O que os editoriais da Globo podem nos ensinar

Editorial de O Globo defende que Lula adote agenda derrotada nas urnas e abandone antigos aliados, classificados como autoritários e terroristas, que estariam ameaçando a democracia. De ameaças à democracia a Globo entende. Seu editorial sinaliza uma.

por Marco Aurélio Weissheimer*
 


 


Uma boa parte da imprensa brasileira tem o hábito de querer ditar aos
governantes o que eles devem fazer, com quem devem andar, que políticas devem adotar. Indo muito além das atribuições de bem informar a população e de ajudar a desenvolver o espírito crítico no país, não raras vezes arroga-se o direito de determinar qual o caminho que os governos devem seguir. Embora não tenham sido eleitas para tanto, essas vozes pretendem representar, sem mandato, o que seria a posição da imensa maioria da sociedade e, assim, ensinar ao governante de plantão o que ele deve e não deve fazer. Um exemplo disso é o editorial do jornal O Globo, publicado na edição de 25 de maio deste ano. Intitulado “Escolha de aliados”, o editorial “recomenda” ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva quem devem ser seus aliados e quem estão proibidos de sê-lo.


 


O texto coloca muitos gatos diferentes no mesmo saco. Faz isso não por
desrespeito à lógica ou aos gatos, mas sim por uma astúcia e tática
política. Quem são os gatos colocados no mesmo saco: os manifestantes que ocuparam as instalações da hidrelétrica de Tucuruí, o MST e movimentos similares, os sindicalistas contrários à emenda 3 e os estudantes que ocuparam a reitoria da Universidade de São Paulo (USP). O editorial não economiza qualificativos para definir esses movimentos: terroristas, ultra-esquerdistas, inimigos da democracia, autoritários e populistas. Sem estabelecer qualquer distinção entre esses diferentes episódios, articula-os como uma suposta escalada autoritária que estaria ameaçando a Constituição e a democracia brasileira. E defende que o presidente Lula se afaste imediatamente desses antigos aliados e também dos “populistas” Evo Morales e Hugo Chávez.


 


O editorialista de O Globo escreveu: “Muitas dessas organizações que atentam contra a ordem constituída se valem de antigas alianças com o PT e da proximidade do presidente, que, de forma temerária, já permitiu que uma bandeira do MST fosse desfraldada em seu gabinete, enquanto ostentava um chapéu do movimento como se fosse um dos militantes que desrespeitam a lei ao invadir propriedades privadas e depredar instalações de empresas.


 


Espera-se que, assim como Lula parece ter entendido o que de fato representa para o país em ameaças a ação deletéria dos populistas Hugo Chávez e Evo Morales no continente, também compreenda que, para levar adiante o projeto de colocar o Brasil num longo ciclo de crescimento sustentado, terá de abandonar pela estrada antigos aliados, beneficiários de todo um arcabouço de normas e leis feitas para transferir dinheiro público para minorias privilegiadas”.


 


Recordar é viver


 



Impossível não registrar o ato falho. Ao falar da transferência de dinheiro
público para minorias privilegiadas, o editorial parece estar, na verdade,
falando da história da Rede Globo e do processo de constituição de seu
império midiático no Brasil. São bem conhecidos os laços da Globo com a
ditadura militar no Brasil. Não custa lembrar alguns dos momentos, onde o grupo manifestou todo seu compromisso com a verdade e a liberdade de imprensa. O verbete sobre Mídia que Gilberto Maringoni escreveu para a Enciclopédia Latinoamericana refresca a nossa memória: foi nos anos 1970, na fase mais repressiva da ditadura militar (1964-1985), que a Globo consolidou sua liderança. Esse objetivo foi alcançado, entre outras coisas, através da prestação de alguns serviços para o regime. Maringoni relaciona alguns deles:


 


1975 – Veiculou a versão oficial, de suicídio, acerca da morte do jornalista Vladimir Herzog, nas celas da polícia política em São Paulo.


 


1982 – Envolveu-se no escândalo das fraudes na apuração das eleições para governador no Rio de Janeiro, na qual saiu vencedor seu principal desafeto, Leonel Brizola. A empresa responsável pela contagem dos votos apontava como favorito o candidato apoiado pela Globo que, por sua vez, veiculava a notícia nacionalmente. Brizola desmascarou a fraude e tornou-se, até sua morte, persona non grata na programação global.


 


1984 – Tentou apresentar o maciço movimento das Diretas-Já, que galvanizou o país, como sendo apenas uma festa alusiva ao aniversário da cidade de São Paulo.


 


1989 – Na primeira campanha eleitoral direta para a presidência da República após a ditadura, a empresa de Roberto Marinho editou de maneira truncada o último debate entre os candidatos Fernando Collor de Mello, por ela apoiado, e Lula. O encontro terminara altas horas da noite, com uma audiência reduzida. Uma versão compacta foi exibida no dia seguinte, nos noticiários vespertino e noturno, de larga audiência, mostrando os melhores momentos de Collor e os piores de Lula. O fato ocorreu dois dias antes da disputa nas urnas e impediu uma resposta por parte do candidato do PT.


 


Estratégia política no horizonte


 



Ao longo desse período, milhares de editoriais foram escritos, sempre
amparados em um suposto compromisso com a verdade, a democracia e a Constituição. Mas, para além da hipocrisia, esse editorial do dia 25 de maio carrega consigo uma astúcia política, a deflagração de uma espécie de terceiro turno das eleições presidenciais de 2006. Essa astúcia, que não se limita obviamente aos gabinetes da Globo, é tentar fazer com que o governo Lula defenda a agenda derrotada nas urnas.


 


A ausência de referência ao governo José Serra (PSDB) no caso da USP e a equiparação deste episódio com outros protestos, de forma generalizada, não é fruto do acaso. É Lula quem deve se livrar de seus antigos amigos baderneiros e terroristas. É Lula quem deve se afastar dos populistas Evo Morales e Hugo Chávez. É Lula quem deve se aproximar da agenda política defendida pela Rede Globo que, entre outras coisas, defende o aprofundamento da flexibilização da legislação trabalhista, a desregulamentação ainda maior da economia e o tratamento policial para conflitos sociais. Trata-se de um movimento cuja força não deve ser desprezada.


 


Há quem ache que a grande mídia sofreu uma grande derrota nas eleições de 2006. Pode até ser verdade, mas achar que ela perdeu sua força política e operacional seria um grave erro. Afinal de contas, mais do que nunca, empresas como a Globo são braços do grande capital, com estratégia econômica e política, de curto e longo prazo. A tentativa de fazer com que o governo Lula adote a agenda derrotada em 2006 e abandone seus antigos aliados é um claro sinal disso. Assim, mais do que simplesmente relembrar a trajetória da Globo e expor toda a hipocrisia que anima sua linha editorial, é importante conseguir vislumbrar em editoriais como o acima citado a estratégia política que se configura no horizonte.


 


*Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior