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Engels sobre Balzac: conservador, mas realista

O fundador do realismo literário moderno nunca deixou seu monarquismo embotar a descrição da ascensão da burguesia, do poder do dinheiro, e do declínio da aristocracia. Daí seu valor, diz Friedrich Engels numa carta à escritora Margaret Harkness.

Por José Carlos Ruy

- Reprodução

Fundador do realismo literário moderno, o escritor francês Honoré de Balzac, sem ser aquilo que se convenciona chamar de romancista histórico, deu à literatura quase uma dimensão histórica- ou, dito de outra forma, deu expressão literária aos fenômenos políticos, sociais, econômicos, de seu tempo. Um tempo em que a burguesia emergia como a força social dominante, lançando os tentáculos do dinheiro e de sua forma de viver não só sobre o proletariado que estava sob seu tacão mas também sobre a velha aristocracia derrotada nas revoluções do final do século 18 e que, mesmo quando conseguiu restaurar parte de seu poder, só pode fazê-lo sob as formas e a lógica tipicamente burguesas.

Mesmo sendo um monarquista e partidário da aristocrqacia, Balzac (cujo aniversário se comemora no dia 20 de maio; ele nascem em 1799 e viveu até 1850) não deixou suas convicções politicas embotarem o realismo com que encarou e descreveu a sociedade de seu tempo.

Esta é a tese defendida por Engels na carta endereçada à escritora socialista inglesa Margaret Harkness. Escrita em 1888, foi um dos textos onde Friedrich Engels manifestou opiniões elogiosas a respeito da obra de Honoré de Balzac.

Harkness foi autora de vários romances publicados no final do século 19 e havia enviado a Engels um exemplar de seu primeiro livro, “City Girl”. O ardor socialista naqueles anos. Mas hoje ela é lembrada principalmente PELOS comentários de Engels a sua literatura.
Na carta que o Vermelho reproduz nesta edição, Engels refere-se ao realismo de Balzac que faz o escritor francês superar suas opiniões reacionárias ao descrever com cores fortes a ascensão dos valores burgueses na sociedade francesa de seu tempo.

Friedrich Engels

Confira a carta enviada por Friedrich Engels a Margaret Harkenss:

Londres, início de abril de 1888

Cara Srta. Margaret Harkness

Agradeço muito por me enviar seu "City Girl", através dos Srs. Vizetelly. Eu o li com o maior prazer e avidez. É, na verdade, como meu amigo Eichhoff seu tradutor diz, kleines Kunstwerk ein … (uma pequena obra de arte).

Se tenho algo a criticar, seria o fato de que talvez, afinal, o livro não é realista o suficiente. Realismo, em minha opinião, implica, para além da verdade dos detalhes, na reprodução de verdadeiros personagens típicos em circunstâncias típicas. Agora, seus personagens são típicos o suficiente, tanto quanto possível. Mas talvez as circunstâncias que os cercam e os fazem agir talvez não sejam parecidas. Em "City Girl" a classe trabalhadora é retratada como uma massa passiva, incapaz de ajudar a si mesma, não podendo mesmo demonstrar (fazer) qualquer tentativa de esforço nesse sentido.

Todas as tentativas de arrastá-la fora de sua apática miséria vêm de fora, de cima para baixo. Agora, se esta era uma descrição correta por volta de 1800 ou 1810, nos dias de Saint-Simon e Owen Robert, ela não pode aparecer assim em 1887 a um homem que durante quase cinquenta anos teve a honra de participar na maioria das lutas do proletariado militante. A reação de rebeldia da classe trabalhadora contra o meio opressivo que a rodeia, suas tentativas – convulsivas, semi-inconscientes ou conscientes – para recuperar sua condição de seres humanos, pertencem à história e devem reivindicar um lugar no domínio do realismo.

Estou longe de ver como uma falha o fato de você não ter escrito um romance socialista à queima-roupa, uma "tendenzroman" (um romance de tendência), como dizemos em alemão, glorificando o ponto de vista social e político do autor. Não é isso que quero dizer. Quanto mais as opiniões do autor permanecerem ocultas, melhor para a obra de arte. O realismo a que me refino revela-se a despeito das opiniões do autor. Deixe-me referir, por exemplo, a Balzac, a quem considero um mestre do realismo ainda maior do todos os Zolas do passado, presente e futuro. Em A Comédia Humana Balzac nos dá uma história maravilhosamente realista da "sociedade" francesa, especialmente do monde parisien (ao mundo social parisiense), descrevendo, na forma de crônica, quase ano a ano de 1816-1848 a ascensão progressiva da burguesia sobre a sociedade de nobres, que reconstituiu após 1815 e estabeleceu outra vez, na medida em que pode, o padrão da viellie politesse française (o refinamento francês).

Ele descreve como os últimos remanescentes deste mundo, que encarava como uma sociedade modelo, sucumbiram gradualmente ante a invasão dos vulgares arrivistas endinheirados, ou foram corrompidos por eles, como a grande dama cujas infidelidades conjugais não passavam de uma maneira de se acomodar com o modo como ela foi preparada em seu casamento, cedeu lugar à burguesia, e chifrava o marido por dinheiro ou cashmere. Em torno desta figura central Balzac agrupou uma história completa da sociedade francesa na qual, mesmo em pormenores econômicos (por exemplo, o rearranjo de bens móveis e imóveis após a Revolução), aprendi mais do que de todos os historiadores professos, economistas e estatísticos do período juntos.

Bem, Balzac era politicamente um legitimista; sua grande obra é uma elegia constante sobre a decadência inevitável da boa sociedade; suas simpatias são todas para a classe condenada à extinção. É por tudo isso que sua sátira nunca é aguçada, sua ironia nunca é amarga, mesmo quando ele põe em movimento os próprios homens e mulheres com quem simpatiza mais profundamente – os nobres. E os únicos homens de quem ele sempre fala com indisfarçável admiração, são os seus mais ferrenhos adversários políticos, os heróis republicanos do Cloître Saint-Méry, os homens, que na época (1830-6) foram de fato os representantes das massas populares. Que Balzac tenha sido obrigado a ir contra suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, que tenha visto a necessidade da queda dos seus nobres favoritos, e que os tenha descrito como pessoas que não mereciam melhor sorte; e que tenha visto os verdadeiros homens do futuro no púnico lugar onde então eles só podiam ser encontrados – isto é o que considero um dos maiores triunfos do realismo, e uma das maiores características do velho Balzac.

Devo admitir, em sua defesa, que em nenhum lugar do mundo civilizado são os trabalhadores menos ativamente resistentes, mais passivamente submissos ao destino, mais hébétés (confusos) do que no East End de Londres. E como posso saber se você não tem boas razões para, contentando-se com uma imagem inicial da passividade da vida da classe trabalhadora, não tenha reservado o lado ativo para um outro trabalho?

Friedrich Engels

 

Karl Marx e Balzac

O conto “A obra-prima ignorada” é tido como um dos escritos de Balzac preferidos por Karl Marx e descreve a angústia do artista (e, por extensão, do cientista) na busca da perfeição.

O Vermelho publica aqui a parte final do conto, intitulada ]’Catarina Lescault”:

A obra-prima ignorada

II – Catarina Lescault

Três meses depois do encontro de Poussin e Porbus, este foi visitar mestre Frenhofer. O ancião estava então sujeito a um desses desânimos profundos e espontâneos cuja causa, se devemos dar créditos aos matemáticos da medicina, reside numa má digestão, no vento, no calor, ou em alguma inchação dos hipocôndrios; e, segundo os espiritualistas, na imperfeição da nossa natureza moral. O velhote pura e simplesmente se cansara em dar a última demão no seu misterioso quadro. Estava preguiçosamente sentado numa vasta poltrona de carvalho esculpido, forrada de couro preto; e, sem sair de sua atitude melancólica, dirigiu a Porbus o olhar de um homem que se instalara no seu tédio.

— E então, mestre — perguntou-lhe Porbus —, o ultramar que foi buscar em Bruges não era bom? Será que não soube misturar nosso novo branco? Seu óleo era ruim ou os pincéis eram teimosos?

— Ai de mim! — exclamou o ancião — durante um momento acreditei que minha obra estivesse concluída; mas com certeza me enganei nalguns detalhes e não sossegarei enquanto não dissipar minhas dúvidas. Estou decidido a viajar e vou à Turquia, à Grécia, à Ásia para procurar por lá um modelo e comparar meu quadro com alguns nus… É possível que eu tenha lá em cima — continuou, esboçando um sorriso de satisfação — a própria natureza. Por vezes, quase tenho medo de que um sopro desperte aquela mulher e que ela desapareça.

Depois, ergueu-se de repente, como para partir.

— Oh! oh! — respondeu Porbus — chego a tempo para poupar-lhe as despesas e as fadigas da viagem.

— Como assim? — perguntou Frenhofer, admirado.

— O jovem Poussin é amado por uma mulher cuja incomparável beleza não tem a menor imperfeição. Mas, meu caro mestre, se ele consente em emprestar-lha, será preciso pelo menos que nos deixe ver sua tela.

O ancião permaneceu de pé, imóvel, num estado de perfeita estupidez.

— Como! — exclamou ele, por fim, dolorosamente — mostrar minha criatura, minha esposa? Rasgar o véu sob o qual casta-mente encobri minha felicidade? Mas isso seria uma horrível prostituição! Faz dez anos que vivo com essa mulher, ela é minha, só minha, ela me ama. Não me sorriu a cada pincelada que lhe dei? Ela tem uma alma, a alma com que a dotei. Ela coraria se outros olhos que não os meus a fixassem. Mostrá-la! mas qual é o marido, o amante suficientemente vil para levar sua mulher à desonra? Quando fazes ora quadro para a Corte, não pões nele toda a tua alma, não vendes aos cortesãos mais do que manequins coloridos. Minha pintura não é uma pintura, é um sentimento, uma paixão! Nascida na minha oficina, ela aí deve permanecer virgem e não pode sair senão vestida. A poesia e as mulheres só se entregam nuas aos seus amantes! Possuímos nós o modelo de Rafael, a Angélica de Ariosto, a Beatriz do Dante? Não! não lhes vemos senão as formas. Pois bem, a obra que tenho lá em cima trancada a ferrolho é uma exceção na nossa arte. Não é uma tela, é uma mulher! uma mulher com a qual choro, rio, converso, penso. Queres que repentinamente eu abandone uma felicidade de dez anos como se atira uma capa; que repentinamente eu deixe de ser pai, amante e deus? Essa mulher não e uma criatura, é uma criação. Que venha o teu rapaz, eu lhe darei meus tesouros, quadros de Correggio, de Michelangelo, de Ticiano, beijarei as pegadas de seus passos na poeira; mas fazer dele meu rival? opróbrio sobre mim! Ah! ah! sou mais amante ainda do que pintor. Sim, terei forças para queimar a minha Belle Noiseuse ao dar o último suspiro; mas fazê-la suportar o olhar de um homem, de um rapaz, de um pintor? não, não! Mataria no dia seguinte aquele que a tivesse poluído com um olhar! Eu te mataria agora mesmo, a ti, que és meu amigo, se não a saudasses de joelhos! Queres agora que eu submeta meu ídolo às frias miradas e às críticas estúpidas dos imbecis? Ah! o amor é um mistério que só tem vida no fundo dos corações, e tudo está perdido quando um homem diz, mesmo ao seu amigo: “Aí está a mulher que amo!”

O ancião parecia ter remoçado; seus olhos tinham brilho e tinham vida; suas faces pálidas estavam matizadas de um vermelho vivo e suas mãos tremiam. Porbus, espantado com a violência apaixonada com que aquelas palavras foram proferidas, não sabia o que responder a um sentimento tão novo como profundo. Frenhofer estava no uso da razão ou louco? Estaria ele subjugado por uma fantasia de artista, ou as idéias que ele exprimira procederiam desse singular fanatismo que se produz em nós pela criação laboriosa de uma grande obra? Poder-se-ia esperar transigir um dia com aquela paixão estranha?

Empolgado por todos esses pensamentos, Porbus disse ao ancião:

— Mas não é uma mulher por outra mulher? Não entrega Poussin sua amante aos olhares do senhor?

— Que amante? — respondeu Frenhofer. — Cedo ou tarde ela o trairá. A minha me será sempre fiel!

— Pois bem — disse Porbus —, não falemos mais nisso. Mas, antes do senhor achar, mesmo na Ásia, uma mulher tão bela, tão perfeita como esta de que lhe falo, morrerá talvez sem ter concluí-do seu quadro.

— Oh! ele está acabado — disse Frenhofer. — Quem o visse, julgaria estar vendo uma mulher deitada num leito de veludo, ve-lada por cortinas. Junto a ela uma tripeça de ouro exala perfumes. Ficarias tentado a agarrar as borlas dos cordões que retêm as cortinas, e te pareceria ver o seio de Catarina Lescault, uma bela cortesã chamada Belle Noiseuse, mover-se com a respiração. Entretanto, eu quisera ter certeza…

— Vá pois para a Ásia — respondeu Porbus, ao perceber uma certa hesitação no olhar de Frenhofer.

E Porbus deu alguns passos em direção à porta da sala.

Nesse momento, Gillette e Nicolas Poussin tinham chegado junto à residência de Frenhofer. Quando a moça estava a ponto de en-trar, soltou o braço do pintor e recuou como se a tivesse invadido algum súbito pressentimento.

— Mas, afinal, que venho eu fazer aqui? — perguntou ao amante com um som de voz profundo e olhando-o fixamente.

— Gillette, deixei-te senhora de tua vontade e quero obedecer-te em tudo. Tu és minha consciência e minha glória. Volta para ca-sa; eu serei mais feliz, talvez, do que se tu…

— Pertenço-me, acaso, quando me falas assim? Oh! não, não sou senão uma criança… Vamos acrescentou, parecendo fazer um esforço violento —, se nosso amor morrer e se puser no meu coração um infindável arrependimento, não será tua celebridade o preço da minha obediência aos teus desejos? Entremos, será ainda viver o estar sempre como uma recordação na tua paleta.

Ao abrirem a porta da casa, os dois amantes se encontraram com Porbus, o qual, surpreendido pela beleza de Gillette, cujos olhos estavam naquele momento rasos de lágrimas, segurou-a toda trê-mula e, levando-a ante o ancião, disse-lhe:

— Veja, não vale ela todas as obras-primas do mundo?

Frenhofer estremeceu. Gillette ali estava, na atitude ingênua e simples de uma jovem georgiana inocente e medrosa, raptada por bandidos e apresentada a algum mercador de escravos. Um pudico rubor corava seu rosto; ela baixava os olhos; as mãos pendiam aos lados, as forças pareciam abandoná-la, e lágrimas protestavam contra a violência feita ao seu pudor. Nesse momento, Poussin, desesperado por ter tirado do sótão aquele belo tesouro, amaldiçoou-se a si próprio. Tornou-se mais amante do que artista, e mil escrúpulos torturaram-lhe o coração quando viu os olhos rejuvenescidos do ancião, o qual, por um hábito de pintor, despiu, por assim dizer, aquela moça, adivinhando-lhe as formas mais secretas. Retornou então ao feroz ciúme do verdadeiro amor.

— Partamos, Gillette! — bradou.

Ante aquele rasgo, a amante, alegre, ergueu os olhos para ele, viu-o, e correu para seus braços.

— Ah! então tu me amas! — respondeu, desatando a chorar.

Depois de ter tido a energia de fazer calar seu sofrimento, ela não tinha forças para ocultar sua felicidade.

— Oh! deixe-ma por um momento — disse o velho pintor — e poderás compará-la com a minha Catarina… Sim, consinto.

No grito de Frenhofer ainda havia amor. Parecia ter faceirice para com seu simulacro de mulher e gozar de antemão o triunfo que a beleza de sua criação ia conseguir sobre a de uma verdadeira moça.

— Não o deixe desdizer-se — exclamou Porbus, batendo no ombro de Poussin. — Os frutos do amor passam depressa, os da arte são imortais.

— Para ele — respondeu Gillette, olhando Poussin e Porbus atentamente — eu não serei então mais do que uma mulher?

Ergueu a cabeça com altivez; mas, quando, depois de dirigir um olhar cintilante a Frenhofer, ela viu seu amante entretido a con-templar outra vez o retrato que anteriormente ele tomara por um Giorgione:

— Ah! — disse ela — subamos! Ele nunca me olhou assim.

— Ancião — disse Poussin, arrancando à sua meditação pela voz de Gillette —, olha esta espada, eu a mergulharei no teu cora-ção à primeira palavra de queixa que proferir esta moça, atearei fogo a tua casa, e ninguém sairá dela. Compreendes?

Nicolas Poussin estava sombrio e seu falar foi terrível. Essa ati-tude e sobretudo o gesto do jovem pintor consolaram Gillette, que quase o perdoou por sacrificá-la à pintura e ao seu glorioso futuro. Porbus e Poussin ficaram na porta do ateliê, olhando em silêncio um para o outro. Se, a princípio, o pintor de Maria Egipcíaca se permitiu algumas exclamações: “Ah! ela se está despindo, ele manda-a colocar-se em boa luz! Compara-a!”, pronto calou-se ante o aspecto de Poussin, cujo semblante estava profundamente triste; e, conquanto os velhos pintores não tenham mais escrúpulos desses, tão mesquinhos diante da arte, ele admirou-os, de tal forma eram ingênuos e bonitos. O rapaz estava com a mão no punho da espada e com o ouvido quase colado à porta. Ambos, na sombra e de pé, assemelhavam-se assim a dois conspiradores à espera da hora de apunhalar um tirano.

— Entrem, entrem! — disse o ancião, radiante de felicidade. Minha obra está perfeita, e agora posso mostrá-la com orgulho.

Jamais pintor, pincéis, tintas, tela e luz farão uma rival a Catarina Lescault, a bela cortesã!

Possuídos de viva curiosidade, Porbus e Poussin correram para o centro de uma vasta oficina coberta de pó, onde tudo estava em desordem, onde viram aqui e ali quadros pendurados nas paredes. Detiveram-se primeiro diante de uma figura de mulher de tamanho natural, seminua, que os encheu de admiração.

— Oh! não se ocupem com isso — disse Frenhofer —, é uma tela que borrei para estudar uma pose; esse quadro não vale nada. Aí estão meus erros — continuou, mostrando-lhes encantadoras composições penduradas às paredes, à roda deles.
Ante essas palavras, Porbus e Poussin, estupefatos com aquele desdém por tais obras, procuraram o retrato anunciado, sem conseguir vê-lo.

— Pois bem, aí está ele! — disse-lhes o ancião, cujos cabelos es-tavam em desordem, cujo rosto estava injetado por uma exaltação sobrenatural, cujos olhos cintilavam, e que ofegava como um rapaz ébrio de amor. – Ah! ah! – exclamou – não esperavam tanta perfeição! Estão diante de uma mulher e procuram um quadro. Há tanta profundidade nessa tela, o ar é nela tão real que não podem mais distingui-lo do ar que nos cerca. Onde está a arte? perdida, desaparecida! Eis as formas verdadeiras de uma rapariga. Não lhe dei bem o colorido, a precisão das linhas que parecem terminar o corpo? Não é o mesmo fenômeno que nos apresentam os objetos que estão na atmosfera como os peixes na água? Admirem como os contornos se destacam do fundo! Não lhes parece que podem passar as mãos nesse dorso? Também, durante sete anos, estudei os efeitos da conjunção da luz e dos objetos. E esses cabelos, não os inunda a luz?… Mas, creio, ela respirou!… Vejam, esse seio! Ah! quem não o quereria adorar de joelhos? As carnes palpitam. Ela vai erguer-se, esperem!

— Está vendo alguma coisa? — perguntou Poussin a Porbus.

— Não. E você?

— Nada.

Os dois pintores deixaram o velho entregue a seu êxtase, olha-ram para ver se a luz, ao cair a prumo sobre a tela que ele lhes estava mostrando, não neutralizava todos os seus efeitos. Examinaram então a pintura colocando-se à direita, à esquerda, de frente, abaixando-se e levantando-se alternativamente.

— Sim, sim, é mesmo uma tela — dizia-lhes Frenhofer, en-ganando-se com a finalidade daquele exame escrupuloso. — Olhem, aqui está a moldura, o cavalete, enfim, aqui estão minhas tintas, meus pincéis.

E apoderou-se de um pincel, que lhes apresentou num gesto ingênuo.

— O velho lansquenete está divertindo-se à nossa custa — disse Poussin, voltando para diante do pretenso quadro. — Não vejo ali senão cores confusamente amontoadas e contidas por uma porção de linhas esquisitas que formam uma muralha de pintura…

— Nós nos enganamos, veja! — respondeu Porbus.

Aproximando-se, perceberam num canto da tela a ponta de um pé nu que saía daquele caos de cores, de tons, de matizes in-decisos, espécie de bruma sem forma; mas um pé delicioso, um pé com vida! Ficaram petrificados de admiração diante daquele fragmento escapo a uma incrível, a uma lenta e progressiva destruição. Aquele pé aparecia ali como um torso de alguma Vênus de mármore de Paros que surgisse de entre os escombros de uma cidade incendiada.

— Há uma mulher por baixo disso! — exclamou Porbus, fazendo Poussin notar as camadas de tinta que o velho pintor superpusera sucessivamente ao julgar que aperfeiçoava sua pintura.

Os dois artistas viraram-se espontaneamente para Frenhofer, começando a compreender, porém de modo vago, o êxtase no qual ele vivia.

— Ele está de boa-fé — disse Porbus.

— Sim, meu amigo — respondeu o ancião, despertando —, na arte é preciso fé, fé, e viver muito tempo com a própria obra para produzir semelhante criação. Algumas dessas sombras custaram-me muito trabalho. Olhe sobre a face, ali, abaixo dos olhos, há uma leve penumbra que, se a observarem na natureza, parecer-lhes-á quase intraduzível. Pois bem, julgam vocês que esse efeito não me custou trabalhos inauditos para reproduzi-lo? Mas também, meu caro Porbus, olha atentamente para o meu trabalho e compreenderás melhor o que eu te dizia sobre o modo de tratar o modelado e os contornos. Olha a luz do seio e vê como, por uma série de retoques e de realces fortemente empastados, consegui agarrar a verdadeira luz e combiná-la com a alvura lustrosa dos tons iluminados; e, como por um trabalho oposto, apagando as saliências e o grão da pasta, pude, à força de amaciar o contorno da minha figura, mergulhada nos semitons, suprimir até a idéia de desenho e de meios artificiais, e dar-lhe o aspecto e o próprio ondulado da natureza. Aproximem-se e verão melhor esse trabalho. De longe, ele desaparece. Vejam! ali, creio, ele é bem visível.

E com a ponta do pincel designava aos dois pintores um bloco de cor clara.

Porbus bateu no ombro do ancião, virando-se para Poussin:

— Sabe que vemos nele um bem grande pintor? — disse.

— Ele é ainda mais poeta do que pintor — respondeu Poussin gravemente.

— Aqui — prosseguiu Porbus, tocando a tela — acaba a nossa arte sobre a terra.

— E, daí, vai perder-se no céu — disse Poussin.

— Quanto gozo nesse pedaço de tela! — exclamou Porbus.

O ancião, absorto, não os ouvia e sorria àquela mulher ima-ginária.

— Mas cedo ou tarde ele se aperceberá de que não há nada na sua tela! — exclamou Poussin.

— Nada na minha tela! — disse Frenhofer, olhando alterna-tivamente os dois pintores e seu pretenso quadro.

— Que fez você! — disse Porbus em voz baixa a Poussin.

O velho segurou com força o braço do rapaz e disse-lhe:

— Nada vês, labrego! tratante! patife! desavergonhado! Para que, pois, subiste aqui? Meu bom Porbus — disse ele virando-se para o pintor —, será que você também se está divertindo à minha custa? Responda! sou seu amigo, diga, teria eu estragado meu quadro?

Porbus, indeciso, não se atreveu a falar; mas a ansiedade pin-tada na fisionomia lívida do ancião era tão cruel que ele apontou para a tela, dizendo:

— Veja!

Frenhofer contemplou seu quadro um instante e cambaleou.

— Nada! nada! E ter trabalhado dez anos!

Sentou-se e chorou.

— Sou pois um imbecil, um louco! não tenho nem talento nem capacidade! Não sou senão um homem rico que, ao caminhar, nada mais faz do que caminhar! Não terei, pois, produzido nada!

Contemplou a tela através de suas lágrimas, ergueu-se subita-mente com orgulho e lançou aos dois pintores um olhar fulgurante:

— Pelo sangue, pelo corpo, pela cabeça de Cristo! vocês são uns invejosos que me querem fazer crer que ela está estragada, para ma roubarem! Eu vejo-a! — gritou — ela é maravilhosamente bela…

Naquele momento Poussin ouviu o pranto de Gillette, esquecida num canto.

— Que tens, meu anjo? — perguntou-lhe o pintor, voltando a ser um apaixonado.

— Mata-me! — disse ela. — Eu seria uma infame se te amasse ainda, porque te desprezo… Admiro-te, e me causas horror! Amo-te, e creio que já te odeio!

Enquanto Poussin ouvia Gillette, Frenhofer cobria sua Catarina com uma sarja verde, com a séria tranqüilidade de um joalheiro que fechasse suas gavetas ao julgar-se na companhia de hábeis ladrões. Dirigiu aos dois pintores um olhar profundamente dissimulado, repleto de desprezo e de desconfiança, pô-los silenciosamente fora de sua oficina, com uma presteza convulsiva; depois, à porta de sua casa disse-lhes:

— Adeus, meus amiguinhos.

Esse adeus gelou os dois pintores. No dia seguinte, Porbus, in-quieto, voltou para ver Frenhofer e soube que ele morrera a noite, depois de ter queimado suas telas.

 
Paris, fevereiro de 1832
De Honoré de Balzac, A Comédia Humana. São Paulo: Globo, 1992.