Camarada Grabois, Presente! Até a vitória, Sempre!

Prefácio a Maurício Grabois

Por João Quartim de Moraes (*)

Quem não se lembra do poema de Bertolt Brecht sobre os que lutam um dia ou alguns meses ou até anos a fio? São bons, alguns muito bons. Mas imprescindíveis são os que lutam a vida toda. Do gesto à palavra, do punho erguido à mão estendida, do tiroteio ao debate, na ofensiva e na defensiva, são militantes imprescindíveis como o aqui biografado que conferem consistência histórica aos partidos portadores de um programa revolucionário. A biografia de Maurício Grabois por Osvaldo Bertolino nos põe, com efeito, diante de uma destas lutas que duram a vida inteira e que, por isso mesmo, se fundem com a causa que as animou: a trajetória de sua militância é inseparável da história do combate comunista no Brasil. Ela começou no início dos anos 1930, quando, mal saído da adolescência, deixou Salvador, sua cidade natal, a fim de cursar a Escola Militar no Rio de Janeiro. Para o filho de uma família pobre de imigrantes judeus que haviam abandonado a Europa Oriental, onde grassava um virulento antissemitismo, era este o mais acessível caminho para prosseguir os estudos.

Naqueles tempos turbulentos (até por estarem carregados das mais elevadas esperanças), o grandioso exemplo da Revolução bolchevista de 1917, brilhando no alto do firmamento histórico, cativava, nos quatro cantos do planeta, as melhores inteligências e os mais generosos corações. Na escola e na tropa, onde serviu como soldado raso, Maurício Grabois encontrou militantes que lhe abriram as portas do Partido Comunista do Brasil, então completando sua primeira década de existência. Estava a tal ponto fixado o rumo de sua vida que, já em 1934, tornou-se o responsável nacional de agitação e propaganda na Juventude Comunista. O fracasso do levante da Aliança Nacional Libertadora em novembro de 1935 e a atroz repressão policial desencadeada em seguida obrigaram os comunistas que não estavam presos a atuar na mais estrita clandestinidade. Superando incontáveis dificuldades, conseguiram, embora precária e irregularmente, manter ativa a imprensa partidária, notadamente A Classe Operária. Grabois foi um dos principais animadores desta denodada resistência política nos “subterrâneos da liberdade”.

Em 1940, a polícia do Estado Novo logrou desmantelar boa parte do que restava da direção clandestina do PCB. Preso em abril de 1941, Grabois foi absolvido em julho de 1942, a tempo de participar da reconstrução do Partido e da reconstituição de seu núcleo dirigente, consolidada na chamada Conferência da Mantiqueira (agosto de 1943). Ao emergir das ásperas provações dos anos anteriores, o comunismo brasileiro tinha preservado os traços essenciais daquele novo tipo de partido revolucionário da classe operária fundado por Lênin. Provara, a exemplo dos protagonistas da grandiosa revolução russa de 1917 que marcara indelevelmente a história do movimento operário e da luta pelo socialismo no século XX, sua capacidade de lutar permanentemente em qualquer situação, tanto nas frentes de massa quanto nos subterrâneos da clandestinidade, de pensar com rigor teórico e de agir com firmeza e consequência, de usar todas as tribunas possíveis para denunciar, criticar, esclarecer, mas também para propor e orientar.

Componente essencial do leninismo é a imprensa comunista, centro nevrálgico da articulação da teoria e da prática, do cérebro e do corpo do coletivo partidário. Ao longo do período que vai do abrandamento do Estado Novo à torpe cassação dos mandatos e do registro do PCB, foi estupenda a contribuição de Grabois para fortalecer os meios de informação e de propaganda sem os quais não seria possível desmascarar, perante as massas, as “intrigas e mentiras difundidas por uma imprensa venal, planificada por um centro diretor dirigido pelo imperialismo”. Durante aqueles anos, camadas sempre mais amplas da classe operária e do povo em seu todo passaram a ler e discutir Voz Operária, Imprensa Popular (que atingiram tiragens notáveis) e dezenas de outros diários, de alcance regional ou local, além de muitas outras publicações, no âmbito das fábricas e sindicatos. Longe, entretanto de sucumbir à autossatisfação própria aos medíocres e aos burocratas, ele estava sempre atento ao que faltava para ser feito.

O Comitê Central formulara o Plano Lênin visando a garantir a mais larga difusão do Programa partidário. Quatro milhões de exemplares foram editados. Segundo Grabois, entretanto, mais do que comemorar, cumpria continuar avançando: quatro milhões era um número insuficiente para um país de 57 milhões de habitantes!

Também notável foi o desempenho de seu mandato de deputado federal pelo PCB durante o curto período de legalidade de 1945-1947. O leitor aqui encontrará trechos de suas mais importantes intervenções na tribuna da Câmara. Encontrará também, muito pertinentemente selecionadas por Osvaldo Bertolino, algumas de suas mais importantes tomadas de posição nos debates que precederam e prepararam o 5º Congresso. Vale salientar, em especial, o artigo “Duas concepções, duas orientações políticas”, marco decisivo do debate teórico-programático que culminaria na cisão do núcleo dirigente histórico do movimento comunista do Brasil, do qual são reproduzidas longas passagens.

Grabois nele critica os fundamentos teóricos da linha política configurada na Declaração de Março de 1958, reconhecimento oficial do abandono da linha esquerdista dita do Manifesto de Agosto (de 1950), mas também geralmente considerada o protocolo programático de uma virada à direita que levaria a sucessivas rupturas da unidade partidária. Concede à Declaração “o mérito de destacar o processo em curso do desenvolvimento do capitalismo no país”, de mostrar “a necessidade da plena utilização das possibilidades legais”, de pôr em relevo “a importância do movimento nacionalista” e a “necessidade […] de melhores métodos de trabalho com os aliados” e de ter rompido “com a concepção de que o caminho da revolução no Brasil teria que ser, exclusivamente, através da violência”. Mas ela “exagera a importância do desenvolvimento do capitalismo, toda a sua orientação decorre deste desenvolvimento, está inteiramente a ele subordinada”. Ela “embeleza o capitalismo” e idealiza a burguesia, superestimando sua contradição com o imperialismo.

Tão importante quanto sua crítica concreta destes desvios concretos é a lucidez com que os relaciona ao abandono do materialismo dialético por um evolucionismo vulgar, gradualista em política e oportunista na teoria: segundo a Declaração, “a democratização é uma tendência permanente na vida nacional, uma decorrência do desenvolvimento do capitalismo (1). Assim, a democracia aparece como inerente ao capitalismo, tese tipicamente revisionista”. O leitor ganhará muito em ler (ou reler) este artigo crítico com a maior atenção. Para além das evidentes e complexas diferenças entre a situação concreta de então e a de hoje, ela oferece a chave mestra para a análise e compreensão do que estava efetivamente em disputa ao longo das crises e fraturas decisivas para a história político-partidária do comunismo brasileiro, a começar daquela de 1961-1962.

O objetivo da corrente vitoriosa no 5º Congresso era conferir caráter prioritário à luta eleitoral e à aliança com a burguesia nacional. A luta pela legalidade e pelos direitos eleitorais, como qualquer outra forma de luta, constitui, na teoria leninista, uma questão de tática e não de princípio. Mudar de tática é adequar as forças da revolução a uma situação nova. Persistir na mesma tática numa conjuntura distinta é sinal de inércia ou de dogmatismo sectário. A dificuldade, em 1961-1962, estava na avaliação da mudança de tática. Correspondia a uma exigência da nova situação política do país, como sustentavam os que detinham o controle do aparelho partidário, ou, ao contrário, como sustentavam seus opositores (Maurício Grabois, João Amazonas, Diógenes Arruda, Pedro Pomar e outros), que ela estava servindo de pretexto para o abandono da perspectiva revolucionária?

Pelo menos num aspecto decisivo, a preservação histórica do Partido enquanto combatente de vanguarda pelo socialismo, os fatos deram razão aos que, em 1962, tomaram a decisão de “reorganizar o Partido Comunista do Brasil”. Vale notar, entretanto, que, a despeito de sustentarem interpretações incompatíveis sobre a hierarquização e articulação das formas de luta e das alianças de classe, os comunistas do Brasil e os comunistas brasileiros mantiveram a mesma concepção de fundo sobre as transformações que a sociedade brasileira exigia: eliminação do latifúndio e supressão da dominação imperialista para abrir a via ao pleno desenvolvimento das forças produtivas, em síntese, o programa nacional-democrático da revolução brasileira.

Sempre que mantiveram estes dois objetivos unidos, em tensa sinergia, os comunistas estiveram na linha de frente da luta revolucionária. Já os que renunciaram ao comunismo e erigiram a democracia em panaceia universal, dissociando-a da luta anti-imperialista, foram levados a reduzir o programa nacional-democrático a seu mesquinho conteúdo burguês: um crescimento econômico manietado pela lógica da acumulação financeira imperialista, uma democracia rebaixada ao mercado eleitoral liberal. Pela mesma razão que nunca esquecerão lutadores da estatura de Maurício Grabois, os que mantêm erguida a bandeira do comunismo em nosso país não esqueceram esta lição. Os capítulos finais, como não poderia deixar de ser, narram o último grande combate de Grabois, à frente da Guerrilha do Araguaia. O tempo dos assassinos, dos curiós, dos sérgios fleury e congêneres, é também o tempo dos verdadeiros heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de pé, olhando a morte na cara.

Impossível terminar sem a saudação tão entranhadamente latino-americana:

Camarada Grabois, Presente! Até a vitória, Sempre!

(1) Ênfase nossa, JQM.
(*) Professor universitário, formado em Filosofia e em Direito na Universidade de São Paulo. Em 1968-69 participou da resistência clandestina à ditadura militar. Pesquisador senior do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Brasília), onde tem desenvolvido, nos últimos seis anos, estudos sobre o materialismo antigo (Epicuro e Lucrécio). Seus temas centrais: história do pensamento político, materialismo antigo e moderno, marxismo, instituições brasileiras.