Lições de uma repórter chamada Clarice Lispector

Clarice Lispector era a encarnação do temor e do inusitado quando tinha de assumir o papel de repórter. Embora culta, fina e criativa, receava diante das entrevista que fez entre os anos 60 e 70 para as revistas Manchete e Fatos e Fotos<

Os medos pareciam morrer na hora H. Clarice então se tornava implacável – perguntava de tudo, das coisas cotidianas às mais abstratas. Guardava vários truques, como o costume de contar algo pessoal para que o entrevistado se sentisse à vontade e falasse de si mesmo também. A pesquisadora Claire Williams, organizadora do livro, destaca o quanto é possível ''entrever'' a própria Clarice quando ela escreve sobre os outros.


 


Suas colaborações à imprensa eram ocasionais. Começou a trabalhar como jornalista em 1940, na Agência Nacional, em plena 2ª Guerra Mundial. Se as primeiras páginas dos jornais estampavam notas do conflito, ela poderia contribuir para A Noite, com uma entrevista com um político ou mesmo um intelectual.


 


 


O sucesso se estabeleceu no fim dos anos 1960, quando foi convidada a fazer entrevistas para a Manchete. Na época, dividia-se entre escrever o romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e o livro infantil A Mulher que Matou os Peixes. Ainda arrumava tempo para compor crônicas para o Jornal do Brasil. O encontro com personalidades, apesar de uma obrigação, despontava como momento de prazer e descontração.


 


Entrevistas é uma seleção de 42 conversas realizadas pela escritora entre maio de 1968 e outubro de 1969, sendo 19 delas inéditas em livro. Não se trata de uma coleção de diálogos comuns – como era de se esperar de uma autora como Clarice (1920-1977). Mais do que contar a vida e registrar opiniões de figuras ilustres como Nelson Rodrigues, Chico Buarque de Holanda, Pablo Neruda, Paulo Autran, o livro reúne entrevistas que muito revelam da escritora e do comportamento da época.


 


Perguntas-surpresas


 


Autora de fama internacional, que conseguia impregnar qualquer tema, por mais superficial que aparentemente fosse, e de uma profunda humanidade, Clarice surpreendia ao fazer perguntas mais abstratas, estranhas até: ''Qual é a coisa mais importante do mundo?'', ''O que é o amor?'' e ''Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?''. Estes eram seus questionamentos preferidos, como observa Claire Williams no prefácio.


 


Claire lembra que nem sempre os entrevistados conseguiam entrar no jogo. Quando perguntou a Nelson Rodrigues: ''Nelson, você tem conversado com todo mundo, com muitas pessoas. Todas as suas conversas se parecem com esta nossa?''. Clarice ouviu a seguinte resposta: ''Não, eu estou fazendo um esforço, um abnegado esforço para não trapacear com você''.


 


Poucos autores conseguem ser originais diante de indagações atípicas ao jornalismo. ''Amor é dádiva, renúncia de si mesmo na aceitação do outro'', responde Fernando Sabino. Sem muita paciência, Neruda responde que ''o amor é o amor''. Chico Buarque sai pela tangente: ''não sei definir, e você?'' Ao que Clarice Lispector responde: ''nem eu''. Zagallo, depois de pensar um tempo, dá sua versão: ''é um sentimento recíproco''.


 


''É bom estar apaixonada?'', pergunta Clarice, banalmente, a Elis Regina. Banalmente, a cantora responde: ''Bem melhor do que não sentir nada!''. Não por acaso, Clarice pede a Pablo Neruda que diga alguma coisa surpreendente. O poeta chileno responde: ''748''. Surpresas mais autênticas, felizmente, acontecem de quando em quando.


 


Perguntando a Alceu de Amoroso Lima (1893-1983) o que ele sentiu diante das viagens à Lua, Clarice Lispector ouve o seguinte: ''Não mais do que adolescente, em 1909, estando em Berlim, ao ler nos jornais que Blériot atravessara o Canal da Mancha de avião!''


 


Sem isenção


 


A autora de A Hora da Estrela, sua última obra que completa agora 30 anos de publicação estabelecia, no entanto, uma adorável intimidade com os entrevistados. Uma proximidade que lhe deu liberdade, por exemplo, para dizer ao então jovem e solteiro Chico Buarque que seu ar de ''bom rapaz'' fazia dele o genro ideal para ''todas as mães com filhas em idade de casar''. Ou para telefonar para ''uma das esposas'' de Vinicius de Moraes e perguntar como ela se sente casada com o poeta.


 


Clarice também não conseguia ficar isenta durante as conversas, como quando diverge da opinião de Jece Valadão sobre o assassinato de Ângela Diniz, confessa seus medos a Maria Bonomi, revela a Zagallo sua fé em santos católicos, discute criação artística com Tom Jobim e ainda elogia, sem nenhum constrangimento, a beleza dos atores Paulo Autran e Tarcísio Meira.


 


As entrevistas permitiram a Clarice conhecer artistas, esportistas, políticos. E nem sempre a conversa era prevista. Certo dia, ela encontrou por acaso o piloto Emerson Fittipaldi em um avião e aproveitou para fazer algumas perguntas. Algumas vezes, recusou-se a fazer a entrevista, como foi o caso de Pelé. Simplesmente porque não quis.


 


A explicação é evidente: a escritora sempre controlava as entrevistas e não temia fazer perguntas impertinentes. ''Ela calculava o sucesso de uma entrevista pelo fato de ficar ou não amiga do entrevistado no fim'', observa Claire Williams. E Clarice revela muito das personalidades de sua época, em parte porque seus entrevistados aceitam – ou se sentem obrigados a – entrar no jogo.


 


Confissões


 


A maior frustração de Fernando Sabino, por exemplo, é a de não ter sido um santo. Millôr considera-se, no fundo, ''um atleta frustrado''. Jorge Amado joga pôquer e confessa já ter escrito poesia, ''da pior espécie possível''. A entrevistadora recebe também algumas discretas declarações de amor. Tom Jobim escreve um poema sobre seus olhos verdes.


 


Mais ousado é Hélio Pellegrino. Numa das melhores entrevistas do livro, ele diz que se lhe fossem dadas outras vidas para viver, numa delas seria marido de Clarice Lispector, ''a quem me dedicaria com veludosa e insone dedicação''. Referindo-se ao acidente que Clarice sofreu em 1967, Vinicius de Moraes murmura: ''Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…''.


 


O mais desbocado e extremo de todos eles é sem dúvida José Carlos de Oliveira. A bordo de muitos uísques, o cronista termina quase brigado com a entrevistadora, de quem se queixa: ''Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver''. Com certa amargura, resumiu o espírito de todo o livro.


 


Novas impressões


 


A cada nova entrevista, Clarice parecia renovar suas impressões sobre o interlocutor. Declarando-se ''fervente admiradora de Ferreira Gullar'' e assumindo ''um pouco de medo dele'', temia ser ''aniquilada'' pelo entrevistado. ''Eu desconfiava que ele rejeitava a minha 'literatura'. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do que ele escrevia e escreve.''


 


Neruda, a seu ver, ''é extremamente simpático, sobretudo quando usa o seu boné''. O relato de Clarice é tenro: ''(Neruda) Pediu para ver as perguntas que eu iria fazer. Inteiramente sem confiança em mim mesma, dei-lhe a página onde anotara as perguntas, esperando só Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. Disse-me que eram muito boas e que me esperaria no dia seguinte. Saí com alívio no coração porque estava adiada a minha timidez em fazer perguntas.''


 


Do amigo Rubem Braga, desconfianças e afinidades. ''Há mil 'rubens' dentro de Rubem Braga, é claro, assim como há mil 'clarices' em mim. E tanta coisa eu desconheço em Rubem, que era melhor entrevistá-lo de vez. Pelo menos tentarei atenuar o seu mistério''


 


Clarice Lispector – Entrevistas traz boas lições de humanidade e respeito. É um livro também para os jornalistas que, em tempos de imprensa cada vez mais marrom, procuram e encontram cores também no inusitado de uma entrevista – e da vida.


 



Leia mais trechos de entrevistas de Clarice.


 


COM RUBEM BRAGA
Rubem, eu te conheço há tantos anos que, se você não fosse misterioso e calado, eu não teria pergunta nenhuma a fazer. Concorda?
Mas acontece que sou uma esfinge sem segredo. Calado, nem tanto. Ou nem sempre. Até que já tenho falado demais. E estou aqui falando.


 


COM JORGE AMADO
Jorge, alguns acusam você de superficialidade nos últimos livros. Que é que você acha disso?
Os primeiros são, a meu ver, mais superficiais.


 


COM FERNANDO SABINO
Fernando, você acha que a nossa geração falhou? Eu acho que sim. Acho que nos faltou dar o corajoso passo no escuro. Nós não tínhamos desculpa, porque tínhamos talento e vocação.
Não sei se nossa geração falhou. Nunca me senti, como escritor como parte de uma geração.


 


Nem eu, pensei.
Sempre me senti sozinho e este talvez tenha sido o meu erro. Quis aprender sozinho e perdi a inocência. O artista é um inocente. Era preciso reaprender a olhar tudo como se fosse a primeira vez. Eu olhei como se fosse a última. Em tempo: o romance que não consegui escrever se chamaria O Salto no Escuro. Estou dispensado até desse título, pois já saiu outro com o mesmo nome.


 


COM PABLO NERUDA
Neruda, escrever melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas teu ofício é celestial. Senão é infernal.


 


COM VINICIUS DE MORAES
Vinicius, você suporta ser ídolo? Eu não suportaria.
Às vezes, fico mal-humorado. Mas uma dessas moças explicou: é que você, Vinicius, vive nas estantes de nossos livros, nas canções que todo mundo canta, na televisão. Você vive conosco, em nossa casa.


 


COM TOM JOBIM
Tom, você acha que é dever seu o de fazer a música que sua alma pede? Pelas coisas que você disse, suponho que significa que o nosso melhor está dito para as elites.
Evidentemente que nós, para nos expressarmos, temos que recorrer à linguagem das elites, elites estas que não existem no Brasil… Eis o grande drama de Carlos Drummond de Andrade e Villa-Lobos.


 


COM ELIS REGINA
Elis, você foi considerada má colega. Pelo que tenho lido a seu respeito, me parecera pelo contrário: boa colega. O que é ser má colega?
Bom, por toda a minha vida disseram que fui má colega. Mas, enquanto eu dei 40 no Ibope, tive um programa de televisão na mão e as pessoas puderam se sobressair. Utilizaram-se de todas as vantagens que a artista Elis Regina poderia lhes dar no momento. Nenhum artista dos que hoje me acusam de má colega deixou de comparecer e usufruir meu programa e meu sucesso. Então, eu não sei mais quem foi e quem é má colega. Má colega, na minha opinião, é aquela que esconde seus parceiros.


 


COM NELSON RODRIGUES
Nelson, você gostou de me dar esta entrevista?
Gostei profundamente. O que conta na vida são os momentos confessionais.