Capistrano: O centenário de um bravo comunista

Vulpiano Cavalcanti de Araujo ou simplesmente, Doutor Vulpiano, um bravo comunista, nasceu na capital cearense no dia 15 de março de 1911, portando, no dia 15 de março de 2011 completa 100 anos do seu nascimento.

Vulpiano
Quem conheceu doutor Vulpiano sabe da extraordinária figura humana que ele era. Pontificou na atividade médica e na militância político. Foi um bravo comunista e um grande médico. Como a maioria dos comunistas era humanista por principio.

Doutor Vulpiano estudou medicina no Rio de Janeiro, onde se formou. No final dos anos 30, já formado e ligado ao PC, veio residir no Rio Grande do Norte, passando a clinicar nos sindicados operários em Mossoró, Macau e Areia Branca, onde marcou a sua presença como competente profissional da medicina, depois se fixou em Natal.

Tive o privilegio de conhecê-lo, de ir, diversas vezes, ao seu consultório na Avenida Rio Branco, no mesmo prédio onde funcionava a Casa Rio, pertinho da Livraria Universitária. Participei com ele de diversas reuniões do Partido. Lembro de uma dessas reuniões, em plena ditadura militar, 1971, saí de Natal em um Volks, fui encapuzado para não saber o caminho nem o local do encontro, questão de segurança, atitude comum na época. Muitos anos depois tomei conhecimento do local da reunião, foi em Ceará Mirim, em um sitio de Oswaldo Guedes, outra grande figura do PC.

Doutor Vulpiano era um homem alegre, espirituoso, brincalhão. Apesar de toda a perseguição sofrida e das medievais sessões de tortura a que foi submetido nas muitas prisões que sofreu, era um homem sem ressentimentos. Ele era maçom.

O professor Moacyr de Góes, amigo e companheiro de prisão de Vulpiano, no livro “Sem Paisagem: Memórias da Prisão” – Sebo Vermelho, 2004, pág. 76 – faz um belo relato sobre a figura de Vulpiano Cavalcanti. Peço permissão à professora Maria Conceição Pinto de Góes, viúva e companheira de luta de Moacyr de Góes, para transcrever-lo nesse singelo registro do centenário de nascimento desse bravo comunista e grande médico. Vamos ao relato de Moacyr de Góes:

Vulpiano

Na primeira semana de prisão aprendi que o Coletivo tinha um decano, um guia, uma mão que orientava. Não precisava haver eleição. A liderança emergia como flui um rio, natural como a mudança do vento, quando chegam as barras do dia.

Seu ânimo, de uma alegria de criança, colocava o astral lá em cima. Do seu conhecimento de História e do marxismo brotava uma tranqüilidade e transpirava segurança para ensinar sobre o papel que desempenhávamos naquela prisão.

Construíra a vida sem dissociar a prática da teoria. Pelo contrario: uma, retroalimentava a outra. Por isso, sua segurança. A experiência de uma dezenas de Cáceres anteriores (o crime, um só: ser comunista) fazia com que o seu gesto fosse sempre tranquilo. A palavra mansa não frouxa. Pelo contrário: dura como aço, sem fazer concessões, na hora precisa. Tudo, porém, num quadro de bondade humana. A solidariedade, como nunca vi superada.

Com ele aprendi a ver o papel do comunista na sociedade. Sem proselitismo, sem doutrinações, ele narrava a vida do Partido e também a sua vida: as duas coisas se confundiam, na maioria das vezes.

A alegria de viver não escondia na vulnerabilidade de sua vida na clandestinidade ou semiclandestinidade, como naqueles anos 60.

As torturas a que fora submetido não lhe marcaram a alma com ressentimentos. Ele era a antítese de Tibério. Seria um grande contraponto para a obra de Gregório Maranõn. As seqüelas eram físicas. Nos anos 50, levara meses fazendo tricô para voltar a articular os dedos e poder operar, novamente, nas cirurgias. Durante as sessões de tortura, na Base Aérea de Natal, a ordem era explícita: bate nos dedos, que esse comunista filho da puta não vai operar nunca mais.

Graças ao tricô e à força de vontade voltou à sala de cirurgia. Contava. Os olhos límpidos de um São Francisco. Encanecido pelo sofrimento. Nunca perdeu a alegria.

Conheci, também, a experiência do velho “Partidão”. Enquanto a AP não conseguia mandar um recado para fora do cárcere, porque não tinha quem recebesse a mensagem, entre os comunistas, caía a primeira linha e a segunda ocupava o lugar, depois, a terceira, etc. Para deixar o país, as rotas mais seguras eram as do PCB e da Igreja, a primeira com mais experiência, a segunda através de sua rede de instituições.

Voltando ao homem. Revejo-o em seus horários perfeitamente organizados: o tempo da leitura, o tempo da caminhada na cela, o tempo do lazer possível. Na época estudava a Lei da Relatividade de Einstein. Com seus gestos, quase invisíveis, o Coletivo se organizava.

Acompanhava-o na caminhada na cela. Conversávamos. Para passar mais tempo junto a ele, resolvi estudar taquigrafia, metodologia na qual ele era mestre. Ele marcou a hora, como se não tivéssemos horas de sobra: – A aula começa às 16 horas. Ah! Vulpiano Cavalcanti, quantas lições de vida me deste.

Antonio Capistrano foi reitor da UERN é filiado ao PCdoB