o braço de ferro com o grupo de resistência à abertura dos documentos da ditadura continuará grande, não é?”

Ele concorda e pega uma fatia de pão no meu prato, se justifica: “Estou com mais fome do que pensei”.

E eu também, pensei. Conto que, coincidentemente, uma amiga está fazendo um documentário com a Míriam Leitão, chama-se: “O Brasil deu certo: e agora?”. Questiono:

– O Brasil deu certo?

– Ainda não!

Faço referência às greves, reivindicações de categorias, ele rebate:

– Tenho ressalvas com relação às greves que estamos assistindo, são de servidores públicos, mas não vou entrar nesse assunto, é longo.

Manual de redação: é proibido questionar

E a minha cabeça volta ao medo, o medo de perder o emprego que faz o jornalismo perder sua identidade — a reportagem — e, assim, sua voz de denúncia, porque, se comunicação é negócio — e isso não se discute, já havia me alertado Audálio logo no início da conversa – o jornalismo sob o ponto de vista da profissão, não é. E concordamos aqui, Audálio e eu, que não há contradição no fato.

Reiteradas vezes, Audálio afirma que o repórter busca a verdade, escorregadia, difícil, mas é na direção desse peixão que deve ser jogada a nossa isca de perguntador. Para ele, o futuro do jornalismo impresso está na reportagem.

Concordo. Mas onde está o repórter na cena atual do jornalismo? Procuro na redação e não encontro. Audálio o identifica na literatura. Afirma que reportagem tornou-se objeto do jornalismo literário. No caso dele, a julgar pela obra recentemente lançada “Tempo de Reportagem”, pela editora Leya, seus textos só podem mesmo ir parar nos livros, descrevendo personagens do povo, histórias inusitadas, comunidades longínquas com requintes de detalhes que transportam leitores à cena e ao desconsolo. É um bilhete de ida a Brasis atemporais, que foram reconstituídos, primeiramente, em páginas de revistas como Cruzeiro ou Realidade, mas figuram hoje em obra atual, reveladora. São 13 registros pinçados por Audálio de um longo trabalho na imprensa na condição de repórter, daquele tipo que, como se diz no jargão do ofício, não pode ter medo de gastar as solas dos sapatos, pois é nas ruas que estão as boas histórias e não no ar condicionado das redações.

A segunda guerra de Vlado

Agora temos novo livro de Audálio (já tem 11 outros títulos no mercado), “A segunda guerra de Vlado Herzog” (Editora Record), outro gênero, ainda assim reportagem. Narra sob um ponto de vista privilegiado, o de um protagonista, a história do sequestro e morte de Herzog, expondo fatos sob todos os ângulos, apresentando os personagens envolvidos, as manifestações e desdobramentos que envolveram o assassinato do jornalista nas dependências do Doi-Codi de São Paulo, em 1975.

Eram tempos de força bruta contra réus não julgados, sadismo voraz que não poupava nem altas patentes de ameaças descabidas, “fardas contra fardas” e busca da justiça inalcançável. Há testemunhos de murros na mesa de Geisel, presidente do país na época, indignado com a violência gratuita. Reagiu irado como tantos militares e até governadores, como Paulo Egydio de Moraes, uma das primeiras autoridades a se dispor a depor, agora, na Comissão da Verdade.

Geisel, Paulo Egydio, até mesmo Golbery, assistiram à caça sangrenta ao chamado “fascismo vermelho comunista” (e nem mesmo os não comunistas ou não militantes escaparam dos sequestros, porque o serviço de informações do Exército levianamente concluía que havia ativismo sem apurar fatos, torturando e matando inocentes, como descreve Audálio Dantas em seu livro).

Dantas, como presidente do Sindicato dos Jornalistas quando Vlado foi assassinado, conseguiu controlar ânimos alterados, organizar a luta do povo em torno de objetivos construtivos e alentadores, sensibilizou aliados de peso e, mais que tudo, potencializou a solidariedade nascente — o combustível que fortaleceu a luta, que resgatou dissidentes, que acalmou exaltados e acolheu diferenças.

Audálio não se ufana, conta que tinha medo, mas estava em um papel estratégico e cumpriu-o como era seu dever, diz que o avanço nas reivindicações sociais foi uma conquista cívica, não aceita nem o papel de condutor do processo. Certamente o episódio Vlado rendeu efeitos colaterais que os carniceiros do Doi-Codi não esperavam: reanimou a desmaiada democracia, restabeleceu a força de altas patentes das Forças Armadas, como o próprio General Geisel, no comprometimento com a “distensão”, e pavimentou o caminho para que Figueiredo, o último presidente da era militar, finalmente concretizasse a “abertura”.

No livro de Audálio, já lançado em São Paulo e Porto Alegre, o autor dá o nome de todos que sofreram, lutaram, partiram num “rabo de foguete”, como cantou Elis Regina no hino dos exilados, que, afinal, se referia a todos que viveram a ditadura, exilados em terra pátria, abandonados à própria sorte, despojados de sonhos e ideais, indefensáveis até mesmo por autoridades que discordavam da tortura e do medo. Outra vez o medo, “a mais triste das paixões tristes”, segundo Spinoza.

Audálio também sentiu e conhece o medo, mas soube esgrima-lo com altivez e bom senso, venceu-o no enfrentamento da morte de Herzog. É exemplo de líder, ser humano e escritor; ou devo nomeá-lo, especialmente aqui, “repórter”? Não é qualquer escritor que se esmera em basear descrições nos fatos e datas precisos, que reconstitui embates temperando angústia e suspense em um clímax que eletriza o leitor, apesar de todo mundo conhecer o final da história.

É um reviver para tantos, uma descoberta para outros tantos, um encontro de todos com a realidade de um tempo que até hoje impregna nosso presente e futuro. O passado ainda não foi exorcizado, seus efeitos seguem. Tomara sirvam de pedestal para a verdade que nossos governos e os “porões” da ignomínia nos devem há décadas.

Serviço:
As duas guerras de Vlado Herzog
Autor: Audálio Dantas
Editora: Civilização Brasileira, 2012

Lançamento:
Rio de Janeiro
Domingo (11/11), a partir das 19h
Livraria Travessa do Shopping Leblon (Av. Afrânio de Melo Franco, 290 / 2º. piso)

São Paulo
Terça-feira (13/11), a partir das 19h
Sindicato dos Jornalistas (Rua Rego Freitas, 530 – sobreloja)