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Primeiro de Janeiro é dia de Festa no Mar

No Brasil o Ano Novo é recebido não só com as confraternizações familiares, reveillons, shows da virada e queimas de fogos. Há também as imorredouras manifestações folclóricas, de caráter religioso, sempre sincrético, e profano, como são as oferendas a Iemenjá e as procissões ao Nosso Senhor dos Navegantes.

O exemplo mais marcante é a procissão marítima na Baía de Todos os Santos, em Salvador, que termina na Festa de Largo da Boa Viagem, com muita cachaça, rodas de samba e capoeira. O texto a seguir, “Nosso Senhor dos Navegantes”, magnificamente ilustrado por Carybé, é de autoria de um dos maiores cronistas da Bahia, Odorico Tavares, pernambucano de nascimento (Timbaúba, 1912 – Salvador, 1980), baiano por adoção. Foi extraído do livro “Bahia – Imagens da Terra e do Povo”, Editora Civilização Brasileira, 3ª edição, 1961. Odorico foi jornalista, poeta e colecionador de arte.

Nosso Senhor dos Navegantes

Odorico Tavares

Aí está uma festa popular baiana que o tempo não alterou e nem o progresso arrefeceu: a procissão marítima de Nosso Senhor dos Navegantes, na manhã do primeiro dia do ano. Não pode haver espetáculo mais belo do que esse desfile de centenas de barcos, através da Baía de Todos os Santos, acompanhando a galeota do Protetor dos navegantes, saindo do porto, indo até a entrada da barra e regressando à Praia da Boa Viagem, em Montesserrate. Há muitos anos que assistimos a essa procissão,' jamais o tempo deixou de estar límpido, a luz radiosa tremendo no ar, o azul do céu harmonizando-se com o azul do lago mediterrâneo em que se transforma a grande enseada. É neste cenário que barcos, lanchas, saveiros, jangadas, pequenos navios navegam na mais bela procissão que assistimos. Das muradas da Cidade Alta, do cais, das praias, a população vai ver o cortejo do santo' protetor dos navegantes. Que nenhum visitante, que esteja na Bahia, no primeiro dia do ano, perca a cena: jamais esquecerá.

À véspera do ano novo, à tarde, a imagem do santo é trazida da igrejinha de Nossa Senhora da Boa Viagem, em Montesserrate. É um pequeno templo onde há excelentes azulejos representando cenas de salvamento em naufrágios; são autênticos, ex-votos, talvez os únicos do Brasil neste gênero. A igrejinha tem uma bela fachada, é do século 17. Dali vem o santo, é trazido até o cais da Alfândega e levado em pequena procissão para a igreja da Conceição da Praia. A imagem da Conceição vem receber o Senhor dos Navegantes que pernoita na suntuosa igreja da Cidade Baixa. Silva Campos acentua que, antigamente, a chegada da imagem do Senhor dos Navegantes se dava à noite e debaixo de grandes folguedos:

“O povoléu desbragava-se em cenas de inominável desrespeito, sob uma capa de falsa devoção.” Não somente no embarque na Praia da Boa Viagem, como, também, no desembarque, no antigo cais de Santa Bárbara. “Fervilhava a multidão fusca. Batuques. Sambas. Rodas de capoeiragem. Ouviam-se pandeiros, cavaquinhos, violas, harmônicas, berimbaus e palmas cadenciadas. Um pandemônío. Vozeio confuso. Ditos e gestos licenciosos. Exclamações neumáticas de ébríos. O álcool desenfreara a massa deseducada, de instintos primitivos. Um odor azedo de cachaça, de bodum, de suor, de frutas sazonadas, entontecia. Era em meio de tal garabulha, prolongada até o dia seguinte, com o sol já alto, que chegava à terra a imagem do Senhor dos Navegantes, cerca de vinte e uma horas, quando a orgia estrondava.”

Hoje, não. A saída da Boa Viagem, como a chegada do Santo, no cais da Alfândega, se processa na maior ordem e com frequência regular, mas sem os excessos de que fala o cronista. Tudo na maior ordem. Recolhida a imagem, no dia seguinte tem lugar então a procissão. Rezada a missa solene na Conceição da Praia, demanda a imagem até o cais da Alfândega, com acompanhamento, inclusive das autoridades. A presença do prefeito da capital já constitui uma praxe. Vai a imagem na sua galeota, construída, em 1891, por carpinteíros que a presentearam ao santo. É que, com a separação da igreja do Estado, não foi mais permitida a imagem ser conduzida em batel pertencente ao governo. E graciosa a galeota, com o seu anjo na proa, toda pintada de branco, orgulhosa de conduzir o guardião de todos os navegantes.

Está no cais, cercada de centenas de embarcações e milhares de pessoas disputam lugares: grupos, batucadas, rodas de sambas formadas, belas morenas conduzindo-me lancias, mangas, cajus, a música popular baiana ali arrebenta num louvor ao Santo. Chegando, a imagem é conduzida para a galeota e esta puxada por uma lancha a motor. Começa a mover-se a procissão, velas brancas, azuis, vermelhas se levantam para o céu e aos poucos o cortejo toma forma e se conduz para os lados da Barra, singrando serenamente o lago em que está transformada a Baía de Todos os Santos. Em cada barco, levantam-se os cânticos, o samba assume o seu maior papel e ninguém sente diminuição ou desrespeito ao Santo, Ele que abriga os navegadores das tempestades, os pescadores das iras de Iemanjá, que, nos dias sinistros, conduz a todos os que foram pegados desprevenidos ao porto de salvação.

Deus deu alegria ao homem para expressar o seu agradecimento pela satisfação de viver. E o povo faz chegar o seu agradecimento a Deus pela sua música, pelas suas canções e pela sua alegria. Vale a pena tomar um saveiro qualquer e acompanhar a procissão, participando destes grupos: ouvir os seus cantos pelo mar a fora e Deus comandando o seu povo, a quem protege e resguarda. São quase onze horas e a procissão já chegou à entrada da Barra, lá fazendo a volta e retomando ao porto para seguir direta, serena e devagar para a Praia da Boa Viagem. Diz Silva Campos que “no tempo da monarquia, as fortalezas e os navios de guerra nacionais, embandeirados em arco, salvavam no momento em que a procissão síngrava as águas da Baía”. Hoje, as fortalezas, os velhos fortes já não têm artilharia para salvar, mas os navios fazem soar as sirenas à passagem da procissão.

Enquanto isso, defronte da Igreja da Boa Viagem, na Península de Itapagipe, a multidão domina todo o pátio, alastra-se pelas ruas perto e a praia não comporta mais ninguém. O povo aguarda o santo e a procissão se avista bela e imponente mar a fora. Grande parte da multidão está em trajes de banho, com seu calção, pois a festa é do mar, o santo é do mar e, no mar, desfila sua procissão. É nas águas do mar, nas areias da praia do mar que se aguarda o Senhor dos Navegantes. E quando a galeota vai se aproximando, a multidão avança pelas águas, disputa aos gritos o privilégio de tocar na embarcação do Senhor, de tocar na Sua imagem, de participar da retirada do Seu andor. E indescritível o momento.

São centenas de pessoas, ameaçando soçobrar o barco, os seus condutores tentando deter os que vêm nadando para disputar a honra excelsa. Nada os detém. Já milhares estão na praia, expondo seus dorsos fortes e nus, brancos, morenos e escuros queimados pelo sol forte e pela luz baiana. E quando a imagem é entregue ao povo, a multidão inteira a disputa. Nem a comissão, nem o prefeito, nem os sacerdotes que a acompanham, podem manter a ordem desejada. As exclamações sobem de toda parte, os gritos são de todos e a exaltação ao protetor dos homens do mar chega ao auge. Bloco imenso de músculos retesos, a clamar por um escultor, conduz a imagem à Igreja da Boa Viagem a uns duzentos metros da praia. E do meio do caminho, vem recebê-la a imagem de nossa Senhora da Boa Viagem.

É preciso ver e sentir o entusiasmo, a fé do povo baiano neste momento. Não a fé mórbida das procissões ibéricas, de uma Sexta-feira da Paixão, em Sevilha, por exemplo. Mas a fé cheia de vitalidade e de pureza do povo moreno da Bahia. Este espetáculo da religião de um povo se expressando, com tanto vigor e tanta saúde na sua fé, deixa pensar na contribuição poderosa do sangue africano. O ibérico tende para o trágico: o africano trouxe ao povo baiano a vitalidade e alegria que assistimos um povo receber, como a um líder, o Senhor dos Navegantes. Pode-se falar em falta de respeito quando a fé está em manifestações como essa? Deve-se, sim, invocar ausência de formalismo e de preconceitos' que o povo afasta para receber o seu santo como a um amigo de todas as horas, ao protetor que não falta nas ocasiões necessárias. Levada a imagem à Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, fica o Senhor dos Navegantes no seu Santuário todo o ano, e volta o povo à disputa, para tirar das águas e trazer até sua garagem, ao lado da igreja, a galeota. Como pesa, quantos esforços são feitos, cabos fortes são puxados por centenas até que a embarcação cede e é colocada nos trilhos! E tudo se faz com cânticos e tudo se faz com danças, com o samba, não o samba importado em discos, mas o samba legítimo das colinas baianas, nascido das batucadas dos seus negros e mulatos.

E a festa prossegue no largo da Boa Viagem. E não faltam a fabulosa cozinha baiana, as suas frutas, as me lancias, as mangas, os cajus, os abacaxis, não faltam as barracas de prendas e os que amam, os que se divertem, os que se banham nas águas da Baía de Todos os Santos, na prainha das areias brancas e das águas límpidas. E tarde já, o sol está forte, mas pouco importa. “A saúde que Deus concedeu ao povo foi para se divertir”, diz-nos uma preta formosa, rainha de seu grupo, delírio dos sambistas, batendo os seus pés ligeiros, acompanhando a batucada. E a tarde e a noite conhecerão, também, a alegria do povo de Deus, liberto de preconceitos, vindo, todos os anos, render graças Àquele que o protege das tempestades, das águas más, dos maus ventos.

Passam-se os anos, modificam-se tradições, mas o povo baiano conhece o primeiro dia de cada ano, exaltando ao seu Deus, que em tudo manda e rege, como também rege e manda nas águas do mar: o Nosso Senhor dos Navegantes.