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A militância poética de Geir Campos

Exemplo raro de poeta que uniu o rigor estético e literário com a luta social e política, o capixaba Geir Campos – que foi um dos editores do Violão de Rua do CPC da UNE em 1962 – é um desses autores que precisam ser redescobertos e difundidos.

Por José Carlos Ruy

O poeta comunista Geir Campos é um desses raros que conseguem unir o esmero artístico e literário com a expressão de um agudo conteúdo artístico de fundo político e social. Ele viveu entre 1924 e 1999, foi poeta, editor, livreiro, tradutor, professor e militante comunista. Faz parte daquela geração de escritores, poetas principalmente, da chamada geração de 1945, cuja obra floresceu no período da limitada democracia da Constituição de 1946 e que, no futuro, ficou injustamente à sombra de outra corrente que também se firmou naquele período mas que, dada sua ênfase nos aspectos formais do fazer artístico, foi colocada pela propaganda no primeiro plano, o chamado concretismo.

Do ponto de vista formal, tanto a obra de Geir Campos como a de outros que, como ele, colocaram sua arte a serviço da luta democrática e social, não ficam nada a dever aos concretistas. O que os diferencia é uma militância política mais nítida e daí, certamente, o pouco apreço com que, nas últimas décadas, são tratados pela mídia.

Em 2010 comemorou-se os 60 anos de sua estreia em livro: sua primeira coletânea de poemas, Rosa dos Rumos, foli lançada em 1950; este ano, comemora-se também os 60 anos da criação por Geir Campos, juntamente com o poeta Thiago de Melo, da editora Hipocampo, um empreendimento artesanal e revolucionário para a produção, pelos próprios autores, dos livros que escreviam. Em dois anos lançou vinte livros cujos projetos gráficos e editoriais, além evidentemente de seu conteúdo, os transformou hoje em raridades bibliográficas cobiçadíssimas pelos colecionadores. Os livros eram feitos na casa dos criadores da editora, numa impressora manual; suas capas eram dobradas na forma de envelopes onde eram colocadas as folhas avulsas, em edições que tinham em média uma tiragem de 120 exemplares, que eram vendidos antecipadamente, na forma de assinaturas.

Em 1962, Geir Campos foi um dos organizadores, juntamente com outro poeta, Moacyr Félix, dos Cadernos do Povo Brasileiro, Violão de Rua, publicados pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da Une juntamente com a editora Civilização Brasileira. Geir Campos, como diz o professor Aníbal Bragança (Universidade Federal Fluminense), “não foi apenas um artesão da palavra e um operário do canto. Esteve em todas as frentes de ação pelo fortalecimento do livro, como editor, como bibliotecário, como tradutor, como líder da categoria, como professor e como autor. Autor, diga-se, de uma obra sólida e múltipla, rica e diversificada, que marcou a literatura brasileira da segunda metade deste século".

Alguns títulos

Antologia poética. Rio de Janeiro, Léo Christiano Editorial, 2003 (contém praticamente toda a obra poética de Geir Campos)

A Profissão do Poeta & Carta aos Livreiros do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Oficial, 2002 (organizado por Aníbal Bragança e Maria Lizete dos Santos)

Tarefa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; São Paulo, Massao Ohno Editora. 1981 (antologia)

Poemas de Geir Campos

Poética

Eu quisera ser claro de tal forma
que ao dizer:
              – rosa!
todos soubessem o que haviam de pensar…

Mais: quisera ser claro de tal forma
que ao dizer: 
              – já!
todos soubessem o que haveriam de fazer.
(1957)


Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis…
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)


Alba

Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)

Soneto fabril
Parque, sim, mas parques industriais:
Neles é que passeia o nosso amor
Em bairros pouco residenciais
Onde ronrona a máquina a vapor.

Das chaminés das fábricas saem mais
Nuvens (claras, escuras) de vapor
E de fumaça, com a cor das quais
O azul do céu muda-se noutra cor.

Pairando entre esse céu assim mudado
E a terra onde prossegue a mesma vida
Com seu esquema aceito mas errado

Retém-se o nosso olhar em bagatelas
– que de pequenas coisas é tecida
A glória de viver e acha-las belas.
(1957)


4ª cantiga de acordar mulher

Bom é sorrires, olhar
em mim: não vês
o inimigo, o rival
jamais.
Na caça, não serás
a presa; não serás,
no jogo, a prenda.
Partilharemos, sem meias
medidas,
a espera, o arroubo, o gesto,
o salto, o pouso e o sono
e o gosto desse rir
dentro e fora do tempo
sempre que nova 
                             mente
acordares
(1964)

7ª Cantiga de acordar mulher
Se te chamarem flor
toma cuidado:
vê se não é gente que te quer por
numa redoma – lindo objeto – a vegetar
alheia a tempo e lugar!

Se te chamarem flor,
acorda e toma cuidado:
olha que te levam para o mesmo lado
de tanto destino mal-aventurado!
(1964)


8ª Cantiga de acordar mulher

 Vozes da esquerda, surdas,
e vozes da direita, afinadíssimas,
hão de louvar-te a arte
de ser mulher:
mansa como uma ovelha,
jeitosa como uma gata de luxo,
dócil e generosa como uma árvore
a se multiplicar em sombra e frutos,
como uma estátua impassível,
hábil de acordo com as conveniências,
e acima disso
crente em ser esse o teu ideal de vida…
Acorda: pois foi essa
a sorte que escolheste?
(1964)


9ª cantiga de acordar mulher

Um dia te acharás
sem inteirar a casa:
ouvirás o marido ressonando,
os filhos dormindo em calma…
O espelho te acenará,
te lembrará coisas da mocidade,
coisas da meninice,
te mostrará vindas algumas rugas;
contemplarás o espelho,
o quarto, a casa;
perguntarás por ti mesma,
pelo teu próprio destino
— e o espelho fará silêncio:
será o sinal de estares acordando.
(1964)


Da profissão do poeta

Da
identificação
profissional
             Operário do canto, me apresento
             sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
             minha alma limpa, a face descoberta,
             aberto o peito, e — expresso documento —
             a palavra conforme o pensamento.

Do
contrato de
trabalho
             Fui chamado a cantar e para tanto
             há um mar de som no búzio do meu canto.
             Embora a dor ilhada ou coletiva
             me doa, antes celebro as coisas belas
             que movem o sol e as demais estrelas
              — antigos temas que parecem novos
             de tão gratos ao meu e aos outros povos.

Da
relação com vários
ofícios
              Meu verso tine como prata boa
              pesando na confiança dos bancários;
              os empregados no comércio bem
              sabem como atender aos que encomendo
              e recomendo mais do que ninguém;
              aos que funcionam em telefonia
              com ou sem fio, rádio, a esses também
              sei dizer à distância ou de mais perto
              a cifra e o texto no minuto certo;
              para os músicos profissionais,
              sem castigar o timbre das palavras
              modulo frases quase musicais;
              para os operadores de cinema
              meu verso é filme bom que a luz não queima;
              trilho também as estradas de ferro
              e chego ao coração dos ferroviários
              como um trem sempre exato nos horários;
              às equipagens das embarcações
              de mares ou de lagos ou de rios
              meu verso fala doce e grave como
              doce e grave é a taboca dos navios;
              nos frigoríficos derrete o gelo
              da apatia, se é para derretê-lo,
              meu canto a circular nas serpentinas;
              à boca da escotilha ou nas esquinas
              do cais, o meu recado é força viva
              guindando a atenção dos homens da estiva;
              desço cantando aos subsolos e às minas
              onde outros operários desenterram
              o minério de suas artérias finas;
              a outros, que dão sua têmpera aos metais,
              meu canto ajuda feito um sopro a mais
              aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
              aos colegas que lidam nos jornais
              boas noticias dou e, mais do que isso,
              jeito de as repetir e divulgar
              quando o patrão quisera ser omisso;
              à gente miúda, pronta a ser maior,
              passo lições de um magistério puro
              e o que é dever escrevo a giz no muro;
              para os químicos sei fórmulas novas
              que os mártires elaboram nas covas…
              e a todos que trabalham vai assim
              meu canto sugerindo meio e fim.

Do
horário do
trabalho
              Marcadas as minhas horas de ofício,
              de dia em sombras pelo chão e à noite
              no rútilo diagrama das estrelas,
              só quem ama o trabalho sabe vê-las.

Dos
Períodos de
descanso
              Seja domingo ou dia de semana,
              mais do que as horas neutras do repouso
              confortam-me os encargos rotineiros;
              meu descanso é confiar nos companheiros.

Do
direito a
férias
              Nunca me participam por escrito
              ou verbalmente os ócios que mereço,
              mas sempre gozo bem o merecido:
              pois o ócio não é ofício pelo avesso?
              É quando fio o verso; depois teço.

Da
remuneração das
férias
              Em férias tenho a paga de saber
              lembrado o verso meu por quem o inspira;
              é como se outra mão tangesse a lira

Do
salário
mínimo
              Laborando entro os pontos cardinais,
              de norte a sul, de leste a oeste, vou
              cobrando aqui e ali quanto me basta:
              o privilégio de seguir cantando.
              (Imposto é cuidar onde e como e quando.)

Do
expediente
noturno

              Trabalho à noite e sem revezamentos.
              Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
              sem se tornar com isso menos pura
              a voz sobe uma oitava na mistura.

Da
segurança do
trabalho
              Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
              canto. Perigo à vista, canto sempre;
              e é clara luz e um ar nunca viciado
              e sol no inverno e fresca no verão,
              meu canto, e sabe a flores se é de flores
              e a frutos se é de frutos a estação.
              Só não me esforço à luz artificial
              com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
              servindo-lhes por luz o que é penumbra;
              também quando o ar parece rarefeito
              a lira engasga, o verso perde o jeito.

Da
higiene do
trabalho
              Não canto onde não seja o sonho livre,
              onde não haja ouvidos limpos e almas
              afeitas a escutar sem preconceito.
              Para enganar o tempo ou distrair
              criaturas já de si tão mal atentas,
              não canto… 
              Canto apenas quando dança,
              nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

Da
alteração de
contrato
etc.
              Meu ofício é cantando revelar
              a palavra que serve aos companheiros;
              mas se preciso for calar o canto
              e em fainas diferentes me aplicar
              unindo a outros meu braço prevenido,
              mais serviço que houver será servido.
(1959)