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Murilo Mendes: poesia e surrealismo

Cometo aqui uma inconfidência amigável: beneficio-me do que o amigo jornalista e poeta Carlos Machado escreveu, na página eletrônica www.algumapoesia.com.br (que publica o boletim eletrônico poesia.net, uma antologia comentada e analisada) sobre o mineiro Murilo Mendes que, no dia 13 de maio teria completado 110 anos de idade (José Carlos Ruy).

Murilo Mendes, por Ismael Nery
Murilo Mendes

Por Carlos Machado

Um dos principais nomes da segunda geração modernista, Murilo Mendes (1901-1975) nasceu em Juiz de Fora, MG, e ainda jovem transferiu-se para o Rio de Janeiro. Seu primeiro livro, Poemas, é de 1930, o mesmo ano de estreia de outro mineiro da mesma geração, Carlos Drummond de Andrade, com Alguma Poesia.

No início, a poesia de Murilo Mendes enquadra-se perfeitamente no projeto modernista: o poema-piada, a busca de uma linguagem coloquial, revisitações poéticas da História do Brasil. Em 1934, após a morte do pintor Ismael Nery, seu amigo, o poeta converteu-se ao catolicismo. Isso refletiu-se em sua poesia, que passou a assumir uma dimensão transcendente, combinada com influências surrealistas.

Nessa vertente, em parceria com o poeta Jorge de Lima, Murilo publica o livro Tempo e Eternidade, de 1935. Os traços religiosos desaparecem nas obras subsequentes. A profunda destruição da Segunda Guerra Mundial e o período de tensão da guerra fria marcaram profundamente a poesia muriliana. Num poema a João Cabral de Melo Neto, assim como em várias outras ocasiões, o poeta se define como defensor da paz: "Comigo e contigo a antibomba/ A flor azulbranca da paz."

Experimentador da linguagem, Murilo tornou-se um mestre na criação de neologismos e da utilização do espaço em branco da página. Ficaram famosos seus poemas curtos que ele batizou de "murilogramas". Nesses versos, o juiz-forano homenageia autores de sua predileção, entre os quais Baudelaire, Camões, Pessoa, Bandeira e Drummond. Aliás, os dois versos citados no parágrafo anterior pertencem a um texto chamado "Murilograma a João Cabral de Melo Neto".

O poema ao lado, "Jandira", foi extraído do volume O Visionário, de 1941. Observem como o autor combina linguagem prosaica e coloquial com deliciosos achados de nonsense surrealista.

Murilo Mendes viveu seus últimos 18 anos na Itália. Aqui e lá, continuou escrevendo. Deixou 16 livros de poemas, sem contar antologias, reuniões da poesia completa, inéditos e obras em prosa.

Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado

Livros de Murilo Mendes

Poemas (1930)
História do Brasil (1932)
Poesias (1925–1955)
Tempo e Eternidade (1935)
Poesia em Pânico (1938)
O Visionário (1941)
As Metamorfoses (1944)
Mundo Enigma (1945)
Poesia Liberdade (1947)
Contemplação de Ouro Preto (1954)
Bumba-Meu-Poeta (escrito em 1930 e publicado em 1959)
Tempo Espanhol (1959).
Convergência (1970)
O Discípulo de Emaús (1944)
A Idade do Serrote (1968)
Livro de memórias (1972)
Poliedro (1972)

Poemas de Murilo Mendes

Por causa de Jandira

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis
[ do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira…

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham
[ importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de
[ Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de
[ Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
[ de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
[ das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
[ Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os
[ seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
[ que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o
[ princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
[ cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
[ transparente

Ao Aleijadinho

Pálida a lua sob o pálio avança
Das estrelas de uma perdida infância.
Fatigados caminhos refazemos
Da outrora máquina da mineração.

É nossa própria forma, o frio molde
Que maduros tentamos atingir,
Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados,
Sem crispação, matéria já domada,

O exemplo recebendo que ofereces
Pelo martírio teu enfim transposto,
Severo, machucado e rude Aleijadinho

Que te encerras na tenda com tua Bíblia,
Suplicando ao Senhor – infinito e esculpido –
Que sobre ti descanse os seus divinos pés.

Montanhas de Ouro Preto
(A Lourival Gomes Machado)

Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos,
Entre cinza e castanho, o olhar domado

Recolhe vosso espectro permanente.
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta

De uma luta antiqüíssima com o caos,
De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,

Relíquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.

Guernica

Subsiste, Guernica, o exemplo macho,
Subsiste para sempre a honra castiça,
A jovem e antiga tradição do carvalho
Que descerra o pálio de diamante.

A força do teu coração desencadeado
Contatou os subterrâneos de Espanha.
E o mundo da lucidez a recebeu:
O ar voa incorporando-se teu nome.

Murilograma a Graciliano Ramos

1

Brabo. Olhofaca. Difícil.
Cacto já se humanizando,

Deriva de um solo sáfaro
Que não junta, antes retira,

Desacontece, desquer.

2

Funda o estilo à sua imagem:
Na tábua seca do livro

Nenhuma voluta inútil.
Rejeita qualquer lirismo.

Tachando a flor de feroz.

3

Tem desejos amarelos.
Quer amar, o sol ulula,

Leva o homem do deserto
(Graciliano-Fabiano)

Ao limite irrespirável.

4

Em dimensão de grandeza
Onde o conforto é vacante,

Seu passo trágico escreve
A épica real do BR

Que desintegrado explode.

(Roma, 1963)