Competição religiosa confronta a república secular e democrática

Por Alberto Dines
 
O Brasil é uma república secular, apesar da referência à ''proteção de Deus'' no preâmbulo da Carta Magna. Significa que, pelo menos no papel, não existe uma religião oficial, está garantida a plena liberdade de crença

Na Folha de S.Paulo de domingo (29/4, pág. A-10), a repórter Elvira Lobato desvendou a criação da terceira rede nacional católica de televisão para enfrentar o avanço das evangélicas reforçadas pela aliança Record-Igreja Universal (''Igreja Católica quer pôr no ar 3ª TV nacional'').



Comprova-se a enorme distância entre o Brasil de jure e o Brasil de facto. Nossos estatutos legais preconizam uma situação, nossa realidade vai na direção contrária, a letra da lei raramente coincide com o espírito da lei.



Conquistas seculares



Teoricamente, é legítima a disputa teológico-televisiva entre o Vaticano e a os seguidores de Lutero. Acontece que tanto as emissoras católicas como as evangélicas são concessões públicas oferecidas pelo Estado brasileiro e referendadas pelo Congresso Nacional. E o Estado brasileiro é intrinsecamente laico, secular (cf. Título II, Cap. I, parágrafos VI e VIII).



Significa que não podem existir emissoras (de rádio e TV) para atender exclusivamente à difusão de determinada confissão religiosa. Todas deveriam ser igualmente universais, minimamente ecumênicas e ecléticas para nelas caber, em igualdade de condições, todas as crenças assim como as doutrinas seculares e agnósticas.



O Estado brasileiro confronta aberta e cabalmente a Constituição que deveria regê-lo e insufla, com a sua complacência/letargia, uma disputa religiosa que num futuro não muito distante poderá produzir animosidades, intolerâncias, segregações e secessões irreparáveis.



A questão não é abstrata nem está circunscrita à academia. Se existissem jornais na época das Cruzadas seu noticiário não seria muito diferente da pauta jornalística internacional neste início do século 21.



Veja-se o caso da Turquia, nação majoritariamente islâmica mas cuja sociedade recusa-se a abrir mão das conquistas seculares e modernizadoras introduzidas por Mustafa Kemal Ataturk (1881-1938) e os ''jovens turcos'', nos anos 20 do século passado.



Território público



Aparentemente antagônicas, as redes católicas e evangélicas (e hipoteticamente, por extensão, as islâmicas, afro-brasileiras, ortodoxas ou judaicas) defendem postulados comuns e dogmas anticientíficos capazes de condenar o país a atrasos irrecuperáveis em matéria de conhecimentos.



É bom registrar que a nossa televisão – estatal, privada ou confessional – situa-se num território público, democrático, indivisível e interditado ao loteamento e ao particularismo. Mesmo que a distribuição de privilégios & concessões pareça equilibrada e eqüidistante na esfera religiosa, ela confronta a cláusula pétrea da Lei Maior (art. 5º, parágrafo VII): ''Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política''.



Fonte: Observatório da Imprensa