Eugênio Bucci: Os dois lados da trincheira

Ex-presidente da Radiobrás e um dos maiores teóricos da imprensa no Brasil, Eugênio Bucci diz que os sistemas público e o privado de comunicação num país como o Brasil são complementares

Na condição de um dos maiores estudiosos e pesquisadores da imprensa no Brasil, o jornalista Eugênio Bucci assumiu a presidência da Radiobrás nomeado pelo presidente Lula logo no início de seu primeiro mandato, em 2003. No início deste ano, na condição de um dos mais bem sucedidos executivos da administração indireta do Governo Federal, deixou a empresa para voltar à iniciativa privada. Depois de transitar nos dois lados da trincheira, saiu com a certeza de que o modelo público e o modelo privado de comunicação no Brasil não são excludentes e podem se complementar.


 


''As atividades públicas, numa democracia bem equilibrada, não são oponentes das atividades privadas, comerciais. Uma precisa da outra'', afirmou em entrevista ao O POVO, realizada por telefone na manhã da última quinta-feira. ''O que seria do mercado se não fossem as regulações que cabe ao poder público fazer? E o que seria de um país que não tivesse atividade econômica de mercado e, portanto, não tivesse recolhimento de impostos e tudo o mais? Essa mesma relação pode ser vista entre a comunicação pública e a comunicação comercial. Os temas que cabem em uma não cabem direito na outra''.


 


O que é necessário para que essa convivência seja harmoniosa e saudável para a democracia, destaca, é o rigor no acompanhamento das concessões públicas para as TVs e rádios comerciais e o fim da cultura da cobertura chapa-branca por parte dos órgãos públicos. ''As concessões no Brasil ainda são verdadeiras capitanias hereditárias e ninguém faz a verificação regular que deveria ser feita'', denuncia por um lado. ''O nível de comunicação chamado de chapa-branca não tem a verdade como valor supremo'', acusa por outro.


 


Em pouco mais de quarenta minutos de conversa, sempre com muita firmeza e elaboração em seus argumentos, Bucci falou sobre sua saída da Radiobrás, sobre o debate em torno da reformulação do modelo de TV Pública no Brasil e avaliou a relação entre a imprensa e o poder no País. ''É claro que isso depende de maturidade dos jornalistas, depende de maturidade do poder público. Não há essa relação se nós ficarmos discutindo erros de um lado só'', defende.


 



O POVO – Recentemente, você saiu da presidência da Radiobrás e agora está envolvido com o debate sobre o projeto da TV pública. Como se deu esse processo de saída da Radiobrás?
Eugênio Bucci – A minha saída da Radiobrás era já anunciada há quase dois anos. Eu sempre disse e declarei, inclusive em entrevistas, ao longo da minha gestão, que a minha disposição – que o meu compromisso, inclusive – era de permanecer no governo. Na hipótese de reeleição, eu acreditava e continuo acreditando que o presidente da República forma uma outra equipe, ele faz os ajustes, e, nesse momento, é a hora indicada para aqueles que não querem permanecer deixar o cargo. E eu me dispus a esperar essa transição. A escolha do novo ministério tardou alguns meses. Aguardei a entrada do Franklin Martins, que considero uma nomeação excepcional, muito boa. Participei da transição na Radiobrás, e, no momento que foi mais indicado e confortável para o próprio governo, se deu a minha saída. É importante lembrar também que no dia 31 de outubro – portanto, dois dias depois do segundo turno – eu já havia encaminhado ao presidente da República com cópia para o ministro (Luiz) Dulcci (secretário-geral da Presidência) uma carta em que eu punha o meu cargo à disposição. Portanto, é uma saída absolutamente natural.


 


OP – Mas havia algum tipo de insatisfação sua dentro do governo?
Eugênio – Não, não havia uma insatisfação. Me ocorre aqui na lembrança o exemplo do ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, que também deixou o governo após o primeiro mandato. Se você procurar, várias pessoas, de vários níveis, agem da mesma forma e isso é absolutamente normal. Não significa, obrigatoriamente, que exista divergência, ou que exista insatisfação. E uma outra coisa que considero importante nessa saída – que é uma saída definida pelos prazos do próprio governo, dentro do calendário do governo e tudo mais – é que a minha trajetória profissional e pessoal não vai na direção de desenvolver uma carreira política nem de fazer uma carreira como administrador ou funcionário público. Eu fiquei muito feliz com a minha experiência aqui, me senti plenamente realizado profissional e pessoalmente, mas preciso ir cuidar da vida.


 


OP – Você assumiu a Radiobrás em 2003, logo no início do governo Lula, no primeiro mandato. De lá para cá, que tipo de avanços você constatou do ponto de vista da democratização da informação no Brasil – que é uma bandeira que você assumiu logo no início do seu mandato?
Eugênio – Bom, o primeiro deles é a superação daquele nível de comunicação chamado de chapa-branca. É uma comunicação que não tem a verdade como valor supremo e que, no lugar dela, põe o valor de promover ou, às vezes, até, de adular a figura das autoridades, ministros, e do presidente. Existe uma instituição pública com a função de informar atos de governo – que é uma das atribuições da Radiobrás. Isso só se justifica porque são direitos constitucionais. Do cidadão, o direito à informação, o direito à comunicação. E, com base nessa premissa, nós reformamos inteiramente o processo de produção e de veiculação de conteúdos na Radiobrás. O foco passou a ser o cidadão. O valor mais alto, o direito à informação do cidadão. Deixamos de fazer qualquer promoção de pessoas ou de autoridades. O que, quando se dava no passado, se dava ao arrepio da lei, porque nenhuma linha da legislação atribui à Radiobrás sequer as funções de propaganda de governo, relações públicas ou de porta-voz. Então, não cabe à Radiobrás fazer isso. Esse foi o centro da transformação pela qual a Radiobrás passou ao longo desses quatro anos em que estive à frente dela. Os veículos da Radiobrás – seis emissoras de rádio, três emissoras de TV e duas agências de notícias – tiveram, portanto, a sua linha totalmente alterada. Além disso, nós conseguimos a redução do passivo judicial da empresa. Em 2003, estava na marca de R$ 60 milhões – em valores atualizados -, e eu devolvi a empresa com um passivo de R$ 8 milhões. Isso graças às vitórias judiciais, sobretudo. Além disso, a empresa ganhou um novo plano de carreiras para os seus funcionários, que era uma antiga reivindicação. Os funcionários passaram a participar do conselho de administração, que era outra reivindicação. Todo o planejamento editorial, que foi o segredo do sucesso da gestão, conta com a participação dos funcionários e com a elaboração compartilhada. Isso deu muita coesão para as equipes, e para a empresa como um todo, em torno do seu objetivo principal que é a defesa e o trabalho na defesa do direito à informação, que, por sinal, virou o slogan da Radiobrás. Isso levou a Radiobrás à um reposicionamento. Em poucas palavras, ela é uma empresa que foi reposicionada ao longo de quatro anos e se tornou uma referência para o País quando se trata de comunicação pública. Tanto que, agora, no Fórum (da TV Pública), cuja organização foi elaborada por um grupo do qual eu sempre fiz parte, teve a participação direta de vários funcionários da Radiobrás. Dos oito grupos de trabalho, nada menos do que quatro grupos são coordenados por quadros da Radiobrás. Isso mostra o lugar que ela passou a ocupar nesse debate, além dos prêmios – que são vários – que ela recebeu e do uso decente da produção noticiosa da Radiobrás em todos os veículos de informação.


 


OP – Aproveitando que você fez referência ao Fórum da TV pública, o Brasil está na iminência de, digamos, reformular seu modelo de TV pública. Nesse sentido, gostaria de fazer ao senhor duas questões. A primeira: esse modelo de TV vem sendo acusado, de uma maneira um tanto açodada, é verdade, de se constituir numa TV Lula, digamos assim, em que haveria uma aproximação do governo no que diz respeito à edição dos conteúdos da TV. Como você reage a esse tipo de crítica? Essa é uma questão. A segunda: que tipo de novidade esse modelo pode trazer para o Brasil do ponto de vista da democratização da comunicação, da democratização da informação?
Eugênio – Bom, em primeiro lugar, eu acredito que não existem elementos para alguém supor que qualquer nova iniciativa de rádio e televisão, no âmbito da administração federal, vá ser governista. Por que não existem elementos? Porque eu desafio qualquer pessoa a localizar na história da própria Radiobrás, que até hoje foi a principal instituição de comunicação do Governo Federal, um período em que ela tenha agido com mais independência e autonomia do que nesse período do governo Lula. Uma marca que o governo Lula vai deixar é a marca de a Radiobrás ter adotado uma produção noticiosa com grau de objetividade, comprovadamente, documentadamente, superior aquele adotado nos governos anteriores. Tanto a experiência no primeiro governo mostra que, no geral, a relação do governo com as entidades vinculadas direta ou indiretamente à administração pública é uma relação que preserva a autonomia num nível superior em relação aos anteriores. Depois, eu acredito que, em tese, qualquer iniciativa daqui para a frente de comunicação pública precisa ficar permanentemente vigilante para não ser cooptada ou para não ser capturada, ou mesmo para não ser subjugada, amordaçada, asfixiada pelo governo. Vale para qualquer governo no âmbito federal ou os governos municipais ou estaduais. E vários deles têm meios de comunicação. A prática da chapa-branca e do cabotinismo oficial é comum em quase todas as emissoras públicas do Brasil, de rádios e televisão. Autoridades públicas que valem dessas instituições como se elas fossem suas assessorias de imprensa pessoal, privadas. Isso tem sido a regra na tradição brasileira. Ela foi quebrada, em parte, modestamente, na experiência da Radiobrás. Porque o conjunto, se nós formos observar, padece desse mal. Quando, então, se fala da criação de uma instituição de comunicação pública forte nas palavras do ministro Franklin Martins, ''uma instituição que será autônoma em relação ao governo'', nós temos motivos para olhar para isso com algum otimismo. Sem cair na baixa da guarda. Isso precisa ser, o tempo todo, vigiado com muita competência, porque o risco da cooptação está sempre aí. Mas a experiência aponta para a possibilidade de otimismo. O que o setor precisa é mostrar, agora, que pode gastar menos do que gasta atualmente e produzir mais e melhor. Não é verdade que faltam recursos. Ponto. Não é verdade que esse seja o problema para a comunicação pública. Pode ser que esse seja um problema. É preciso ver caso a caso. Mas também é um problema da comunicação pública no Brasil, e isso não pode ser desprezado, a má administração e a má gestão. Também é um problema o empreguismo, os cabides de emprego. Também é um problema a baixa eficiência, a falta de compromisso com a qualidade disso. Então tudo isso precisa ser enfrentado, e eu acredito que a comunicação pública no Brasil – em rádio, televisão e internet (esse modelo eu enxergo sempre de forma integrada) – pode ser feito sem onerar mais os cofres públicos do que já onera hoje. É preciso mudar, sobretudo, a forma de gestão.


 


OP – O ministro Franklin Martins, recentemente, deu uma entrevista em que ele colocava que não há incompatibilidade na coexistência do modelo público e do modelo privado no Brasil. O que é fato. Porém, o modelo privado é baseado em concessões públicas. Os donos de concessão de rádio e TV no Brasil cumprem bem a sua função social no seu entendimento?
Eugênio – Olha, é muito impreciso eu dar uma opinião pessoal sobre isso. Isso não é uma pergunta que se resolva na base das opiniões pessoais. Concessão de rádio e televisão é um ato do poder público com todas mediações. Quanto mais democrático forem essas mediações melhor, passando, inclusive, pelo Congresso Nacional. E ela deve ser controlada pelos mesmos parâmetros públicos – ou devem ser públicos – e flexíveis, abertos a inúmeros critérios. Aí é possível fazer uma verificação se a concessão está sendo exercida segundo aquilo que era prescrito ou se ela está sendo usurpada ou negligenciada. Funciona em democracias que nós costumamos adotar como referências. As mesmas instituições que fazem a concessão, ou que operam o mecanismo pelo qual é dada a concessão, procedem a verificação do desempenho dessas emissoras. Isso é o que não existe no Brasil. E nós podemos dizer que cada um faz o que bem entende de posse de uma concessão. Isso é uma tremenda de uma bagunça. É uma confusão, é uma terra de ninguém, é uma zona de sombra na legislação. As concessões no Brasil ainda são verdadeiras capitanias hereditárias e ninguém faz a verificação regular que deveria ser feita. E, sobretudo, não há participação da sociedade nessa verificação. À luz disto que eu estou dizendo, se verifica muito facilmente que não é um problema de opinião pessoal. Uma concessão precisa ser verificada ano a ano, com possibilidades de sanção e possibilidade mesmo de cassação. E essas verificações precisam se dar segundo inúmeros critérios.


 


OP – E que critérios seriam esses?
Eugênio – Por exemplo, tempo destinado a programas educativos. É preciso saber se esse tempo está de acordo. Depois, além do tempo, a qualidade dos programas educativos que estão entrando. Depois, distribuição de programas informativos versus audiência e tempo publicitário. Essas coisas, às vezes, são – e outras vezes não – na outorga. Agora, e depois da outorga, quem é que faz a verificação do cumprimento disto? Na minha opinião, isso deve ser feito regularmente com participação do público, com processos abertos e pela internet que permitam a participação do público, do Ministério Público e assim por diante.


 


OP – Ainda fazendo referência ao Franklin Martins, numa entrevista recente ao programa Roda Viva, ele, entre outros assuntos, apontou um processo de ''intoxicação'', nas palavras dele, da relação entre a imprensa e o poder no País. Processo esse que teria se acirrado no governo Lula. Você concorda com essa expressão? Como você vê essa relação entre a imprensa e o poder hoje no Brasil?
Eugênio – Olha, eu não lembro bem do contexto em que ele usou esse termo. Mas eu acho, no geral, que as relações entre poder público e meios de comunicação podem ser muito melhores do que são. É claro que isso depende de maturidade dos jornalistas, depende de maturidade do poder público. Não há essa relação se nós ficarmos discutindo erros de um lado só. Nós estamos falando de uma relação. Nós não estamos falando de um ponto isolado que precisa ser analisado. E a relação pressupõe idas e vindas de dois lados diferentes. Fundamentalmente, um dos maiores problemas da relação entre imprensa e poder público é a falta de transparência das ações públicas. A dificuldade que os jornalistas têm de acessar dados que são de direito do cidadão conhecer. Isso, muitas vezes, produz um biombo atrás do qual políticos e autoridades públicas se movimentam. Isso não é bom. É preciso que a administração pública seja cada vez mais transparente e imediatamente transparente. Isso talvez seja um dos maiores problemas. Isso depende do desenvolvimento de uma relação. Depende da cobrança do cidadão, por exemplo. Depende da mobilização da sociedade. Depende da conduta da imprensa na busca desses dados, na demonstração cotidiana que esses dados não se encontram acessíveis. E também depende do governo. Mas a solução não virá de uma atitude unilateral.


 


OP – Mas você acha que há aspectos novos nessa relação entre imprensa e poder que estabeleceu durante o governo Lula em relação ao governo Fernando Henrique?
Eugênio – É difícil você fazer uma comparação rigorosa. Para se fazer uma comparação rigorosa é preciso fazer medições e caracterização de que forma os espaços dos jornais foram ocupados. Vejo momentos de muita agressividade na relação entre imprensa e governo no governo Lula. Vejo momentos parecidos com o governo Fernando Henrique. Parece, e eu insisto nesse termo, que a agressividade teria sido maior em alguns momentos do governo Lula. Preciso medir isso com mais cautela. Mas, injustiçados pela imprensa nós vamos encontrar em todos os governos. Ao mesmo tempo, há momentos durante o primeiro governo Lula em que ele foi quase idolatrado por programas de rádio e de televisão, principalmente. Então, são momentos desiguais.


OP – A discussão sobre a TV pública, sobre veículos públicos de comunicação no Brasil, esbarra, em parte, na questão da audiência. Como reverter esse quadro? Ou seja, como incrementar o alcance dessas iniciativas públicas junto à população?
Eugênio – Bom, o primeiro ponto de partida é um ponto de partida desagradável, mas ele precisa ser dito, é que as equipes das emissoras públicas precisam passar por um desenvolvimento, por um aperfeiçoamento, por uma capacitação intensiva. E é preciso haver reestruturação nesse setor. Uma das coisas graves é a falta de competência. Muitas vezes, a emissora pública, tendo recursos, demonstrou que tinha competência e que tinha credibilidade. Nós vamos encontrar isso, possivelmente, na história da TV Cultura. Temos exemplos na Bahia, no Rio de Janeiro, mas sempre que a gente lista, a gente pode cometer injustiça pelo esquecimento. Então, esse é o ponto principal. Organizar a cobertura, ter uma rede. Essa rede precisa estar presente na maioria dos lares. Isso é possível, não custa muito caro, porque uma parte dessa estrutura já está aí. E organizar o setor. Eu acho que vai por aí. O objetivo da comunicação pública não é a audiência acima de tudo, mas também o objetivo da comunicação pública não é o desprezo pela audiência, que é o que tem sido produzido pela incompetência.


 


OP – Eugênio, você participou também da discussão em torno do projeto da TV Brasil, que, entre outras características, propunha uma integração das culturas do continente sul-americano. É possível uma TV integrar essas culturas em um continente em que, historicamente, os países se dão as costas do ponto de vista de um diálogo, de uma aproximação cultural?
Eugênio – A TV Brasil é uma iniciativa muito recente, frágil, pouco consolidada e requer muita atenção, muito cuidado para continuar evoluindo. Mas até aqui, até o ponto em que ela chegou, ela é a prova de que essa integração é possível. Não apenas ela ajuda a integração como ela prova que a integração é uma demanda nesses países. A TV Brasil já tem hoje uma programação de 24 horas diárias, seis delas inéditas. Esta programação tem quarenta parceiros no Brasil e em outros países da América do Sul. Ela já é reproduzida por um conjunto de reprodutoras, de operadoras de cabo e de TV por assinatura, e já tem autorização para isso sem pagar nada – porque nenhuma das operações da TV Brasil envolvem dinheiro. E o número dessas operadoras já licenciadas para isso ultrapassa a casa dos 200. No Brasil, ela ainda não tem um canal exclusivo, mas ela já é exibida por várias emissoras do Brasil. Então, é uma iniciativa interessantíssima. Se você parar para pensar, você vai ver que nós não vemos programas dos países da América do Sul no Brasil a não ser, às vezes, alguma novela que não tem muito cara local, que não tem muito uma identidade regional. É uma novela pasteurizada pela ética do mercado globalizado. E uma coisa mais folclórica, como o Chapolim e o Chavez e tal. Chavez, não o presidente da Venezuela; o Chavez dos programas infantis. Então essas coisas são exceções. Nós não vemos a cara dos países da América do Sul e a TV Brasil vem mostrando essa cara e ela vai ter – por ser bem tratada daqui para a frente, porque ela sobrevive com uma estrutura muito precária de cerca de 30 funcionários, é muito pouco, o orçamento é muito reduzido – um grande futuro.


 


OP – Eu queria resgatar um pouquinho aquela discussão em torno de uma expressão que você usou que é a agressividade da cobertura da imprensa em relação ao governo. Como você falou, houve momentos de agressividade também no governo Fernando Henrique. Mas me parece que há, em relação ao governo Lula, uma agressividade por parte de alguns colunistas que baseiam o seu trabalho jornalístico, entre aspas, a partir de preconceitos pessoais, a partir de idiossincrasias políticas, digamos assim. E que dão vazão a um processo de editorialização da cobertura por parte de certos veículos. Como você vê esse tipo de postura? Quando a gente vê, por exemplo, o Diogo Mainardi em conflito com o Franklin Martins, no tom pessoal a que a discussão chegou; quando o Arnaldo Jabor entra em conflito com a Câmara também num tom muito acirrado, de ofensas, etc. Como você reage a esse tipo de episódio?
Eugênio – Bom, vamos falar especificamente do que você falou com especificidade. Sobre o Diogo Mainardi e o Franklin Martins, eu acredito que as declarações dos dois bastam, no sentido de que explicita o que está em questão. Houve uma inconformidade do Franklin Martins em relação ao que o colunista afirmou. Estamos num país democrático, ele foi à justiça e essa questão será decidida pela justiça em clima de normalidade. No caso do Arnaldo Jabor, ele já falou que não quis ofender todos os deputados e, também no caso do Arnaldo Jabor, ele critica e elogia. Eu me lembro de um elogio muito enfático que ele pôs no ar, outro dia, no Jornal da Globo, ao ministro da Educação, Fernando Haddad. Eu vejo isso com absoluta normalidade. Nós temos que nos acostumar com isso. Nós temos que entender, de uma vez por todas, que a imprensa tem direito de expressar as suas opiniões por mais estapafúrdias que a gente pense que elas sejam. Às vezes, uma opinião nos parece estapafúrdia, mas não é. E, às vezes, elas nos parecem absolutamente sensatas, e fundamentadas, e são esdrúxulas. Portanto, uma imprensa que, por meio de colunistas, de manchetes – qualquer que seja -, que critique o poder público, isso é normal. Nós não podemos querer uma imprensa que adote as mesuras que nós, pessoalmente, julgamos. A imprensa deve fazer com que apareçam as múltiplas faces da indignação. O poder público deve ser verificado com obstinação e com indignação. É claro que os excessos precisam ser corrigidos e precisam ser publicamente corrigidos, e os responsáveis precisam ser punidos. Mas, não há nada de indevido na postura atrevida ou na postura ácida, ou na postura de má vontade de qualquer jornalista. Observe a imprensa de outros países, cujas democracias a gente julga que são boas. Veja o que se escreve sobre o George Bush nos Estados Unidos. Nós precisamos, de uma vez por todas, parar com a história de querer que a imprensa combine com o nosso juízo de bom gosto ou de boa educação. É claro que é dever do jornalista ser elegante, mas, fundamentalmente, o dever de imprensa e ser livre.


 


OP – O Brasil está na iminência de implantar seu sistema de TV e rádio digital. De que maneira esse novo modelo, esse novo sistema, pode colaborar com esse processo de democratização da informação no País?
Eugênio – Como qualquer tecnologia, pode colaborar ou obstruir a inclusão social. O computador pode ser um aparelho que produza a inclusão social e pode ser um aparelho que produza a exclusão. A própria televisão, depois a TV colorida. A leitura, a falta de acesso à leitura é uma ferramenta política de oligarquia. Portanto, não é a tecnologia que produz democratização. É o contrário. A democratização é que elege e implementa tecnologias que são mais fecundas. Agora, na TV digital, o que pode ter como parâmetro é que a multiprogramação vai ser uma ferramenta importante para canais institucionais e vai dar transparência aos poderes públicos. Você pode acoplar a TV digital com computadores de uma forma que isso produza inclusão digital e assim por diante. De novo, não é uma discussão tecnológica. É uma discussão da participação da sociedade, de maneira esclarecida, e não de maneira preconceituosa ou fundamentalista – como às vezes a gente vê – em torno da escolha dos melhores padrões. Nós não podemos correr o risco de que a comunicação pública perca o bonde da tecnologia digital. Eu acho que os personagens que contam estão devidamente alertados para isso.


 


OP – Para concluir essa entrevista, gostaria de lhe fazer uma pergunta de teor mais conceitual. Num país pobre como o Brasil, em que há grande percentual de analfabetos, em que há uma grande concentração de renda e de poder econômico decorrente da manutenção da concentração de veículos de comunicação nas mãos de alguns grupos. O horizonte da informação democratizada, da democracia plena da informação, digamos assim, é um horizonte viável para o País? O senhor é otimista com relação a isso?
Eugênio – Eu sou muito otimista com relação a isso. A minha experiência na Radiobrás, por mais que ela tenha tido percalços, contra-tempos e eventuais frustrações, é uma experiência que, no plano pessoal, eu considero muito bem sucedida. Não pelo que ela alcançou propriamente. Mas por aquilo que ela demonstrou que é possível ser feito. E nós fizemos muitas coisa. Podiam ter sido mais bem feitas, e esse País precisa de muito mais em termos de informação. E é possível de se fazer. Eu sou muito otimista com relação a isso. Veja como o tema da informação e da comunicação pública vai se tornando um tema de preocupação das pessoas. E você falou uma coisa que acho importantíssimo deixar claro. Não há incompatibilidade entre a comunicação privada, comercial e a comunicação pública não-comercial. Pelo contrário. Há uma complementaridade. Uma pode, inclusive, se beneficiar da outra.


 


OP – De que maneira?
Eugênio Bucci – Elas não são rivais. Assim como uma mão de uma rodovia não é rival da outra mão da mesma rodovia. São atividades diferentes. Assim como as atividades públicas, numa democracia bem equilibrada, não são oponentes das atividades privadas, comerciais. Uma precisa da outra. O que seria do mercado se não fossem as regulações que cabe ao poder público fazer? E o que seria de um país que não tivesse atividade econômica de mercado e, portanto, não tivesse recolhimento de impostos e tudo o mais? Essa mesma relação pode ser vista entre a comunicação pública e a comunicação comercial. Os temas que cabem em uma não cabem direito na outra. Mas isso, só a prática vai demonstrar. E, por fim, você tinha perguntado se eu tenho cargo no governo, eu queria também deixar muito claro que não tenho cargo nenhum no governo. Sou hoje um cidadão fora do governo. Já não pertencia ao governo como presidente da Radiobrás, porque a Radiobrás é uma empresa pública, não é parte da administração direta, ela é da administração indireta. Mas agora não tenho cargo nenhum no governo. Vou ajudar como cidadão naquilo que estiver ao meu alcance e aquilo que for do desejo das pessoas envolvidas nesse processo, como ajudei agora na realização do Fórum de TVs públicas, mas sou hoje um cidadão fora do governo.


 



SAIBA MAIS


 


– A Radiobrás foi criada em 1975 com a finalidade de operar as emissoras de rádio e televisão do Governo Federal. Em 1988, absorveu a Empresa Brasileira de Notícias, sucessora da antiga Agência Nacional, e passou a ser denominada Empresa Brasileira de Comunicação. A Radiobrás já foi vinculada aos Ministérios das Comunicações e da Justiça e, desde 1992, está ligada à Presidência da República. O sistema Radiobrás compreende uma importante agência de notícias, uma rádio-agência, duas emissoras de televisão e cinco emissoras de rádio, que operam em ondas curtas, ondas médias e freqüência modulada. A empresa atua ainda na distribuição da publicidade legal de cerca de 1.130 entidades governamentais. (fonte: site da Radiobrás)


 


– Primeiro canal público internacional do País, a TV Brasil faz parte da estrutura da Radiobrás e tem como proposta estimular o intercâmbio cultural entre os países da América do Sul através de uma programação diária composta por produções brasileiras e de países sul-americanos. A primeira transmissão experimental da emissora se deu em janeiro de 2005. Em setembro de 2005, ela entrou no ar em caráter definitivo. (fonte: site da TV Brasil)


 


– No Brasil, segundo cronograma divulgado pelo Ministério das Comunicações, a TV digital deverá começar a funcionar no final do ano. As transmissões começam pela região metropolitana de São Paulo. As demais capitais começam as transmissões em dezembro de 2009, e todos os outros municípios, em dezembro de 2013. O atual sistema analógico de transmissão, utilizado atualmente, só será desligado por completo no final de junho de 2016. O padrão digital possui um espaço maior nas faixas de freqüências, o que permite maior qualidade da imagem e do som, a criação de novos canais e a transmissão de informações da internet.


 


– O 1º Fórum Nacional de TVs Públicas foi encerrado na última sexta-feira e teve o objetivo de discutir a televisão pública e seus desafios no cenário da comunicação social contemporâneo. Nos debates, foram tratadas questões como missão e finalidade da programação e modelo de negócios, marcos regulatórios, migração digital e sistemas de financiamento. Eugênio Bucci foi um dos participantes do Fórum. ''Eu não acredito em coisa chapa branca. A coisa chapa branca, o mal dela, é que ela se desmoraliza por ela mesma. Não adianta você querer fazer uma coisa para falar bem do ministro da Cultura ou para falar bem do presidente da República. Isso não dura três meses'', disse Lula no encerramento do Fórum. ''Eu disse para o papa ontem que o Brasil é um país laico. E a nossa televisão será laica''.



Coordenada do poder à quarentena
Cinco meses e vinte dias depois de ter posto o cargo à disposição do presidente Lula, Eugênio Bucci deixou o comando da Radiobrás para ser substituído por José Roberto Garcez, então diretor de Jornalismo da empresa, filiado ao PT e ligado ao ex-ministro Olívio Dutra. Na época, Bucci afirmou que sua saída não teve relação com qualquer tipo de insatisfação em relação ao governo nem vice-versa.


 


''Depois da publicação da notícia de que havia uma pressão para que a Radiobrás trabalhasse informações favoráveis ao governo, o debate sobre o assunto se ampliou'', afirmou em março. ''Tive a oportunidade de dizer que a comunicação a cargo da autoridade pública, seja institucional ou estatal, não pode ser utilizada como ação de propaganda. O Garcez é também autor do projeto de comunicação atual da empresa. Significa que posso sair sem que haja interrupção na forma de administrá-la''.


 


Depois de confirmar sua saída, Bucci se colocou à disposição do governo para contribuir no debate sobre a TV Pública e afirmou que iria se submeter a uma quarentena antes de retornar ao mercado. ''Acho que a quarentena será boa até para minha saúde'', afirmou.



FRASES:


''O nível de comunicação chamado de chapa-branca não tem a verdade como valor supremo. Nós deixamos de fazer qualquer promoção de pessoas ou de autoridades. O que, quando se dava no passado, se dava ao arrepio da lei''.


 


''A prática da chapa-branca e do cabotinismo oficial é comum em quase todas as emissoras públicas do Brasil, de rádios e televisão. Autoridades públicas que se valem dessas instituições como se elas fossem suas assessorias de imprensa pessoal, privadas. Isso tem sido a regra na tradição brasileira''.


 


''Isso é uma tremenda de uma bagunça. É uma confusão, é uma terra de ninguém, é uma zona de sombra na legislação. As concessões no Brasil ainda são verdadeiras capitanias hereditárias e ninguém faz a verificação regular que deveria ser feita''.


 


''As equipes das emissoras públicas precisam passar por um desenvolvimento, por um aperfeiçoamento, por uma capacitação intensiva. E é preciso haver reestruturação nesse setor. Uma das coisas graves é a falta de competência''.


 


''A imprensa deve fazer com que apareçam as múltiplas faces da indignação. O poder público deve ser verificado com obstinação e com indignação. É claro que os excessos precisam ser corrigidos e precisam ser publicamente corrigidos, e os responsáveis precisam ser punidos''.



Fonte: Jornal O Povo