A redenção dos amigos Lampião e Padre Cícero

Duas legendárias figuras da história do Brasil, que cultivaram fortes relações quando vivos, caminham para a reabilitação definitiva na historiografia nacional. Trata-se do padre Cícero Romão Batista, excomungado pela sua agremiação, e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, executado pelas autoridades da nação.

Por Jaime Sautchuk*

De uma parte, a igreja católica, com o beneplácito do Vaticano, vem acelerando o processo de reavaliação da punição imposta a Cícero, que o impediu de exercer o sacerdócio. Uma comissão que estudou a documentação dos arquivos da Igreja no Crato e em Juazeiro do Norte, no Ceará, entregou seu relatório ao Vaticano.

O documento, centrado principalmente na veracidade dos milagres que teriam sido perpetrados pelo religioso, retira de suas costas a acusação de fraude. A história, fartamente conhecida, é a da hóstia que teria vertido sangue ao ser colocado sobre a língua de uma fiel.

Ou seja, pelo relatório, a hóstia sangrou mesmo. Falta agora o veredito de Roma. E Cícero pode até virar santo.

A pedra já havia sido cantada em 2001, quando a TV Verdes Mares, braço da Rede Globo no Ceará, promoveu um evento em que apontou o padre Cícero como “O Cearense do Século”. Para as hordas de fiéis que todos os dias chegam a Juazeiro do Norte para pedir as benções do padim, quem precisa de perdão agora é quem o condenou, e não o condenado.

De outra parte, o perfil do Rei do Cangaço passa a ser mais e mais o de uma alma boa, homem de grandes valores, que viveu seu tempo do modo que o ambiente lhe permitiu. O que é pura verdade. São incontáveis os registros de vezes em que ele, ao praticar assaltos ou saques, pedia desculpas às vítimas dizendo coisas do tipo “não sou industrial, nem comerciante, nem agricultor — a vida que me restou é esta”.

No julgamento popular, a vida de ambos é bastante diferente do que nos revela a maior parte dos livros que frequentam os bancos escolares. Por certo eles não chegarão a virar santos, dignos de estátuas oficiais, mas terão suas imagens reconhecidas de outra forma, resguardadas as diferenças entre eles.

Os dois se cruzaram na vida meio por coincidência e conviveram por um período relativamente curto. Afinal, padre Cícero nasceu em 1844, 53 anos antes de Lampião, e morreu em 1934, quatro anos antes da chacina de Angicos, que acabou com o cangaceiro. Eles se conheceram oficialmente em 1926, por iniciativa do padre Cícero, num encontro em Juazeiro que teve direito a fotos, divulgadas pela imprensa na ocasião.

Há registros, porém, de que desde bem antes disso havia entre os dois alguma comunicação, via interlocutores. O fato é que, neste encontro de 26, o caráter oficial era necessário, até para efeito de propaganda. Cícero propôs que Lampião formasse um “batalhão patriótico”, como eram denominados os grupos armados criados Brasil afora para combater a Coluna Prestes, que percorreu o País do Sul ao Nordeste e Centro-Oeste, indo se refugiar na Bolívia.

Lampião topou, mas com três condições básicas: anistia dos crimes que lhe eram imputados, uma patente de capitão da Guarda Nacional, e armas com munições. Acordo fechado, surgiu assim o Capitão Virgulino Ferreira. Mas ele e seu bando nunca deram um tiro sequer contra a Coluna, apesar das várias chances que tiveram.

Mas havia se consolidado uma amizade e dela derivaram vários fatos que interferiram na vida de Lampião. Um deles é ode que duas irmãs dele, que moravam em Serra Talhada (PE), cidade natal de todos eles, mudaram-se para Juazeiro do Norte para viverem sob a proteção de Cícero.

Outro, muito mais importante para a história do cangaço, deu-se ali mesmo, em Juazeiro, sob as asas do padre. O bando de Lampião usava os serviços do sapateiro Zé de Neném, que era casado com Maria Déa. Esta mandava recados de que era apaixonada por Virgulino, com fitinhas e essas coisas de flertes, até que ocorreu um encontro, em 1930. Lampião, que já estava meio empolgado, ficou caidaço por ela.

Ela acabou largando o marido para adotar o nome de Maria Bonita e seguir seu novo amor até a morte. O fato gerou notícias em jornais, que a tratavam como adúltera, mulher da vida e outros adjetivos ainda mais fortes. Mas ela pouco ligava. E tampouco o padre Cícero, que no fundo foi quem incentivou o romance eterno.

Ela se encantava não só com as histórias de bravura de seu amado que corriam pelos sertões. Gostava do seu jeito, dos seus trajes, que incluíam o enorme chapéu de couro adornado com medalhas de ouro e prata, algumas delas dispostas num formato com a palavra “amor”. Era um homem doce, gentil, respeitoso. Jeito de poeta, de artista.

Ao passar a conviver com Lampião, ela viu e sentiu muito mais. Entre suas tralhas, nas andanças ele carregava uma máquina de costura e agulhas e linhas de bordar. Mas quem costurava e bordava não era ela, era ele.

Compositor e bom no gingado, ele cantava e dançava muito bem. Tanto que é atribuída a ele a invenção do xaxado, uma dança apropriada ao ambiente em que a maioria era de homens e, assim, podiam dançar juntos, pois não precisavam se tocar.

Na extensa bibliografia sobre Lampião há registros de toda sua trajetória artística, a começar por um poema que escreveu na escola, já aos oito anos de idade, e grande número de bilhetes que, na juventude ou já no cangaço, escrevia em versos.

O padre e intelectual pernambucano Frederico Bezerra Maciel, que escreveu “Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado”, em quatro volumes, conta muitas histórias. Uma delas, sobre o compositor, é a de uma visita que Lampião fez a Tia Jacosa, sua avó materna, num dia 15 de agosto, aniversário dela. Longa viagem, madrugada adentro, para chegar.

Na casa, ainda cedinho, a avó “já trocava ligeiros os bilros da sua almofada de fazer renda”. Lampião e seus parceiros (seus irmãos Antônio e Livino e outros) chegaram quietos. Pela porta entreaberta, ele estancou e ficou admirando a agilidade daquela gente que tece rendas. Muitos parentes, histórias, cantorias e, já noitinha, na hora de ir embora Lampião prometeu que faria uma música para sua avó.

O resto, é Maciel quem conta:

“Cinco meses depois…
Precisamente, 22 de fevereiro de 1922.
Outra vez Lampião em Poço do Negro. Desta vez trazendo a grande novidade – a canção “Mulher Rendeira” – Música e letra de sua autoria, prometida homenagem à sua estremecida Tia Jacosa.

Não se teve em emoção a boa velhinha ao ouvir, pela primeira vez cantada e na voz de Virgulino, a sua canção. Comovida e admirando sem cessar a habilidade – “a arte” – de seu neto:

— Não é que ele aproveitou as palavras que eu costumava dizer a ele quando, menino reinador e desesperado, começava a embirrar com suas teimas: – Chorou pru mim não fica, soluçou vai pro borná?”…

Os biógrafos de Lampião são unânimes quanto às vaidades do cangaceiro. Ele adorava se vestir bem para festas e eventos, ocasiões em que usava seus óculos de lentes meio opacas, para esconder o glaucoma que o cegara do olho direito. Tirar fotos, então, era o que mais gostava.

Nisso, de novo entra o padre Cícero. As melhores e mais conhecidas fotos e filmes de Lampião são do imigrante palestino Benjamin Abrahão Botto. Seu pai era mascate e a família foi bater em Juazeiro do Norte em 1920. Benjamin se tornou secretário particular do padre Cícero e, nas horas de folga, gostava de fotografar e filmar. E fotografava e filmava Lampião e seu bando dom autorização do chefe.

Agora, pois, por razões diversas, Lampião e Pe. Cícero ganham de vez por todas a redenção. E, seja qual for a opinião que se tenha sobre os dois, uma coisa é inegável: eles são a cara do Brasil.

*Escritor e jornalista, colunista do Vermelho