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Quarup: Padre Nando chega ao Xingu

O cinquentenário da homologação do Parque Indígena do Xingu, em 14 de abril de 1961, é uma boa oportunidade para uma releitura (ou para a leitura…) de um dos maiores romances brasileiros: Quarup, de Antônio Callado, publicado em 1967 e cuja trama se desenvolve principalmente entre os povos que habitam o parque. O nome do romance lembra uma festa indígena em louvor aos mortos.

Por José Carlos Ruy

Idealizado pelos irmãos Villas Boas, o Parque Indígena do Xingu foi a primeira terra indígena homologada pelo governo federal. Com área superior a 27 mil quilômetros quadrados, é uma reserva da mata virgem no coração do Brasil, habitada por quase seis mil índios de 16 etnias que lá conseguem manter sua cultura e seus costumes, incorporando a eles os benefícios técnicos existentes na cultura brasileira que envolve o parque.

Passados cinquenta anos de sua efetivação, o parque hoje enfrenta os desafios do avanço da agricultura até suas fronteiras. O desmatamento e a agricultura comercial provocam impactos dentro das fronteiras do parque, gerando temores em relação à sua integridade. "Estamos espremidos e apavorados", diz Korotowi Ikpeng, da etnia icpengue, que relata mudanças já são perceptíveis na aldeia em que vive, no Médio Xingu. "Antes, a gente via os peixes no fundo do rio. Hoje, os [rios] formadores do Xingu estão arenosos. O desmatamento também afetou a caça, cada dia mais difícil", diz.

Esta realidade fundamenta um projeto para levar à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) uma proposta de reconhecer o Parque Indígena do Xingu, como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade.

Quarup

Em seu romance, que tem no parque um dos seus principais cenários, Antônio Callado (1917-1997) fez um mosaico da conturbada política brasileira desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1964.

Homem de letras ligado à luta do povo, Callado foi inicialmente jornalista. Estreou na literatura em 1951 escrevendo principalmente peças de teatro; foi somente a partir da década de 1960 que dedicou-se ao romance. No total, deixou mais de vinte livros envolvendo teatro, biografias, livros de reportagens, e romances.

Durante a ditadura de 1964 foi preso por duas vezes, punido por seus compromissos democráticos, patrióticos e populares. Quarup que, de certa forma sintetiza estes compromissos, traz para o centro da ação os protagonistas das Ligas Camponesas, no Nordeste, a luta estudantil daqueles anos, a inquietação da ala da Igreja comprometida com a luta do povo – e também descreve com a agudez de um fio de navalha a corrupção, o desleixo, o descaso com o povo e com o país de muitos dos poderosos do período que antecedeu ao golpe militar de 1964.

Padre Nando, o protagonista, começa sua ação em Pernambuco, ligado à luta camponesa, desemboca no Xingu dos seus sonhos românticos, para onde leva suas dúvidas existenciais sobre o sacerdócio e o projeto de ajudar a construir um Brasil novo e justo. De volta ao Nordeste, abandonou a batina e aprofundou seu compromisso com a luta do povo; preso no golpe militar de 1964, é torturado, mas sai da prisão com a convicção fortalecida na força do povo.

Trecho*

No controle do Lodestar o piloto Olavo, do Correio Aéreo Nacional, apontou a Nando lá embaixo o grupo de malocas. Nando sentiu o coração bater apressado.

– É o Posto Capitão Vasconcelos?

Olavo assentiu com a cabeça. Um minuto antes, como se lhe mostrasse um mapa, Olavo sobrevoara a região, que vai dos cerrados e varjões do centro do Brasil à floresta amazônica, impenetrável à vista de quem voa como uma couve-flor monumental. Nando tinha identificado, do seu assento ao lado do piloto, a larga fita d’água do Xingu saindo do Morená, ponto em que se encontram seus três formadores Culuene, Ronuro, Batovi. O piloto ia dizendo os nomes mas não precisava. Nando até adivinhava, invisível das primeiras alturas na sua pequenez, o Tuatuari, afluente do Culuene, à beira do qual ficava o posto do SPI [Serviço de Proteção ao Índio – nota da redação].mas agora, sim, agora as malocas e uma construção maior, o Posto sem dúvida, no terreno limpo. Do lado do riozinho criança, Tuatuarizinho de tantos sonhos. Nando só não conseguia ainda divisar índios. Sabia, de tantas leituras, que eles sempre acorriam, cercavam todo avião que chegava. Por enquanto nada, embora crescesse de encontro ao avião o campinho de pouso retangular, civilizado como uma quadra de tênis no meio bronco. O Lodestar pousou.

– Chegamos – disse Olavo.

A porta do avião foi aberta, o piloto saltou. Nando saiu atrás dele.

– Engraçado – disse Nando – pensei que os índios mansos dos Postos corressem ao encontro dos aviões chegados.

– Homem, olha que correm mesmo – disse Olavo. – Nunca tive uma recepção dessas na minha vida. Vêm os índios e vem gente do Posto também. Que diabo! não é todo dia que chega avião neste cu do mundo não. Faz o seguinte, Padre Nando, vai andando até a casa do Posto e vê quem está lá. Os doidos dos índios são capazes de estar pescando em massa para o quarup ou coisa parecida. Mas há de ter alguém no Posto. Eu vou desembalando a carga.

– Está certo – disse Nando – vou. Mas as mulheres também saem para pescar?

– Não. Nem as crianças. Isto é que está me intrigando, este silêncio. O Posto tem estado sem rádio. Mas não há de ser nada.

– Não há possibilidade de alguma violência aqui, há? Os índios estão em contato com os brancos há bem uns dez anos e…

– Estão, estão – disse Olavo. – Mas nunca se sabe. Mato é mato. Por isso é que é importante ter sempre o rádio funcionando bem. Eu trouxe peças para consertar a instalação.
Olavo ia tirando do fundo do avião caixas e pacotes que passava a Nando.

– Há quanto tempo está o Posto sem rádio? – disse Nando.

– Ah, coisa de uns dez ou doze dias que saiu do ar. Bobagem. Não há de ter morrido todo o mundo em tão pouco tempo – riu Olavo – Deixe o trabalho aqui comigo. Vá andando na frente.

O caminho se comunicava com a aldeia por um belo estradão de uns oitocentos metros de comprimento, ladeado de grandes árvores de frondes manchadas de ipê roxo. Nando, mala na mão, meteu o pé no caminho, ansioso por ver os primeiros curumins correndo ao seu encontro, atirando-se aos seus braços. Queria apertá-los contra o peito para sentir o cheirinho que sabia que tinham, de terra, de água do rio, de jenipapo e de urucum. Enquanto aguardava ia engolindo pelos olhos e pelo nariz as várzeas, as manchas de mato. E aquilo? Jatobá de índio fazer canoa? E adiante? Os buritis de índio fazer tudo? Monstro de pau linheiro. A hileia crescendo medonha para o equador. Agora, quebrando à esquerda rumo à casa do Posto, as malocas, abauladas, acocoradas no chão com sua porta móvel de varas e de palha. A um canto, na sua gaiola de varas, a grande harpia melancólica que dá plumas à tribo.

Mas ninguém. Ninguém no terreiro. Ninguém à beira do rio. Ninguém diante de qualquer maloca que fosse. Ninguém em parte alguma. Nando foi andando para a construção do Posto com o coração batendo fundo, a longos intervalos. Que castigo seria aquele, Senhor? Que poderia ter acontecido? Que esconderia a porta do telheiro, por trás da sua varanda onde havia redes? Redes mas vazias. Todas vazias.

Estava Nando a uns vinte metros quando de dentro da casa saiu um casal de índios. Um belo casal de índios. Seu primeiro casal de índios. Nus. Ela apenas com seu uluri, ele apenas com um fio de miçangas na cintura. Deram dois passos para fora da casa. Voltaram-se um para o outro. Nando, que estacara, viu então que a mulher tinha na mão direita uma maçã que oferecia ao companheiro. O índio fez que não com a cabeça. Ela mordeu a maçã. E então, virando-se para Nando, foi lentamente andando em sua direção, a maçã na mão estendida em oferta. Nando, confuso, pôs a mala no chão, estirou a mão.

Uma risada estourou atrás de Nando, outra a seu lado, e das malocas saíram em chusma índios rindo e gritando, homens e mulheres e crianças. Agora, sim, Nando se viu no meio de uns cinquenta índios.

A mão de Olavo, que rira por trás dele, caiu-lhe afetuosa no ombro.

– Desculpe o mau jeito. Mas o Fontoura me fez prometer que eu ajudava a lhe pregar uma peça. A peça aliás foi encomendada por Lídia, do Otávio.
Nando riu e deu um assobio de alívio.

– Peça? Me pregou um susto danado, isto sim. Primeiro pensei que tivesse morrido todo o mundo. Depois… Nem sei!

– A bola foi bacana, confessa.

Nando estava por tudo. Na sua frente sorria um caboclo simpático, que saíra de uma maloca à direita do terreiro e que sem dúvida dera o sinal aos índios para o alarido que assinalara o instante da aceitação por Nando da maçã.

– Este é o Cícero – disse Olavo. – Braço direito do Fontoura.

Nando apertou a mão de Cícero.

– A brincadeira foi ótima – disse Nando acariciando a cabeça de uma cunhantã que tinha pegado na sua mão e sorrindo para o carão dos índios mais próximos.

– Uuuuuuuu! – berrou Olavo girando nos calcanhares para atingir todos os ouvidos. – Dispersa, indiada vagabunda!

Os índios riram juntos, fugiram como se estivessem apavorados.

– Isto – disse Olavo. – Quando fala o maioral sai toda a arraia miúda das cercanias. Deixa eu primeiro apresentar Adão e Eva a Padre Nando. Chega bem perto, Canato, seu sem-vergonha. E você, Prepuri, sua desclassificada. O padre está brabo com vocês.

– Canato é casado com duas mulheres, Nando, duas irmãs. Esta é Prepuri. Canato é um dos poucos que falam algum português.

– Canato não gosta de padre – disse Canato.

– Fala português, sem dúvida – disse Nando. Português claro.

– Quem é que mandou você dizer isso, Canato? – disse Olavo.

– Foi Fontoura sim.

Canato tomou a maçã da mão de Prepuri e meteu-lhe o dente. Só agora Nando pode olhar seus índios, aqueles homens, mulheres e crianças castanhos e nús, paixão e angústia de tantos anos de sua vida no Mosteiro. Alguns já estavam entrando de novo nas malocas, a maioria puxava Olavo pelos braços para que voltasse com eles no avião.

– Tem machado, Olavo? – perguntou um rapagão de penas de arara na orelha, joelheira e braçadeira de penas.

– Machado para quê, seu Anta sacripanta? – disse Olavo. – Tu não trabalha mesmo. Já botou tua noiva Matsune para trabalhar?

– Matsune faz beiju – disse Anda sem muito bem compreender.

– É, seu sacana, a noiva faz beiju para te sustentar, enquanto tu toca flauta.

– Anta trabalha muito – riu o Anta com dentes amarelos. Anta vai trabalhar com machado de Olavo.

– Não vai porque Olavo não vai te dar coisa nenhuma, gigolô das selvas. Esse Anta – disse Olavo a Nando – é o único que fala português melhor que o Canato. Vive assim como você está vendo. Pena nas orelhas, miçangas na cintura, braçadeira e joelheira, como se todo dia fosse dia de festa. Toca umas gaitinhas de cana. Este se quisesse falava português feito Camões.

– Não fala porque não está aprendendo a língua sistematicamente – disse Nando.
Olavo riu.

– Vai dizer ao Fontoura que os índios precisam aprender português sistematicamente, que a próxima peça que ele te pregar vai ser te amarrar num pé de tachi, que vive cheio de formigas, e te besuntar com mel.

Algumas mulheres já estavam acocoradas à porta das malocas, cercadas de crianças. Quase todas envelhecidas precocemente, os peitos caídos, mamados às vezes por crianças grandes, a sugarem de pé o peito. Daquelas pobres mulheres tivera medo fundo. Já lhe haviam dito e ele lera em tantos relatos, como é raro uma índia verdadeiramente bela depois da adolescência. Principalmente agora, apaziguado na carne e no espírito, podia olhá-las todas como homem de Deus e do espírito.

Olavo foi andando para a casa. Canato e Prepuri vieram também.

– Onde é que está o Fontoura? – disse Olavo.

– Fontoura dormindo – disse Canato.

No seu interior, como na varanda, a vasta cabana do Posto estava cheia de redes atadas aos barrotes que sustentavam as traves do alto teto coberto de palha de inajá e buriti, como as malocas. No fundo, à direita, dividido da peça grande por um reposteiro de sacos emendados de fubá de milho, um pequeno aposento com uma cama, caixotes, baús e, em cima da mesa, o posto transmissor e receptor de rádio. No fundo, a peça grande se comunicava a uma extensão alongada, que era a copa, com a mesa de refeições, e mais adiante a cozinha. Pelo reposteiro aberto via-se Fontoura dormindo numa cama de vento, uma garrafa de cachaça a seu lado no chão.

– Como de costume, cozinhando uma camueca – disse Olavo abanando a cabeça. Fontoura! Acorda que tem visita do clero.

Fontoura abriu os olhos vermelhos mas não se mexeu.

– Trouxe a cachaça? – disse.

– Você ainda tem cachaça aí, cretino – disse Olavo.

– Trouxe a cachaça? – disse Fontoura.

– Eu já vim alguma vez aqui sem trazer tua pinga, desgraçado? Agora fala aqui com o Padre.

– Ah, sim, o Padre – disse Fontoura.

– Já provei a maçã que me mandou – disse Nando.

– Ahn – disse Fontoura.

– Maçã que Fontoura recebeu de Lídia e trouxe do Rio com o maior carinho – disse Olavo.

– Pega a rede que você quiser, Padre – disse Fontoura se levantando. – Se preferir cama tem esta aqui.

– Qual é a sua rede? – disse Nando.

– Qualquer uma. É tudo igual. Se quiser a cama pode tomar conta dela. Na copa tem uma bica. La fora Otávio arrumou um chuveiro e uma fossa higiênica para se fazer cocô.

Nando estava ansioso apor mudar de roupa. Tinha pedido licença a D. Anselmo para andar no mato como todo mundo. Sem a batina. Na maleta tinha calças e camisas cáqui. E botas. Trouxera até um chapéu de explorador.

– Vamos até ao avião, Fontoura, pegar os troços – disse Olavo. – O Dr. Ramiro desta vez mandou mantimentos à beça.

– É porque ele vem cá – disse Fontuoura.

– Ele vem – disse Olavo – e se você quiser ficar bem com o patrãozinho, cuidado com o campo de aterrisagem. Tem um pedaço lá que está de morte. Um avião maior é capaz de quebrar uma roda naquela vala que há que tempo estou apontando a você. Vala – disse Olavo.

– Eu não conto com nada nesta bosta de país – disse quando não se tapa cresce, sabe? O campo precisa estar uma mesa de bilhar para o quarup.

– Não precisa fazer sermão, velhinho – disse Fontoura. – Vilar vai me mandar uma equipe para consertar ne aumentar o campo. Ficaremos prontos para a eventualidade de vir o Presidente.

– Vá contando só com o Ministro que é melhor – disse Olavo.

– Eu não conto com nada nesta bosta de país – disse Fontoura.
Foram saindo juntos seguidos de Canato e a mulher. Nando puxou o reposteiro, abriu a mala, apanhou uma calça e uma camisa que pôs em cima da cama. Depois tirou a batina e as calças pretas que usava por baixo mas quando ia pegar a camisa para vestir um braço mais ligeiro do que o seu baixou veloz para ela e a arrebatou. Nando, de cueca, voltou-se num sobressalto.

– Camisa – disse Canato sorrindo e segurando a camisa contra o peito.

Nando ficou um instante imóvel.

– Me dá minha camisa – disse Nando.

– Camisa – disse Canato recuando para o reposteiro, silencioso como quando voltara e se esgueirara feito uma sombra para dentro do quarto.

– Eu vou usar a camisa, Canato. Me dá a camisa – disse Nando.

– Camisa – disse Canato sorrindo e desaparecendo rápido pelo reposteiro.

Nando abriu o reposteiro na maior indignação mas do lado de fora estava Prepuri. E ele assim, de cueca. Voltou ao quarto, enquanto o casal de índios desaparecia, Canato já vestindo a camisa nova. Nando tirou outra camisa, tratou de vesti-la ligeiro, de botar as calças e de fechar a mala a chave. Procurou um espelho para se ver na nova indumentária. Nada, não tinha nenhum. Abriu de novo a mala, tirou seu estojo de toalete, com um pequeno espelho. Olhou primeiro sua cara dentro da gola da camisa cáqui. Afastou depois o espelho e olhou o peito, a cintura com a correia nova que comprara, grossa e clara, as calças, as botas. Voltou depois o espelho lentamente até a gola, a cara por cima da gola, e alio o manteve por alguns segundos.

Nando saiu com Olavo para visitar as malocas, para ver pela primeira vez, com os olhos que Deus lhe dera, as redes, as bordunas avermelhadas de urucum, os panelões uaurá, os colares de caramujo e de dentes de onça. Quando saíam de uma das malocas para o sol, Olavo gritou, avistando alguém:

– Auaco, flor do Tuatuari!

A porta de uma m aloca mais distante tinha aparecido uma índia dos seus dezessete anos, alta, peitos redondos e pequenos, a cara larga e sorridente alongada pela cortina dos cabelos pretos. Nuinha, nuinha, o triângulo claro do uluri pousado como uma mariposa acima da dobra do sexo. Nando sentiu na carne presente um arrepio do terror passado, e saudou com efusão a lembrança de Vanda morena e Winifreda ruiva. Pecando a gente mitiga mas não derrota o pecado. Ou seria preciso pecar muito, tenazmente?

– Cabocla dos meus tormentos – disse Olavo pegando no queixo de Auaco. – Vou mandar revogar os regulamentos do SPI para casar com você.

– Camisa? – disse Auaco. – Vestido?

– Claro que tenho vestido para você – disse Olavo. – Quem é que te nega alguma coisa? Pede a batina do Pajé Nando, que ele já atirou às urtigas, e vê se ele não te dá. Você deve ficar linda de preto. Um cambucá de luto.

– Vestido? – disse Auaco, olhos brilhantes.

– Com Fontoura. No Posto – disse Olavo. – Pede a ele. Diz vestido de cassa vermelha que Olavo trouxe.

Auaco saiu andando ligeira para o Posto e agora num espírito puramente de ação de graças Nando glorificou o Criador vendo as nádegas morenas, a cintura forte mas graciosa, as costas sedosas de Auaco.

As chuvas ainda não tinham começado naqueles últimos dias de julho. A noite era seca e fria. A pedido de Olavo, dois garotos índios que ajudavam nos trabalhos da cabana do Posto, Cajabi e Pionim, tinham feito uma fogueira no centro da grande peça de terra batida. Fontoura fumava um cigarro de palha, Olavo o seu cachimbo. Nando nunca tinha visto Fontoura tão calmo, o que lhe parecia de bom agouro para a conversa que precisava ter.

– Fontoura – disse Nando – antes de escrever daqui para o meu Superior, queria trocar umas ideias com você. Ninguém conhece melhor do que você os problemas dos índios.

– Hum – disse Fontoura pitando o cigarrinho – tem muito etnólogo sabido, muita gente boa do Museu Nacional que conhece os índios como a palma da mão.

– Eu sei – disse Nando – mas você conhece os índios com o coração.
Olavo deu uma estrepitosa palmada na coxa e levantou o cachimbo no alto com a mão esquerda.

– O Padre é fogo, Fontoura!
Nando sorriu.

– Estou apenas repetindo o que todos me dizem. Quem vive entre os índios e se sacrifica por eles é o Fontoura. Isto é muito mais importante do que conhecer a gramática das línguas indígenas ou teorias sobre a origem deles. Os índios estão aí, vivos.

– Os índios estão quase mortos – disse Fontoura. – O importnte é que não morram todos. A única coisa que importa é dar a eles os meios para sobreviver;

– Exatamente – disse Nando. – Eu tenho a impressão de que o que desagrada você é a ideia de integrar os índios nas populações do interior, não é? Eles se despersonalizariam, desapareceriam como índios.

Fontoura assentiu com a cabeça.

– Portanto – continuou Nando se entusiasmando – o que se pode fazer é educá-los de modo a que contribuam para o seu sustento com a pesca, a caça, a lavoura, as artes plumárias continuando a se desenvolver como índios. Poderíamos montar aqui peixarias, serrarias…

Fontoura fez que não com a cabeça.

– Não? – disse Nando.

– Não, nunca.

Fontoura se levantou da rede, foi até ao escritório e de lá voltou com um sovado mapa de Mato Grosso onde se delimitara, a lápis de cor vermelho, o Parque Nacional do Xingu, entre 10 e 12 graus de latitude Sul e 53 e 54 graus de longitude Oeste de Greenwich. A forma inclinada acompanhava o curso do Xingu, das cabeceiras dos seus três formadores ate a Cachoeira das Pedras.

– Este- disse o Fontoura batendo com o dedo em cima da área do Parque – é o Estado dos Índios.

Montoya, Cataldino, Rodrigues, pensou Nando, o coração a lhe bater apressado. Ave, República dos Guaranis.

* Este trecho é a parte inicial do Capítulo 3, “A maçã”, de Quarup, que descreve a chegada do Padre Nando ao Parque Indígena do Xingu.