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Oriki para Arnaldo Xavier (*)

Por Cuti (**)

Arnaldo Xavier - Paulo Gil

quando você axévier dos emails da memória chegar
vai ser bom que não briguemos
como você brigou muitas vezes
por uma opinião
uma divergência
ou uma antipatia

melhor vai ser, xavier, deixarmos aflorar você daqueles seus versos
de que seu parceiro gereba nos deu notícia:
“o rio são francisco é uma lágrima doce
que desce pelo rosto de minas”

este arnaldo vai nos valer mais a pena agora
entre tantos que você foi

o cangaceiro e sua peixeira verbal
que lhe rendeu reações dos adversários
até pelas vias de fato
era um menino apaixonado por brincar de munganga
e fabricar palavras-bombas

o cangaceiro precisa descansar
de suas brigas contra os fantasmas do amor, das inimizades e da morte

axévier, agora você aprendeu de vez o que já sabia:
o que nos mata e nos torna assassinos cotidianos é nosso medo de amar
nossa economia de afeto
nosso apego às grades e algemas morais da formação deformada
que recebemos ao longo dos anos
o que nos mata e nos torna agentes dos pequenos assassinatos
é o cultivo da mágoa, do rancor, da raiva
o que nos faz suicidas e assassinos nas relações cotidianas
é desprezar a sabedoria do perdão
que não é palavra apenas
dita da boca pra fora
mas aquela onda que vem de dentro
inunda de boa vontade nosso interior
espalhando luz à nossa volta

o cangaceiro xavier já aprendeu para sempre:
é mais que urgente a necessidade de aprendermos amar diferente
de assumirmos a nossa
e a liberdade do outro
pois tudo passa
e o passado precisa ser nosso amigo
para que possamos recebê-lo com prazer
em suas constantes visitas

o arnaldo dos muitos amigos
o arnaldo de algumas mulheres
o arnaldo dos filhos assumidos e não assumidos
o arnaldo dos projetos para descaotizar o trânsito de são paulo
o arnaldo gélèdés
o arnaldo salve o corinthians
o arnaldo phyndaíba
o arnaldo das múltiplas parcerias
o arnaldo que ninguém conhecia
nem sempre disse
mas sabia
que jamais o outro será o que nós queremos que ele seja

por isso a sua “transnegressão”
por isso, perguntava: “por que o horizontal não pode dormir com o vertical?”
e dizia: “cumpad, eu não tenho ódio não”
quando acossado em uma conversa dura no deserto das armas

agora
além de seus textos convidativos para a viagem pelo desafio da linguagem
e da negritude
você é luz de memória
é luz de metáfora
pois que muitas vezes por medo de dizer “eu te amo”
acabamos por murmurar “eu te odeio”
e o que se diz quase sempre não é o que gostaríamos de ter dito
e por causa do interdito
o sentido mora no escuro
do olhar, da pele, do espanto, da dúvida
e só vem à tona quando a ele emprestamos a nossa luz

assim
obesos de mentiras
ou jejuamos
ou teremos que fazer doloridas lipoaspirações
sem contar o incômodo de sustentar por anos a fio
o peso do orgulho, da vaidade, do ciúme, da inveja e do ódio

axévier,
que este luto não seja mais uma luta de nossas contradições de viver
e sim um desprendimento de tudo
uma profunda e pacífica
meditação

é mais que urgente
que aprendamos a amar diferente
antes que seja tarde

quando você, axévier, chegar em nossos emails de memória
haveremos de ter o coração aberto
para recebê-lo com o nosso abraço
e servi-lo uma refrescante água de coco
aquela
da mais profunda sensibilidade da nossa paz
e leveza

que tua passagem e lembrança
nos sejam
um bálsamo
para continuarmos a viagem.

(*) Arnaldo Xavier, militante negro, poeta paraibano/paulistano, deixou de viver em 26 de janeiro de 2004, em plenos 57 anos de idade.

(**) Cuti (pseudônimo de Luiz Silva), militante do movimento negro, poeta, formado em Letras pela USP, doutor em Literatura Brasileira, pela Unicamp, é autor, entre outros livros, de Poemas da carapinha (1978); Batuque de tocaia (poemas, 1982); Flash crioulo sobre o sangue e o sonho (poemas, 1987); Quizila (contos, 1987); Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro (1991); Negros em contos (1996); Sanga (poemas, 2002). E em co-autoria: Terramara (com Arnaldo Xavier e Miriam Alves) (teatro, 1988); …E disse o velho militante José Correia Leite (memórias, 1992)