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O Operário em Construção: o poema católico de Vinicius de Moraes

Lamento divergir dos que pensam que o poema de Vinicius é um poema revolucionário. Não é, é um poema que traz em seus versos uma forte marca cristã e conservadora, que aponta para a adesão a ordem e ao conformismo do espírito.

Por Bruno Rabello Golfeto

- Reprodução

Vinícius de Moraes retorna em 1954 da França de onde havia servido como diplomata na Unesco. Traz na mala poemas de grande importância para o conjunto de sua obra, poemas como Receita de Mulher, Balada das Duas Mocinhas de Botafogo e Operário em Construção. O Operário em Construção é um poema “visceral” como diria certa vez Vinícius, um poema que nascera de sua revolta. O interessante do poema é que ali está uma certa percepção dos trabalhadores e de sua luta que diz muito sobre a formação do movimento operário no Brasil e de seus limites.

 

A epígrafe do poema este pequeno fragmento, um trecho do Evangelho Segundo Lucas, é parafraseado pelo autor de maneira a compor a estrutura do poema e ajudar a orientar sua interpretação. O fragmento:

“E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8”.

Esta cena corresponde à tentação sofrida por Jesus no deserto, na qual após um longo período de privação, o Diabo resolve tentá-lo. A escolha deste momento ao iniciar um poema que retrata o “operário” é uma escolha bastante significativa para o entendimento do poema e encontra justificativa nas bases sociais da metade do século. A epígrafe funciona como um pequeno roteiro para o desenvolvimento do poema, que vai da descoberta do sofrimento até a negação do tentador. Poeta de formação católica, não por acaso Vinícius recorre à Bíblia para pensar o seu operário.

O período de redemocratização do país após o Estado Novo, as promessas de desenvolvimento e a consciência do país subdesenvolvido trazem à tona o debate da eficácia da modernização. Coloca-se em xeque percepção do Brasil como “país novo” deflagrado pelas elites e a crítica às mazelas sociais ganham peso Índices altíssimos de analfabetismo, massas de migrantes em sua maioria de nordestinos vindos para o Sudeste, vão compondo o cenário industrial urbano, mesclando-se a modernização do estado.

De acordo com o IBGE, em 1950, 93,5% da população brasileira declararam-se católicos apostólicos romanos, 3,4%, evangélicos; 1,6% mediúnicos/espiritualistas e 0,8%, de outras religiões. Tendo o sincretismo religioso como característica fundamental da formação cultural do Brasil, pode-se concluir que a grande maioria da população se declararia cristã. Foi na década de 50 que João Cabral de Melo Neto publicou Morte e Vida Severina (1955).

A CNBB, fundada, em 1952, por iniciativa de D. Hélder Câmara, nas décadas de 1950 a 1960, prioriza a questão do desenvolvimento. Ao contrário da posição adotada diante do regime do Estado Novo, de Getúlio Vargas, em que a Igreja assumiu uma posição conciliatória diante do regime de exceção, a CNBB desempenha um papel chave na articulação da sociedade civil, em defesa dos direitos humanos, das liberdades democráticas, da reforma agrária, dos direitos dos trabalhadores e da redemocratização e após ter sido, durante séculos, a guardiã mais fiel dos princípios de autoridade, de ordem e de hierarquia, a Igreja – ou uma parte dela – tornou-se, quase sem transição, uma força social crítica, um pólo de oposição aos regimes autoritários e um poder contestador da ordem estabelecida.

Assim as referências a simbologia são componentes do poema. Na estrofe que se segue, as imagens/símbolos que o poeta utiliza para representar as necessidades e o produto do trabalho são o pão (símbolo cristão de alimentação), a casa e o apartamento (que remetem ao lar), a igreja, o quartel e a prisão (símbolos da repressão do Estado).

Os versos trazem no discurso uma concepção marxista, a qual o operário também desconhece: “Mas ele desconhecia, Esse fato extraordinário, Que o operário faz a coisa, E a coisa faz o operário”. Estes versos conceituam a capacidade transformadora do trabalho em relação ao homem e do homem em relação ao produto de seu trabalho, o termo “coisa” remete ao conceito de alienação e reificação do trabalho, sendo o trabalhador alienado e reificado transformado em “coisa” pelo sistema de produção. Se a leitura parasse por aí, produziria uma serie de interpretações equivocadas. No entanto ao tentar dar aos pequenos versos uma interpretação coerente com o conjunto desta reflexão, precisamos atentar que a as soluções do pensamento católico não se encontram em Marx. Ao contrário, existia no ar um profundo sentimento anticomunista.

A imagem do trabalhador sentado a mesa cortando um pão (de maneira que esta passagem pode ser percebida como o simples ato de alimentar-se, mas também como um símbolo cristão do homem à mesa a cortar o pão assim como Jesus o fez), o operário é tomado por uma “súbita emoção” e começa a perceber a relação de seu trabalho com os produtos do trabalho. Mas percebe esta relação de maneira “iluminada” e “emocional”. Esta é a solução encontrada pelo poeta para a contradição do sistema produtivo. Logo em seguida a voz muda seu interlocutor e dirige-se aos “homens de pensamento”, afirmando a esses que lhes é impossível saber o que o “humilde” operário soube naquele momento. Esta é uma concepção anti-intelectual e até preconceituosa, pois coloca a ideia de homem de pensamento em oposição à “humilde operário”. O operário quando olha sua mão tem a impressão de que não há coisa mais “bela”. A mão é o símbolo do trabalho e também parte do corpo modificado pelo próprio trabalho, o adjetivo “rude” revela o sofrimento do corpo do trabalhador, que no poema é atenuado e celebrado.

O “instante de compreensão” é solitário, dado de maneira individual, é a valorização do indivíduo e a não menção do coletivo. O operário adquire a “dimensão da poesia” do modo em que os versos “Cresceu em alto e profundo/Em largo e no coração”, revelam que essa “poesia” tem suas raízes no discurso emocional e é a partir desta poesia que um operário “dizia” e o outro “escutava”, aprendendo a dizer “não”. A pretensa consciência do trabalhador se dá por estas vias, ignorando as construções coletivas de luta (como os sindicatos) e utilizando um método retórico avesso ao racional.

O que faz o operário dizer “não” e “se fazer forte na sua resolução”, é notar as diferenças de posses entre “ele” e o “patrão”. Este procedimento dá-se por uma oposição entre a pobreza do operário e a riqueza do patrão: Notou que sua marmita/Era o prato do patrão/Que sua cerveja preta/Era o uísque do patrão. Este patrão é comparado mais a frente ao “demônio” tentando “Jesus”. Logo, existe um movimento de se “satanizar” a riqueza e tornar a pobreza uma “virtude”, sendo este um modo simplista de se tratar a luta de classes. Ao dizer não o “operário” sofre violência. Tem o seu rosto cuspido e o seu braço quebrado, agressões muito parecidas às sofridas por Jesus: “pois será entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido” Lucas capítulo 18 versículo 32. Ao redizer “não”, o patrão resolve subornar o operário, assim como Satanás tentara Jesus. Este fragmento do poema é uma paráfrase da epígafre do poema. Aí está o auge da negação, que se faz em profundo silencio, perscrutando os mortos e reacendendo a esperança. Ao dizer “não” o “operário em construção” se faz em operário construído. Assim o processo de transformação do operário se faz embora com compreensão, sem rupturas e com conformidade a ordem do trabalho. A “tarde mansa” e “voz dos irmãos” servem de consolo ao restabelecimento da ordem, cada um no seu lugar.

Por este motivo, o poema de Vinícius traz uma contribuição para os estudos da representação do trabalho no Brasil. Este poema tornou-se bastante famoso longo do tempo, e a força de sua lírica pôde ser verificada quase 30 anos após sua publicação, quando em 1979 no dia 1º de maio, durante a celebração de uma missa para os metalúrgicos do ABC, Vinícius é convidado pelo então presidente do sindicato a ler o Operário em Construção para os trabalhadores em foto captada pelas lentes de Leon Hirszman, no documentário Greve Geral. O poema foi lido a pedido dos próprios trabalhadores, que o elegeram como o poema que mais representava os trabalhadores.

A eleição do poema pelos trabalhadores foi acertada, mas não pelo caráter revolucionário de seus versos. Foi acertada exatamente porque o poema traz em sua concepção a formação católica daquele movimento que o elegia, mostrando ao leitor mais atento quais as amarras que ainda precisavam ser superadas, mesmo que essa não seja a proposta do poema.