Mérito no julgamento de projetos nas leis de incentivo à cultura

O discurso de “mérito”[v] apresentado como uma escolha racional[vi], com critérios objetivos para escolha de projeto em editais de lei de incentivo pode ser entendido como apenas uma mentira que tenta se apropriar de legitimidade, ao criar um sistema de exclusão que, no entanto através do discurso procurar iludir que não existe manipulação e que não existe apropriação que bloqueie os demais sujeitos.

Por Manoel J de Souza Neto*, em Observatório da Cultura

Nas políticas culturais, a verdade (o real[vii]) das relações intimas entre classes beneficiadas, o discurso do mérito, júris e burocracia é outro, diferente de se tratar de cultura, revelando o ser um debate que esta no centro das relações de poder.

2 – Onde, a burocracia age em consonância com elites no poder, os fatos se revelam, comprovando-se esta afirmativa na medida em que a principal contrapartida destes projetos não são as políticas publicas, mas apenas dar publicidade em beneficio das gestões publicas, servindo ainda aos interesses de amigos e parceiros que apoiaram campanhas eleitorais. Isso pode ser verificado em qualquer projeto cultural, cujas logomarcas de realização das gestões públicas e seu parceiros ficam obrigatoriamente em destaque.

3 – Estes editais estabelecem regras com base em códigos próprios e restritos ao campo dominado por determinada camada das classes, portanto “elites de classe” no conceito de Perissinoto e Codato[viii], que por sua vez controlam as indicações dos jurados que irão usar como critérios os currículos profissionais e de formação que estabeleçam vinculo pessoal e social com suas classes ditas “superiores”, ou seja, o próprio mundo da arte, mas deste somente serão beneficiados os “artistas instituídos” no conceito atribuído por Teixeira Coelho[ix], pois não se trata apenas do valor artístico o critério, mas o que determina a aprovação é a rede de relações que o artista estabelece com o grupo dominante e a burocracia.

4 – De fato, existe ainda uma mobilidade social, que pode elevar alguns poucos nomes periféricos para dentro dos grupos centrais, considerando que a estrutura não é um simulacro permitindo que novos artistas sejam estratificados pela estrutura, o que ocorre justamente no sentido atribuído por Althusser[x], como forma de eliminar a ação de agentes mais capacitados dos movimentos sociais periféricos, para que não se tornem lideres de classe, sendo absorvidos pelo sistema, portanto mais claramente cooptados.

5 – O discurso do mérito serve como instrumento para mascaramento do real, estando na verdade a serviço da legitimação das elites de classes, com intenção de gerar vantagens para que o poder seja mantido pelas elites, suas supostas tradições, e “diferenciação” no conceito de Pierre Bourdieu no livro A distinção[xi], portanto uma fabricação de valores para se estabelecerem diferenças com demais classes para afirmativa de grupo social. Todos os grupos descontentes são desqualificados em seus discursos, erros de português, vestimentas, valores, visões políticas, no mesmo sentido atribuído por Elias[xii], como conflito entre centrais e periféricos como sendo uma forma de organização e separação entre os grupos, feita através de violência simbólica, novamente citando Bourdieu[xiii].

6 – O que foi verificado em todos os casos de grupos beneficiados pelas verbas públicas de cultura que foram estudados, é a concentração de vantagens nos mesmos nomes enquanto não mudar o grupo político no poder[xiv]. A competição pelos postos, e cargos na democracia conforme o conceito de participação de Pateman[xv] e de competição nos espaços democráticos segundo Schumpeter[xvi] determinariam que a vitoria do grupo dominante, se da previamente na conquista nos espaços de representação política junto ao poder publico, mas que somente são reconhecidas como lideranças, aqueles que ocuparem posição consonante com a burocracia, os demais continuaram excluídos, pois não são reconhecidos como representativos pelo grupo no poder.

7 – Os critérios de julgamento observados são estabelecidos dentro da lógica pessoal do reconhecimento de que características que determinariam afinidade entre jurados e grupos artísticos que se enquadrariam dentro das expectativas dos formuladores dos editais, que possam assegurar a manutenção das tradições culturais destas elites, eliminando as chances dos demais. E isso ocorre anteriormente ainda na elaboração dos editais que teriam uma única função – não determinar vencedores, mas criar limitações para a ampla maioria da população, portanto função de exclusão. Vencer é só um detalhe desde que o grupo dominante continue vencendo, seja lá quem for, mas que pertença ao mesmo grupo social.

8 – Na essência o principio de “demagogia” atribuído por Aristóteles[xvii] como a corrupção da “democracia”, é a única definição adequada para analogia ao sistema estabelecido nas leis de incentivo à cultura, com seus colegiados, conselhos, júris e demais entes da estrutura de participação democrática. A corrupção velada é tratada como sistema méritocrata e legitimador, que na essência exerce absolutamente o contrário das funções constitucionais das políticas públicas de cultura, posto que as leis de incentivo resultam em processos seletivos cuja única função é justamente a exclusão mencionada.

9 – A estrutura que determina, é lingüística, por estabelecer códigos e significados que denotam os vencedores desde a formulação dos editais até as regras de julgamento dos júris. Os editais excluem possíveis concorrentes das classes culturais periféricas com normas, regras, documentos, portfólio e apresentações teóricas que nem sempre são possíveis para as manifestações culturais, o que em nada desqualifica a manifestação, mas impede o acesso destes aos editais. Por outro lado as regras de escolha dos vencedores nos júris são sempre subjetivas, na verdade inexplicáveis e injustificadas. Os jurados convidados pelos grupos que estabelecem as regas supõem-se serem altivos portadores de valores iguais as dos demais membros do grupo dominante e que o mesmo ira satisfazer as expectativas de determinação de uma vitória coletiva de classe, portanto garantindo a supremacia absoluta de todas as etapas do processo. Se ao acaso o jurado não cumprir com estas funções esperadas será descartado como jurado em editais seguintes.

10 – A escolha do jurado pressupõe, em um acordo prévio, ao qual não requer nenhuma combinação ou fraude, pois é estabelecida nos código de conduta simbólico que se espera de um elemento da mesma classe, que este fará a defesa do grupo. Porem a corrupção não pode ser descartada como hipótese, dada a constatação da existência de uma sociedade baseada em compadril, coronelismo associada a uma burocracia patrimonialista e corrupta no Brasil[xviii].

11 – Estes editais carregam costumes, cultura institucional, valores dos gestores públicos, determinada dentro de um conjunto de leis, estruturas burocráticas, corpos de funcionários, protegidas por equipamentos culturais e estrutura de ensino, que consolidam o poder simbólico existente, dentro daquilo que Althusser chama de Aparelhos Ideológicos de Estado. Sendo esta combinação entre organismos públicos de cultura, seus programas, editais e os signos que carregam, determinantes no conjunto de exclusão, pois neles se afirma um conjunto de poderes aos quais as classes excluídas não conseguem combater, reforçando em parte o conceito de lutas de classes defendida por Marx[xix].

12 – As políticas culturais não atendem os periféricos o que fica evidente com os números que demonstram que a lei de incentivo não é distributiva, ao contrario, em todos os níveis gera distorções e assimetrias sociais e concentração, isso segundo dados atualizados do IBGE, do IPEA e do próprio MINC[xx].

13 – As classes periféricas, no entanto sustentam e defendem o modelo vigente (que se replica desde a lei federal até leis estaduais e municipais) por acreditarem na promessa do “mérito” e de que um dia alcançarão o beneficio apenas pela qualidade de seus trabalhos. O fetiche da mercadoria[xxi] “edital” e a esperança da aprovação e captação da lei de incentivo, e a perspectiva do endossamento de uma carreira através da marca pública carimbada em seu projeto, o que define um suposto padrão de qualidade e todos os benefícios simbólicos que este prêmio acarreta para o artista, em seu conjunto atrativo são justamente o que sustentam o sistema injusto em funcionamento. Pois diante desta ilusão a classe não se rebela. A Mercadoria “edital” é a única mercadoria entendida e almejada pelas classes inseridas no mundo do mecenato, não se consegue ver mais nada além desta mercadoria, no sentido atribuído por Debord[xxii].

14- O individualismo dos membros das classes revela a preferência de tais editais do que a defesa de políticas públicas de cultura. As classes artísticas periféricas são tão responsáveis quanto os poderes públicos por outra exclusão ainda mais profunda, que é o da própria cultura em suas dimensões simbólicas e sociais, que apesar de garantidas na constituição jamais alcançam qualquer atendimento nas políticas públicas, porque diante das oligarquias culturais e do sonho de benefícios dos artistas periféricos, se concentra capital político suficiente para impedir a realização de políticas sociais de cultura que atinjam toda a população, dado o desejo de monopólio dos grupos já beneficiados.

15 – A cultura em sua dimensão simbólica é tratada como periférica às próprias políticas e programas, esquecida logo na formulação de planos de gestão. Este tratamento periférico e xenófobo, dado pelos órgãos de cultura para com os populares, reforça o motivo pelos quais estes organismos não obtêm recursos, tanto por responsabilidade das gestões como por conta das elites e dos periféricos do mundo da arte, que juntos excluem o restante da população do direito constitucional ainda não realizado da garantia de expressão da diversidade cultural e do acesso da população à cultura, o que se enquadra conceito de Cultura como direito fundamental de CUNHA FILHO[xxiii].

16 – Isso corre, porque a esfera da política que determina o orçamento reconhece a função do sistema, como mentira e por conta disso não amplia os recursos, por saber que as leis de incentivo não cumprem seu papel constitucional de promoção ao acesso, eternizando a fala repetida de que a cultura é a cereja do bolo. Porque cultura de elites em um Estado pobre, só pode mesmo ser enfeite, a não ser que esta cultura seja amplamente difundida e acessada.

17 – Os mesmos princípios das leis de incentivo à cultura são funções de exclusão estabelecidas por outros critérios de interesses, no que tange outra exclusão ainda mais profunda, vinda dos grupos que dominam a mídia e os direitos autorais. Porem esta decorre de uma nova camada de inversão de vencidos e vencedores, que abafa todas as anteriores, pois à dominação internacional sobre todos os meios de produção, difusão e direitos autorais somam a outra que é a propriedade de empresas sobre a carreira dos artistas elevados a categoria de mainstream[xxiv], formando o conjunto de artistas e indústrias ligadas ao capital internacional, que excluem todas as demais categorias citadas, gerando uma dicotomia entre o produzido e o divulgado, que impede o sucesso de quem lança produtos via leis de incentivo, já que não chegam à nem 1% da população (PRESTES[xxv]) e que também não são executados pela mídia que só reproduz produtos ligados à indústria cultural em seu viés mais comercial, os tais “Hits” (ADORNO)[xxvi].

18 – Nisso se funda uma nova categoria de exclusão, com zonas de assimetrias que tornam as elites inseridas do mundo da arte excluídas e periféricas com relação aos artistas estratificados pela indústria cultural nacional e internacional que efetivamente fazem parte do imaginário coletivo, mesmo sendo a maior parte de seus produtos artísticos e culturais, absolutamente banais.

19 – Esta estrutura de dominação estrangeira que contrata artistas brasileiros tem por regras gerar vantagens para um grupo ainda menor. O resultado é conhecido, mais para quem já tem e nada para quem não tem nada, em escalas, sempre repetidas, com funções de exclusão assimétricas de uma camada para a outra logo abaixo e sucessivamente, até chegar aos níveis mais periféricos com relação aos centrais. Portanto a lei de incentivo, ao contrário do que deveria promover, apenas aumenta a desigualdade.

20 – As leis de incentivo, não precisam ser apenas revistas, mas completamente reinventadas[xxvii] para cumprirem os princípios culturais previstos na CF/88 nos artigos 215 e 216. Ainda assim cabe admitir, que quaisquer mudanças legais, podem no máximo promover pequeno ajuste social diante de algo muito maior e que não tem solução, que é a prática socialmente aceita de apropriação das relações de poder, o discurso mestre no conceito atribuído por Jaques Lacan[xxviii].

21 – A cultura apesar das leis de incentivo, da mídia, da industria cultural, ainda existe, na verdade resiste.

[i] Este ensaio nada mais é do que um conjunto de reflexões sobre o verdadeiro papel das leis de incentivo à cultura diante das relações de poder, manifestadas no conjunto de dominação dos códigos que forjam o conflito entre beneficiados e não beneficiados.

[ii] Este ensaio foi escrito após a pergunta de uma colega sobre os códigos restritos de linguagem que denotam vencidos e vencedores ainda na formulação de editais de lei de incentivo. Baseado em nossa conversa, e na tese de mestrado que a mesma esta preparando, resolvi me debruçar sobre o tema para contribuir com minha amiga Inti Queiroz na reflexão deste tema. Dedico ainda a grupos conservadores que defendem com muita vontade a tese que o sistema de incentivo à cultura no Brasil é justo. Dedico também aos injustiçados, os “sem mecenas”.

[iii] Trocadilho entre Espetáculo no sentido de apresentação artística e Espetáculo no sentido do livro Sociedade do Espetáculo de Guy Debord.

[v] O Mérito é o critério das leis de incentivo, que afirmam que a qualidade cultural e artística determinam os vencedores, no mesmo sentido atribuído pela competição da sociedade liberal por Adam Smith. Defende-se que o mérito é a melhor forma de distribuição de recursos de cultura, sem no entanto revelar que as escolhas dos jurados são subjetivas e relacionadas aos seus universos culturais.

[vi] Escolha Racional no sentido atribuído por Max Weber

[vii] O Real no sentido atribuído a psicanálise Lacaniana

[viii] PERISSIONOTTO, Renato e CODATO, Adriano. Classe social, elite política e elite de classe.

[ix] COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. Verbete Artista Instituído, pág 62. Iluminuras, São Paulo, 2004.

[x]ALTHUSSER, Louis. Os Aparelhos Ideológicos de Estado.

[xi] BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento, Porto Alegre, Editora Zouk, 2007

[xii] ELIAS, Norbert. The Established and the Outsiders. A Sociological Enquiry into Community Problems, Londres. Frank Cass & Co. 1965.

[xiii] BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Perspectiva, São Paulo 2003.

[xiv] Em Ku-Town (cidade fictícia), apenas 30 pessoas, de 3.000 projetos musicais concentram a arrecadação de quase todas as verbas publicas distribuídas nos 15 anos observados.

[xv] PATEMAN, Carole. Participação e Teoria democrática. Páginas de 9 à 35. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992.

[xvi] SCHUMPETER, Joseph in PATEMAN, Carole. Participação e Teoria democrática. Pág 13. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992.

[xvii] ARISTOTELES in BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo; tradução Sérgio Bath. – Brasília: UnB, 1980.

[xviii] DaMata, O que faz o Brasil, Brasil?

[xix] MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista.

[xx] Cultura em Números. Minc, 2010. http://culturadigital.br/ecocultminc/files/2010/06/Cultura-em-N%C3%BAmeros-web.pdf

[xxi] MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista.

[xxii] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, parágrafo 43 páginas 30 e 31. Contraponto, Rio de Janeiro 2004.

[xxiii] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos Autorais como Direitos Fundamentais. Pag 41. Brasília, Brasília Juridica, 2000.

[xxiv] Mainstream, nome atribuído as estrelas reconhecidas dentro da Industria Cultural

[xxv] PRESTES FILHO, Luis Carlos. Cadeia Produtiva da Economia da Música, PUC, Rio de Janeiro, 2004.

[xxvi] ADORNO, Theodor. Introdução à Sociologia da Música. Pag 109. UNESP, São Paulo, 2009.

[xxvii] As propostas contidas no PróCultura que ira substituir a lei Rouanet se demonstram insuficientes para dar respostas as indagações feitas neste ensaio. Como todas as demais leis estaduais e municipais se derivam desta, o Pró Cultura precisa ser reformulado.

[xxviii] LACAN, Jaques. Livro 17, o Avesso da Psicanálise. Zahar, Rio de Janeiro, 2007.

* Manoel J. de Souza Neto é produtor cultural, pesquisador, escritor e agitador. Membro do Conselho Nacional de Políticas Culturais.