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Seara Vermelha, romance de luta e transbordante esperança

 Seara Vermelha é um dos romances mais engajados do escritor Jorge Amado e também o mais traduzido e editado no exterior, compreendendo 26 idiomas: albanês, alemão, árabe, armênio, búlgaro, chinês, eslovaco, espanhol, finlandês, francês, grego, hebráico, húngaro, italiano, japonês, lituano, moldávio, polonês, romeno, russo, sérvio, sueco, tcheco, turco, ucraniano e vietinamita. Foi também editado em Portugal, com prefácio do escritor Álvaro Salema.

Escrito em 1946, foi dedicado a Luís Carlos Prestes, “amigo dos camponeses”, então secretário geral do Partido Comunista do Brasil (PCB) e, entre outros camaradas e amigos, a João Amazonas, na época um dos mais destacados dirigentes do Partido.

O caráter militante e ideológico da obra sobressai a partir das três epígrafes. Na primeira, um condoreiro e irado verso do poeta dos escravos, Castro Alves: “Cai, orvalho do sangre do escravo/ Cai, orvalho na face do algoz./ Cresce, cresce, seara vermelha,/ Cresce, cresce, vingança feroz”. Na segunda, uma citação do secretário geral da legenda comunista: “…está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo”. E na última, encontramos uma citação filosófica de Engels: “A liberdade é o conhecimento da necessidade”.

Seara Vermelha narra a saga de uma família de retirantes nordestinos, que padece um rosário de sofrimentos na trajetória rumo a São Paulo. Do grupo inicial de onze retirantes, apenas quatro chegam ao destino, indo trabalhar numa fazenda de café.

Jorge Amado conta também as histórias de três filhos do casal de retirantes, que tinham partido de casa antes dos pais: o soldado João, o jagunço Zé Trovoada e o cabo Juvêncio. Este último é o personagem principal do fragmento que oferecemos ao leitor – o último capítulo, “Neném” e o epílogo. Juvêncio serve na fronteira com a Colômbia, participa da insurreição de 1935, organizada pela Aliança Nacional Libertadora e pelo Partido Comunista, acontecimento marcante da vida política brasileira na primeira metade do século 20, que completa 75 anos nesta semana (25, 26 e 27 de novembro). Ele é preso, cumpre pena no presídio de Ilha Grande e, depois da anistia, segue adiante na militância comunista.

Seara Vermelha é rebento da pena fluente e criativa de Jorge Amado numa época de luta frontal de classes no Brasil, de militância inequívoca e transbordante esperança.

O trecho que publicamos é longo para os padrões de fatuidade e preguiça quanto à leitura, próprios dos tempos cibernéticos. Não deve ser lido em frente à tela fria do computador. É para baixar, imprimir e fruir gostosa e vagarosamente, como se embalado estivesse pelo falar baiano do autor. Ou por uma música de Caymmi, o que dá no mesmo. Boa leitura.

José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho

* Ilustrações e retrato do autor: Carlos Scliar

Nenén
1

Juvêncio, a quem os íntimos chamavam de Neném, ouvia em silêncio, a atenção concentrada, o homem alto que falava. Pouco sabia daquele companheiro, apenas que viera do sul, de Pernambuco talvez, e que era da direção. Assim lhe tinha dito o sapateiro quan¬do viera avisá-lo da reunião:

— É com um companheiro dirigente que chegou aí… Só leve os homens de absoluta confiança… Gente duvidosa, não! Não podemos pôr em perigo a segurança do companheiro…

E o responsabilizara:

— A responsabilidade é sua…

Enquanto escutava, atento porque desejava entender tudo que fosse dito, aprender bem o sentido das palavras de ordem, Juvêncio examinava o dirigente. Havia no homem qualquer coisa que o fazia antipático à primeira vista, algo que impedia que entre ele e os que o ouviam se estabelecesse essa corrente de simpatia e compreensão que tanto ajuda o entendimento. Juvêncio procurava perceber que coisa seria essa, não se sentia bem com aquele senti¬mento abrigado no peito. Como conseguir desligar as palavras justas que o homem dizia — e dizia com certa ênfase e alguma cla¬reza — da antipatia que sentia por ele? Talvez faltasse na ênfase e na clareza do homem aquele fogo nascido da convicção profunda e daí a frieza da sala. Naquele tempo não era apenas o Partido que lhe parecia sagrado e intangível. Eram os companheiros diri¬gentes também, Juvêncio ainda confundia o Partido com os homens, e era neles, na sua sinceridade e capacidade de luta, que buscava encontrar a concretização do Partido. Não o sentia através da luta e seus resultados e, sim, nos militantes e nas suas qualidades. Tinha pouco mais de um ano de Partido e alguns meses desse ano ele os passara na Amazônia, em meio à selva, sem nenhum contacto com os camaradas. O homem citava Lenine e Stalin, livros que Juvêncio não lera, frases difíceis para ele. Tudo quanto lera, além de materiais clandestinos, fora um livro de Maria Lacerda Moura e com ele se entusiasmara. Admirava o homem, sem dúvida. Pa¬recia saber muita coisa e os esmagava — àquele grupo de cabos e sargentos — com as citações, as frases de Lenine e até de Marx. Juvêncio murmurou para si mesmo o resultado das suas obser¬vações:

— Pernóstico…

Muito tempo depois, na cadeia, ele iria ter oportunidade de conhecer de perto a Agnaldo — que ali, na reunião, usava o nome de guerra de Tadeu — e de aprender uma palavra que melhor o definia: auto-suficiente. Mas quando isso aconteceu já o cabo Juvêncio distinguia perfeitamente o Partido dos homens que o compunham.

A casa onde efetuavam a reunião era nos subúrbios da cidade de Natal, e através das frestas da janela fechada entrava a brisa da noite. O ar da sala estava empestado com o fumo dos cigarros baratos e houve um momento em que Juvêncio se sentiu sufocar e não pôde acompanhar as palavras de Agnaldo. Perdera-se no estudo da sua fisionomia e implicava com aquela voz sibilante, que demorava na pronúncia das últimas sílabas como um professor que ensinasse meninos a soletrar. Fêz um esforço maior, concentrou novamente a atenção:

— … e cada companheiro deve estar preparado, consciente das suas responsabilidades, do papel histórico da classe operária, e apto a enfrentar a situação…

O homem era inteligente, não havia como negar. Traçava agora o quadro político do país e Juvêncio foi ficando entusiasmado. As palavras de Agnaldo eram cheias de otimismo, pelo que ele dizia o poder estava quase nas suas mãos, como uma fruta madura numa árvore, bastava alçar-se nas pontas dos pés e colhê-la. A palavra "baluartismo" já era conhecida de Juvêncio e ele mesmo a empregava, rudemente, quando recebia — para transmitir a direção local — os informes dos cabos de cada companhia, dos sargentos e dos soldados. Quando as notícias lhe pareciam dema¬siado otimistas (Macedo sempre tinha que contar de um "oficial que é nosso, batuta") ele retrucava áspero.

— Olha esse baluartismo…

Ouvira a palavra uns dois meses antes, noutra reunião como aquela, apenas mais restrita, quando falara também um dirigente chegado do Sul. Juvêncio não podia se furtar à comparação. O outro não era tão fluente, parava procurando as palavras, a voz um pouco trôpega como se ele não estivesse afeito a longas dissertações. Mas não só o entendiam completamente, percebendo o significado de todas as frases como as instruções que ele transmitia ficavam gravadas no fundo de cada um, saíam dali para cumpri-las. Era bem jovem aquele dirigente, tinha um sorriso tímido e abraçara a todos eles na hora da despedida. Perdera tempo explicando frases do material que trouxera, frases que realmente eles não poderiam entender só com a simples leitura. Juvêncio gostara dele. Agnaldo era desagradável nos modos, se bem de palavra fácil. Uma distância se marcava entre ele — o dirigente — e os homens na sala. Olhava-os de cima, como que havia uma leve ameaça em cada uma das suas afirmações. Mesmo quando traçava aquele quadro otimista parecia responsabilizar os sargentos e cabos do regimento por qualquer falha que houvesse ainda que ela acon¬tecesse no Rio Grande do Sul e não no Rio Grande do Norte. O sapateiro, que era da direção local, olhava Agnaldo humildemente e aquilo incomodava igualmente Juvêncio, de natural rebelde e pouco inclinado a bajulações.

Agora o dirigente iniciava o estudo da situação local. A atmos¬fera da sala ia se tornando insuportável. Há três horas já que eles estavam reunidos, a sala era pequena, não havia eletricidade e a fumaça do candeeiro ficava boiando sobre eles, misturada à dos cigarros sucessivos. Juvêncio percebeu que Macedo deixara de prestar atenção, apesar de manter os olhos fixos em Agnaldo. Conhecia bem aquele olhar do companheiro, sabia o que ele signi¬ficava: Macedo estava distante dali, imaginando coisas, cenas nas quais ele era o herói. No mínimo já estava pensando num levante, nas proezas que realizaria, nos tiros que dispararia, nas valentias Que faria. Macedo era assim, mas, em compensação, nele se podia confiar, era homem para as horas ruins. Juvêncio conhecia cada um daqueles cabos e sargentos como se houvesse nascido do mesmo ventre que eles e ao seu lado houvesse crescido. Ali estava Valverde, baixote e sorridente, capaz das maiores besteiras, mas um que nunca trairia, desses que morrem mas não falam. Já em Francisco Conceição, tão meticuloso que nem uma rendeira com seus bilros, Juvêncio confiava pouco. Não sabia o que ele podia dar numa situação difícil. Os outros gostavam muito de Conceição, achavam-no formidável porque ele era dos que mais intervinham, cheio de detalhes, com soluções próprias para cada coisa. Mas Juvêncio tinha um palpite de que ele falharia quando chegasse o momento decisivo. Vira-o empalidecer, tremer e ficar com a testa cheia de suor, quando, certa manhã antes da instrução, lhe passara, sob as vistas do tenente, um papel com uma ordem. O tenente estava perto mas Juvêncio escolhera o momento exato, e o único em que teria, nesse dia, contacto com Conceição. A tarefa era urgente, para ser executada naquela mesma manhã, tinha que arriscar e se o outro não se revelasse tão medroso o tenente nada teria percebido. Mas Conceição tremera, o tenente desconfiou, andou para os lados do cabo. Conceição estava com o papel entre os dedos, Juvêncio sentiu que ele ia deixá-lo cair, marchou então para o tenente, propondo-lhe uma questão, cortou o rumo dos seus pensamentos e dos seus passos, deu tempo a que o outro escondesse o papel. Quando deixou o tenente, esse ainda olhou para onde estava Conceição, mas já sem aquela intuição, achando que não devia ser nada.

Juvêncio depois reclamara com Francisco Conceição mas ele lhe respondera que ia engolir o papel, fazer e acontecer. Bravatas, pensava Juvêncio, mas, na opinião dos demais Conceição crescia, se bem fosse a Juvêncio que eles todos, sem exceção, respeitavam e seguiam. Sobre ele não havia duas opiniões.

Cutucou Macedo para que o cabo prestasse atenção:

— Agora é com a gente… — murmurou baixinho mas ainda assim Agnaldo percebeu, parou, olhou-o com certa censura e per¬guntou:

— O Companheiro Juvêncio tem alguma observação a fazer? "Sujeito besta." Pois aproveitaria para reclamar contra a atmosfera insuportável da sala:

— Queria dizer ao companheiro que seria bom se pudéssemos parar uns minutos, para abrir a janela e deixar sair essa fumaceira. Assim a gente não pode prestar atenção…

E como visse que o outro ia reagir e achasse que não valia a pena criar um caso e, sim, conseguir o que desejava, completou:

— O informe do companheiro é muito sério. Nós não somos instruídos como o companheiro, a gente é pouco politizada. A gente precisa estar bem atenta para não perder nada do informe tão importante…

Juvêncio via o sapateiro incomodado, fazendo-lhe sinais de reprovação com os olhos e os lábios. Sorriu, derramou mais uns elogios na "capacidade do companheiro Tadeu", este estava satis¬feito. Aliás ele mesmo gostaria de descansar um pouco, beber um copo de água, a língua estava seca, falava há bem mais de uma hora. Concordou e todos se levantaram e foram para a sala dos fundos. Só ficou o dono da casa, um sargento, que abriu as janelas e respirou o ar puro da noite.

Na sala dos fundos eles se espreguiçavam, trocavam comen¬tários. Uma criança chorou no quarto, acordada talvez pela voz gritante de Macedo que dava sua opinião entusiasta:

— Formidável! Formidável!

Agnaldo bebia água, sem se misturar com eles, levando o sapa¬teiro para um canto, numa conversa cochichada. Não se tratava de nada importante. Agnaldo queria apenas saber detalhes sobre as ruas da cidade que não conhecia para não se perder quando andasse sozinho, mas o sapateiro punha uma cara de mistério para que os cabos e sargentos pensassem — como pensavam — que ali altos problemas do Partido estavam sendo resolvidos. Juvêncio gostava do sapateiro, era um bom homem, e respeitava-o como a dirigente do Partido. Aquele respeito, porém, que inicialmente, logo que ele chegara a Natal, fora grande, ia diminuindo à proporção que o tempo passava e que o contacto entre eles se tornava maior. Ju¬vêncio era um ser ansioso de aprender, vivia fazendo perguntas e a muitas o sapateiro não sabia responder. Se dissesse isso franca¬mente, não se diminuiria perante Juvêncio. Porém nunca respondia “não sei". Embrulhava as palavras, numa conversa comprida, a explicação não vinha. Por vezes, dias depois, num novo encontro ele trazia a solução e Juvêncio ficava satisfeito:

— Esse bruto teve que estudar…

Certo domingo almoçara em casa do sapateiro, conhecera sua esposa e seus três filhos, vira a pequena estante feita de tábuas de caixão onde repousava meia dúzia de livros. Juvêncio olhou-os com inveja. Via os títulos, alguns em espanhol, eram obras de Lenine, folhetos, um resumo de "O Capital". O sapateiro, ao seu lado, sentia-se orgulhoso. Retirou da estante um volume em espanhol, era o "Que fazer?", de Lenine.

— Isso é que é livro. "Que hacer?", quer dizer "Que fazer?" É de Lenine… Explica tudo… Só não lhe empresto porque você não sabe espanhol…

Mas não quis lhe emprestar também os folhetos em português. Juvêncio podia perdê-los e eram livros difíceis, nas livrarias não havia, chegavam por meios ilegais. E como Juvêncio garantisse que tomaria todo cuidado, se responsabilizaria pela devolução, o sapateiro usou de outro argumento. Era perigoso um livro daqueles em mãos de um cabo do Exército, no regimento, ou mesmo em casa. E se um reacionário visse? A provocação que resultaria… E logo agora… Não, não podia emprestar.

O argumento pesou sobre Juvêncio, não teve o que dizer. Mas durante dias a visão daqueles livros o perseguiu, quando poderia ler tudo que desejava? Quando saíra da roça em busca da cidade, antes de entrar para a polícia militar e seguir para São Paulo, mal sabia soletrar e desenhar o nome. Aplicou-se ao estudo com uma vontade de ferro. Não lhe custou muito aprender a ler corrente¬mente, a escrever com desembaraço. Tinha até uma letra bonita, uma assinatura que parecia de doutor, com uns floreados embaixo. Em S. Paulo, o camarada Tavares, Zé Tavares, um sujeito de sua terra que imigrara e era guarda-civil na capital paulista, dera-lhe a ler o livro de Maria Lacerda Moura e um romance sobre a vida de trabalhadores do campo. E depois o convidou a ingressar no Partido, contando-lhe, enquanto andavam pelas ruas trocando pernas, qual a missão dos comunistas, como lutavam e o que pre¬tendiam. Entusiasmou-se:

— Mas era isso que eu tava procurando…

Nunca mais conseguira ler um livro. Chegara a estar de posse de um, logo que desembarcara em Natal. Fora Valverde quem aparecera com ele no regimento. Título mais sugestivo não podia haver: "ABC do comunismo." Lera avidamente as primeiras pá¬ginas quando o sapateiro apareceu e, ao ver o volume, tomou-o de suas mãos, avisando-lhe que aquela edição não merecia confiança, estava toda deturpada, obra dos trotskistas. Juvêncio o entregou, agradecido do aviso do outro. Viu-o rasgar o livro:

— Pra não envenenar outro companheiro…

Falara-lhe depois sobre Trotsky e o mal que ele fizera à revo¬lução. Como os trotskistas sabotavam o esforço do Partido e traíam a classe trabalhadora. Ali pelo Norte eles eram raros, felizmente. No Sul é que havia muitos, infiltravam-se no Partido só para destruí-lo. Juvêncio ficava pesando as palavras de Zé Tavares. E concluía que ele não podia ser trotskista.

— Trotskista e policial é a mesma coisa… — resumia o sapateiro, rasgando as últimas páginas do livro condenado.

Na cadeia, muito depois, Juvêncio teria tempo para ler e ter sua opinião sobre os trotskistas — tão arraigada nele devido à paixão com que o sapateiro falara — iria se reforçar diante das provas e dos fatos. Leria também o "ABC do comunismo", desta vez uma edição merecedora de fé. E pensava que se tivesse tido livros naquela ocasião talvez muita coisa tivesse sucedido de ma¬neira diferente.

Dez minutos haviam passado desde que a reunião fora suspensa. Agnaldo achava que era tempo de voltarem à sala. O fumo saíra pela janela aberta, eles sentavam-se nas cadeiras e no banco com outra disposição. O sapateiro, que presidia a reunião, disse:

— O camarada Tadeu vai continuar seu informe…

A voz pedante do outro:

— Pois, companheiros, como ia dizendo agora vamos analisar as condições do nosso Partido e da Aliança aqui… Começaremos pela Aliança Nacional Libertadora…

O cabo Juvêncio sorriu para si mesmo do espanto de Macedo e Valverde quando ele lhes falara da Aliança Libertadora. Quando Juvêncio chegara da Amazônia, com certa lenda a rodear-lhe o nome devido os acontecimentos da fronteira, e sua personalidade se impôs ao grupo de cabos e sargentos do regimento, logo um oficial o procurara e o sondara sobre a possibilidade de um golpe para o estabelecimento de uma "ditadura republicana", golpe que seria chefiado pelo general Manuel Rabelo. Juvêncio não discutiu.

— Topo…

O oficial o encarregara de aliciar os sargentos e cabos, esta¬belecer ligações. Juvêncio tinha por aquela época vinte e um anos e numa autocrítica posterior, sobre o movimento de 35, realizada na cadeia, não tivera dúvidas em reconhecer que por aquele tempo então era golpista, só acreditava mesmo na força das armas e dos levantes militares. Ao demais perdera completamente o contacto com o Partido, desde que fora transferido de São Paulo, e agia por conta própria.

Alguns dias depois, porém, um músico de lª classe, Quirino, o procurara, exibira uma credencial do Partido Comunista, e lhe fizera algumas perguntas. O companheiro não era membro do Partido? Não tivera ligações em São Paulo? Juvêncio sentiu uma alegria de adolescente que encontra a primeira namorada. Seu prestígio entre os cabos e os sargentos crescia a olhos vistos. Gostavam de ver como ele tratava com os oficiais, sem arrogância, mas sem nenhuma inferioridade, altivo. Os meses na Amazônia, em Letícia, haviam ensinado a Juvêncio que os oficiais eram feitos da mesma carne que ele e que nos momentos difíceis é que se pode conhecer per¬feitamente os homens. Ali, na selva espantosa, oficiais, soldados e cabos apareceram uns diante dos outros como realmente eram, despidos de todos os artifícios, nus na sua verdadeira personalidade. Aprendera ali, durante a luta contra os paulistas em 32, a tomar resoluções rapidamente, assumir responsalibidades, não temer as situações. Com pouco mais de um mês em Natal já era ele quem resolvia os assuntos da maioria dos cabos e sargentos, seu consultor para as coisas mais variadas. Um grupo se formara em torno dele, com Macedo e Valverde à frente, e estavam todos com ele na cons¬piração para a "ditadura republicana".

Quirino, e mais uns três, eram dos que não se aproximavam muito de Juvêncio, o olhavam de longe, com certa prevenção. Até que chegara do Sul aquela informação. A direção local tinha resol¬vido conversar com Juvêncio, sabia do seu prestígio, e, se bem ainda não confiasse muito nele, resolvera ver se podia aproveitá-lo ga¬nhando assim aquele enorme grupo de cabos e sargentos. Quirino, naquela primeira conversa, esteve misterioso e reticente. Perguntou muito, disse pouco. Juvêncio queria logo contacto com o Partido e saber das diretrizes, das palavras de ordem. Quirino cortou a conversa dando-lhe um número da "Classe Operária" e prometendo procurá-lo no outro dia. Mas no dia seguinte Juvêncio não conseguiu falar com ele. Quirino não lhe deu possibilidade de nenhuma con¬versa, arredio e esquivo. Juvêncio ficou matutando sobre aquilo. Que estaria acontecendo?

Leu as quatro páginas da "Classe" repetidas vezes. Já ouvira falar na Aliança Nacional Libertadora, uns amigos de Quirino per¬tenciam a ela mas eram uns poucos, a gente da "ditadura repu¬blicana" era em muito maior número. Uma semana se passou assim, ele em busca de Quirino, o outro evitando conversa, escapu¬lindo quando o via, dando desculpas que não convenciam. Final¬mente num sábado aproximou-se risonho e disse:

— Queria lhe levar a um lugar hoje…

Juvêncio estava por conta:

— Hoje estou ocupado… Já estive às suas ordens a semana inteira… Só outro dia…

Quirino falou sério e foi essa frase que fez com que Juvêncio o ficasse estimando:

— São ordens do Partido… Não é para discutir. Se eu não conversei com o companheiro antes é que não tinha ordem para isso… É o Partido quem está chamando o companheiro…

— Não se discute… Pode marcar…

Quirino marcou um encontro num subúrbio distante. As nove horas da noite. Estava conspirativo e avisou: ,

— Espere só cinco minutos. Se eu não chegar, dê o fora, espere outro aviso…

Juvêncio gostou daquilo, bulia com sua imaginação. Apertou a mão do companheiro. Depois foi uma luta para convencer a Valverde que não podia sair com ele naquela noite, ir, como ele queria, visitar Conceição, cuja amásia fazia anos.

— Talvez eu apareça mais tarde… Se tiver tempo…

— Onde você vai?

— Num lugar…

— Mas, onde?

— Por aí…

Valverde era cheio de suscetibilidade:

— É segredo?

Pôs a mão no ombro do outro:

— Depois tu vai saber…

Valverde se lembrou da "ditadura republicana". A conspi¬ração marchava lentamente mas, de quando em vez, Juvêncio tinha uns encontros com oficiais comprometidos. Devia ser uma coisa dessas. Apenas pediu:

— Vê se dá um pulo lá… Se não, Conceição vai ficar abor¬recido … A turma toda vai, tem arrasta-pé e mesa de doces… Era pra você levar Lurdes…

— Vou dizer a Lurdes pra ela ir… E, se eu tiver tempo, apareço… Mais tarde, lá pras onze ou meia-noite…

Às nove horas estava no ponto. Fumava um cigarro, olhava a rua deserta. Apenas, numa esquina, um casal de namorados encos¬tados à parede. O sino de uma igreja bateu as nove horas e logo depois Quirino apareceu no escuro, assobiando. Quando chegou a seu lado disse:

— Vamos…

Passaram pelos namorados, Juvêncio notou que a moça virava o rosto para não ser vista. Seria bonita? — pensou. Quirino ia calado e pouco adiante dobraram uma esquina, entraram num beco sem calçamento, onde a lama se acumulava. Um vulto era visível um pouco adiante. Quirino voltou a assobiar, agora um pouco mais alto. O homem diminuiu o passo até que eles o encontraram. Não houve apertos de mão. Quirino apenas disse numa rápida apre¬sentação:

— O companheiro Juvêncio… O companheiro Pedra…

Nome de guerra, refletiu Juvêncio, enquanto procurava exami¬nar o homem ao seu lado. Teria uns cinqüenta anos, era careca, o rosto avermelhado, um ar de pessoa pacata e modesta. Sorria e era simpático o seu sorriso, mostrando as gengivas na boca desdentada. Quirino, quando chegaram sem palavras na outra esquina, resmungou um boa noite em voz baixa e desapareceu. Em silêncio andaram mais uns passos para diante e o homem falou:

— Por que o companheiro não se apresentou ao Partido quando chegou? Um comunista…

— E como diabo eu ia adivinhar onde estava metido o Partido?

— Não trouxe nenhuma ligação?

— Só se fosse dos índios. Cheguei foi da Amazônia — nar¬rava. — Quando saí de São Paulo para Mato Grosso me deram ligação para o pessoal de lá. Em Campo Grande me apresentei mas a reação estava dura, mandaram que eu esperasse. Fiquei zanzando, nunca me deram uma ordem. Quando apareciam, era para buscar dinheiro, sempre arranjei algum no batalhão. Mas demorei pouco tempo lá, vim pro Amazonas. Me deram ligação pra Manaus mas eu fui parar na fronteira com a Colômbia, em Letícia…

— Já sei da história…

Juvêncio ficou um pouco desconcertado pensando que o outro imaginara que ia lhe relatar os acontecimentos da fronteira. Con¬tinuou sem muita vontade:

— De lá vim praqui… Como é que podia procurar o Partido, se não sabia de nenhum comunista?

Acrescentou e o outro sentiu a sinceridade na sua voz:

— Doido pra encontrar eu estava…

— O companheiro está envolvido na conspiração para a "dita¬dura republicana", não está?

— Estou. Já disse a Quirino…

— É um erro. Admito que o companheiro não pudesse procurar o Partido, não era realmente fácil descobri-lo… — riu um risinho de satisfação, orgulhoso da perfeição da ilegalidade. — Mas um comunista se meter numa conspiração burguesa, de caráter aven¬tureiro, isso, não sei como o companheiro poderá explicar. ..

— Nem procuro explicar. Pode ser um erro, nem discuto. O caso é que eu estava de braços cruzados, bestando… Me convi¬daram, topei. Burrada…

— Gosto de sua franqueza. Não vem com desculpas tolas… O comunista deve saber fazer autocrítica… Agora o que você tem de fazer, quanto antes, é pular fora dessa besteira…

— É uma ordem?

O careca balançou a cabeça. Andaram mais uns passos, ele voltou a falar:

— O companheiro tem influência junto a vários cabos e sar¬gentos. Segundo o Partido está informado, o companheiro é o cabo de mais prestígio no regimento…

Primeiro pensou em fazer modéstia mas de imediato respondeu:

— É verdade… O pessoal gosta de mim…

O outro sentiu também que ele não dizia por vaidade, compro¬vava apenas um fato. O sapateiro, pois Pedra era apenas o sapa¬teiro Luís, ia se deixando influenciar também por aquela sinceridade e pelos modos bruscos mas naturais do cabo.

— Você pode fazer um bom trabalho… A célula no regimento é pequena — abanava as mãos numa explicação: — O trabalho apenas começa. Você, com seu prestígio, pode trazer muita gente para o Partido… Ou pelo menos para a Aliança…

— A Aliança Nacional Libertadora?

— Já ouviu falar, não? É um movimento que está empolgan¬do… Com Prestes à frente, vai que é uma beleza…

Juvêncio queria saber a diferença entre o Partido e a Aliança e quais as ligações entre um e outro organismo. O sapateiro explicou longamente, o assunto era-lhe familiar, muitas vezes tivera que dar aquela mesma explicação. Juvêncio ouvia em silêncio.

Deixou o sapateiro (para ele ainda era o companheiro Pedra, desconhecido, cuja autoridade no Partido não sabia qual era, apenas percebia que tratava-se de alguém responsável) ainda a tempo de ir à casa de Conceição. Lá estava a turma toda. Foi recebido com gritos e aclamações, trouxeram-lhe cachaça e cerveja, Lurdes sorria sentada numa cadeira na sala, vendo os pares na dança. A barriga começava a crescer e, ao demais, ela só dançava com Juvêncio. Foi a ela que se dirigiu primeiro:

— Tu trouxe uma lembrança pra Alzira? — era a amásia de Conceição que aniversariava.

— Trouxe uma caixa de sabonete…

— Tá bom… Vamos dançar…
No meio da festa chamou Valverde e Macedo num canto, disse-lhes em voz baixa:

— Aquele negócio da "ditadura republicana" acabou-se…

— Acabou-se? Desistiram da brincadeira? — Valverde estava aborrecido.

Macedo reclamava:

— Ora essa… E eu que já contava ser promovido… sonhava com as divisas de sargento, esperava consegui-las com o golpe.

— Não desistiram, não… Não é que desistimos…

— Nóis? — Macedo não entendia nada.

— Nós, sim… Com eles, nada mais… É aventura… E nós não nos metemos em aventuras… Acabamos com eles…

— E o que é que vamos fazer?

— Agora somos da Libertadora…

— Libertadora? Que troço é esse?

— A Aliança Nacional Libertadora…

— Ahn! — fez Valverde. — Tem um tenente que é dela… É um bom sujeito…

— Mas por que isso? — quis saber Macedo.

— Você não é comunista? — todos eles se diziam comunistas, desde que haviam sabido que Juvêncio era comunista. O cabo, desde que se ligara ao Partido, jamais deixara de se apresentar como comunista, mesmo quando sem nenhum contacto com o organismo.

— Sou, é claro…

— Pois os comunistas estão é com a Aliança. E é se preparar porque a revolução vem aí e não tarda…

— Quer dizer que a Aliança…

— A não ser que algum de vocês queira logo entrar para o Partido. Para o Partido Comunista. Aí a coisa é mais perigosa…

— Eu quero é o Partido… — disse Valverde.

— E eu também…
Conceição vinha chegando:

— Que é que há?

Juvêncio ia mudar de assunto mas Valverde, que era falador, foi logo dizendo:

— A gente acabou com a "ditadura republicana".

— E agora?

— É a Aliança Nacional Libertadora…

Os que lhe mereciam mais confiança, Juvêncio os levara para o Partido. E começaram o intenso trabalho no regimento. Quirino era a pessoa mais responsável e o foi pelo menos nominalmente, até o levante. Mas na realidade foi o cabo Juvêncio quem passou a dirigir a célula e o organismo aliancista.

Agora, na sala apertada, ouve o informe daquele camarada vindo do Sul. O homem fala de coisas que ele conhece, do seu regimento e suas palavras não correspondem à realidade. Há evi¬dente exagero no que ele está dizendo. Juvêncio fita Quirino, seria ele o responsável por tais afirmações? Ou seria o próprio Tadeu, para melhor impressionar os homens? Se assim o fosse não era justo, não ganharia nada escondendo dos companheiros a verdadeira situação. Eles tinham força no regimento, muitos cabos e sargentos estavam com eles, mas não eram tantos como o homem dizia. Juvêncio conhecia bem os oficiais e não sabia que mais de metade simpatizasse com a Aliança. Ao contrário, sabia da força dos integralistas.

O homem terminava o informe. Dizia que eles não deviam pro¬vocar o levante. Mas se os soldados e cabos, insatisfeitos com a situação que só tendia a agravar-se, mostrassem tendências à revol¬ta, então eles deviam apoiar. Dizia de tal modo que parecia, nas entrelinhas, desejar o golpe.

Quando terminou, Luís, o sapateiro, que presidia a reunião, franquiou a palavra. Houve um silêncio cheio de olhares de um para o outro. Afinal Quirino tomou a palavra:

— Todos ouviram o informe do companheiro Tadeu. Êle expôs muito bem a situação. Todos nós aprendemos muito e sabemos agora como devemos agir. Eu também acho que a coisa está madura e que, se quisermos, levantaremos o regimento e domina¬remos o Estado em dois tempos… Acho o informe dele formidável… O companheiro mostrou que é mesmo um dirigente…

Calou-se, os outros apoiavam com as cabeças. Luís disse:

— Se ninguém quer mais usar da palavra, então…

— Eu quero falar, camaradas…

Todos olharam para Juvêncio. Agnaldo apertou as sobrancelhas, esse cabo era um bocado impertinente…

Juvêncio começou a falar. Disse que havia aprendido muita coisa com o informe. Porém que o companheiro Tadeu estava mal informado quanto a Natal.

— Pelo menos no regimento não é essa beleza que ele diz… Temos força, é verdade. Mas eu acho que o companheiro deve ter recebido uns informes baluartes. Esses oficiais nunca vi por lá… Não é verdade que os cabos estejam todos com a gente… Menos ainda os sargentos… Demais eu não entendi direito: é ou não é pra gente fazer o levante? O companheiro não explicou direito… Se é para a gente levantar o regimento, então vamos tratar disso para fazer uma coisa bem amarrada… Como o companheiro falou não é peixe nem carne…

Agnaldo não estava gostando. Mas a Juvêncio pouco se lhe importava. Assim ele compreendia sua lealdade para com o Par¬tido: abrir o peito e dizer o que sentia. A atmosfera na sala voltava a ficar abafada. A luz vermelha do candeeiro alongava as sombras dos conspiradores.

2

Quando chegou em casa naquela noite, cansado da reunião, encontrou Lurdes passando mal. Ela era fraca, o rosto caboclo, de longos cabelos negros e escorridos, tinha uma certa palidez e a gravidez aumentava o seu ar doentio.

— Tu demorou… Tou que não me agüento…

Zangou-se de repente, trazia aquela irritação consigo, descar¬regou na mulher:,

— Besteira… Deixa de luxo que pobre não tem isso…

Ela não disse nada mas o olhou com os olhos espantados, uma ponta de tristeza no canto do lábio. Êle logo se arrependeu:

— Não te importe… Tou cansado pra burro… Pensando num bocado de coisa… Que é que tu tem?

Estava novamente solícito e carinhoso. Os olhos — ele os tinha travessos, olhos de criança risonha e brincalhona — estavam cheios de atenção e de remorsos. Deitou-se ao lado dela, beijou-a:

— Que é que a negra tem?

E repetiu aquela brincadeira de que ela tanto gostava:

— Tu é negra, ruim, escura… (ela era apenas cabocla, de traços finos, mais finos que os dele que, se bem que fosse claro, o mais claro dos irmãos, tinha bem pronunciadas ainda as marcas do mestiço). Tu pegou num branco mas tem que andar direita…

Ela ria:

— Tou ruim, de verdade… Já vomitei… A cabeça tonta, não posso ficar em pé…

— Tu trabalha muito… Trabalha demais… Nóis não pode ter empregada, não sei como vai ser, tu com essa barriga estufada…

Perdeu-se em pensamentos. Como iria ser? Sempre dizia a Macedo e a Valverde:

— Comunista não deve casar…

Os outros dois eram solteiros, se morressem pouco importava. Êle tinha mulher e ela levava um filho na barriga. E nem casado era, achara que não devia casar, era um preconceito. Só na prisão, ao contacto com outros companheiros, compreendeu que o precon¬ceito era não casar e casou-se por procuração. Lurdes rompera com a família para vir morar com ele. O namoro nascera numa tarde de sol, ele de folga, alinhado na farda bem passada, ela de azul, vindo do trabalho no atelier de costura. Êle a seguira pelas ruas dizendo piadas, localizara a casa onde ela morava, viera à noite passear por ali. Lurdes estava na janela, ria para ele, depois saíra para dar uma volta no passeio com umas amigas. Êle se aproximara, puxara conversa, voltara na outra noite.

Quando deu de si estava apaixonado. Sonhava com ela pelas noites, parava no quartel para espiar o retrato que ela lhe dera e que ele colocara na caderneta. Ainda não havia conversado com Quirino, estava metido no golpe para a "ditadura republicana". Mas casar era contra seus princípios. Um comunista não faz con¬cessões a esses preconceitos. .. explicara a Lurdes entre beijos. Recordava o livro de Maria Lacerda Moura, não sabia que nem ela o fora nem ele era ainda, naquele tempo, comunista. Lurdes previa a oposição da mãe. Era órfã de pai, vivia com a mãe e os irmãos. Fugiu de casa certa noite. Juvêncio, que havia desarranchado e alugado uma pequena casa, dera-lhe um verdadeiro ulti¬mato:

— Se tu quer, é bom decidir…

Ela passara os primeiros dias chorando. Mandara recados para a velha, não obtivera resposta. Soubera, no entanto, por uma vizinha que a velha proclamara em voz alta:

— Só me entra aqui, nos batentes dessa casa, com a certidão de casamento… Se não, pra mim não passa de uma puta…

A velha era disposta e, quando o marido morrera, se atirara ao trabalho sem vacilações. Lavava roupa para fora, trouxas enor¬mes, que o filho mais moço, de onze anos, levava às casas dos fregueses. No entanto não manteve aquela opinião. Quando Juvên¬cio foi preso e a filha ficou nos dias de ter menino, ela deixou o orgulho de um lado e a foi procurar. Xingou-a muito, é verdade, mas quando chegou a ocasião do parto e Lurdes não pôde mais ir ao Hospital levar comida para Juvêncio, ela botou o xale na cabeça, marmita no braço e tomou o caminho do Hospital Militar onde Juvêncio, preso, restabelecia-se lentamente. Êle se admirou de vê-la. Seus olhos burlões a fitaram e riu seu sorriso de menino travesso:

— Vosmecê por aqui… Ela não deu o braço a torcer:

— Vamo ver se quando tu sair toma vergonha e casa. Agora é pai de filho…

— Nasceu? Homem?

— Mulher pra sofrer como eu minha filha…

Sentou-se no tamborete frio:

— Tu não tem mesmo juízo… Pra que tu se meteu nessa revolta?

— Para melhorar a vida da gente que é pior que a de cachor¬ro… Vosmececê acha que fiz mal?

Ela o fitou de frente:

— Não.

Foi assim que fizeram as pazes.

Mas, nos meses que precederam o levante, muitas vezes Juvên¬cio pensou no que seria da mulher se ele morresse de repente. Voltar para a casa da mãe ela não podia. Mesmo que a velha não fizesse objeções, Juvêncio conhecia Lurdes, possuía um certo orgulho obsti¬nado, não voltaria. Com aquele filho no bucho não poderia tomar costuras, e com que iria pagar parteira, alimentar a criança quando nascesse? Os companheiros sem dúvida a ajudariam. Mas o dinheiro era escasso, o Partido lutava com dificuldades imensas…

"Comunista não deve casar…", dizia ele a Valverde e Macedo nas horas de conversas no quartel. Pode morrer de uma hora para outra, naquela vida ilegal, num conflito com a polícia, num comício onde saísse bala, numa revolta como a que eles preparavam. No entanto não se arrependia nem um momento de ter trazido Lurdes para junto de si. Ela lhe dava ânimo e confiança. Quando chegara ainda rezava, ainda freqüentava a igreja pelos domingos. Mas fora deixando, a nova fé de Juvêncio passou também a ser a sua, lendo os materiais que ele trazia para casa, silenciosa e pouco perguntadeira, compreendendo que ele podia ter seus segredos. Aliás, ele, desde que novamente se ligara ao Partido, lhe dissera:

— Tem coisa que nem a tu eu posso dizer… E é melhor tu nem me perguntar…

Lurdes fizera-se muito amiga do sapateiro Luís, que por vezes aparecia. Preparava um café bem quente para o careca, pedia notícias da esposa e dos filhos, ensinava-lhe receitas de chás para resfriados e catarros das crianças. Juvêncio atalhava a conversa com seus modos bruscos mas ela sentia a ternura escondida atrás daquelas palavras rudes:

— Dá o fora que agora a conversa é séria…

Ia saindo, por vezes puxava a orelha dele, Juvêncio repelia a sua mão, mas o seu dedo mínimo fazia-lhe uma carícia pequena e doce no pulso, ao mesmo tempo.

Deitado na cama, Juvêncio fita a face pálida da mulher. Os cabelos negros têm o cheiro de um óleo barato, solto sobre o traves¬seiro. Aquilo tudo era fraqueza, pensava ele. Grávida como estava, ela devia se alimentar melhor, mas cadê o dinheiro para comprar comida?

Dedicava-lhe pouco tempo, ela devia ressentir-se disso também. Pobre Lurdes, que seria dela quando a revolta estourasse? Não devia tê-la tirado de casa, trazido para a sua vida que não lhe pertencia… E pusera-lhe um filho na barriga. Sorria ao pensa¬mento do filho que ia nascer… Seria homem, desde cedo apren¬dendo com o pai a não suportar as injustiças, a se revoltar contra as misérias desse mundo. Êle o ensinaria a fechar o punho e a dar vivas ao Partido. Como o filho de Luís, o mais moço que responde quando lhe perguntam o que ele é:

— Comunista… — com sua voz gaguejante no soletrar da palavra longa.

Lurdes geme baixinho. As ânsias de vômito a assaltam nova¬mente. Juvêncio, que voltara a pensar na reunião, a rememorar o informe de Agnaldo, se curva para ela:

— Que é?

A palidez aumenta no rosto da mulher. Ela vira a cabeça para o chão, ele corre, traz o urinol, ela vomita. Que será dela se ele morrer de uma bala, se acabarem com ele no levante? Nem por um minuto sequer aquele pensamento o faz vacilar. Teme por ela e se preocupa, mas sem que isso, em nenhum instante, faça-o pensar em desistir.

Sustenta a cabeça de Lurdes, coloca-a sobre o travesseiro. Ela cerra os olhos:

— Tou tonta…

— Vou fazer um chá…

Amanhã precisa falar com aquele tenente da "ditadura repu¬blicana". A conspiração morrera inteiramente, quem sabe se ele não toparia a Libertadora?

Acende o fogareiro. Do quintal, com o vento da noite, chega um cheiro de terra. E ele se recorda, subitamente, do sertão, da fazenda, de sua casa, com o terreiro na frente e o curral um pouco adiante. E pensa em sua mãe, na velha Jucundina. Ela gostaria de Lurdes, se a conhecesse… E do Partido, será que ela gostaria? Bastava que fosse uma coisa dele, ou de qualquer dos irmãos, para ela gostar. Seu irmão José era cangaceiro de Lucas Arvoredo e jamais Juvêncio ouvira da velha Jucundina uma palavra contra o bando de jagunços que levara seu filho.

A voz de Lurdes chega do quarto:

— Nenén! Nenén! Não precisa mais… Já estou melhor…

3

Também ele poderia a estas horas estar no grupo de Lucas, vestindo a roupa de couro com que os jagunços andavam pela caatinga, em vez da farda de cabo do Exército. Quando fugira de casa, seu pensamento não era outro senão buscar Lucas Arvoredo, apresentar-se a ele, pedir um lugar no seu bando. Ouvira falar que Lucas andava por perto, levou dias e dias a procurá-lo pela caatinga. E quando concluiu que não era verdade, resolveu buscá-lo onde ele estivesse. Disseram-lhe, numa feira, que o bando se encon¬trava num Estado vizinho e eis aí por que Nenén, em vez de entrar para a Polícia Militar do seu Estado, assentara praça na de outra terra. Porque, buscando Lucas, ele se aproximara do mar, após atravessar as fronteiras do seu Estado natal. Lucas Arvoredo desa¬parecera como por encanto, devia estar açoitado no fundo do sertão ao mesmo tempo que as notícias o assinalavam em cinco ou seis partes diferentes. Aliás ele usava por vezes dessas táticas: mandava grupos de cangaceiros, de dez e doze homens, assaltar fazendas em uma direção, grupos que arrastavam atrás de si as forças policiais, enquanto o grosso do bando entrava numa cidade importante.

Seu irmão José partira porque a visão dos cangaceiros, da sua bárbara e ruidosa alegria, da sua liberdade defendida a tiros todos os dias, fora irresistível. Como poderia ficar na fazenda depois de tê-los visto? Já antes partira Jão, o irmão mais velho. Não via futuro na roça, naquele pedaço de terra que o pai lavrava. E tivera aquela briga por causa da filha de Ataliba. Juvêncio, quando desses acontecimentos, era um rapazola apenas. Mas o desejo de ir embora já botara sementes em seu coração ante o exemplo dos irmãos. Quando partia pelas manhãs para a roça, a foice ao ombro, era como um escravo que levasse cadeias nos pés. Aquela terra não era deles, não lhes pertencia, e mesmo o seu direito sobre as plan¬tações de mandioca e milho poderia ser discutido pelo coronel a qualquer momento. O dia de trabalho gratuito para a fazenda parecia-lhe demasiada exploração. Não bastava a obrigação de vender os produtos da roça ao coronel, pelo preço que ele fixasse, e ter de comprar no armazém tudo de que necessitasse? Ouvia histórias de tomadas de terra, de crimes, camponeses matando fazendeiros, fugindo pelos matos, outros condenados a largas penas, indo para Fernando de Noronha. Uma sede de vingança e de justiça foi o que o impulsionou. Lucas Arvoredo, com seu bando de jagunços, parecia-lhe o destemido vingador da gente sertaneja. A razão estava com ele. Se haviam de trabalhar dia e noite, para uma fazenda, nascer e morrer em cima da enxada, sem nenhuma outra perspectiva, então nada restava a não ser largar tudo, tomar de uma repetição, e ir cobrar nas fazendas e nas cidades o que — segundo Nenén — lhes era devido. Teria sido cangaceiro se encontrasse Lucas na sua ansiosa busca pela caatinga. Despertava nele, como em outros filhos do sertão, aquela revolta sem direção contra a vida que levavam. Se o beato Estêvão já houvesse iniciado sua pregação quando da sua fuga, Juvêncio seria talvez um dos seus homens. Ali, na caatinga, a revolta contra a fome levava os homens ao cangaço ou ao misticismo desesperado. Mas Nenén, em vez de encontrar o bando de Lucas, deparou com a estrada de ferro e o apito do trem o tentou, meteu-se num vagão, desembarcou na capital. Tinha então dezoito anos, um pouco menos. Entrou para a Policia Militar — destino quase obrigatório dos camponeses recém-chega¬dos — quase por acaso. Envolveu-se numa briga de rua, ao lado de um cabo e um soldado da polícia, contra uns inspetores de trânsito e guardas-civis. Não sabia o motivo da briga mas viu que eram quatro contra dois. A verdade é que o soldado e o cabo não não tinham razão, estavam bêbedos, fazendo tropelias, os guardas tiveram que intervir e os inspetores chegaram para ajudar. A coisa só terminou com a intervenção da patrulha da Polícia Militar que levou todo mundo preso: cabo, soldado, guardas, inspetores e o rapazola que já estava sangrando.

O comandante da Polícia Militar orgulhava-se dos seus soldados, costumava dizer que não via homens para eles na cidade, nem mesmo os soldados do Exército, sequer os marinheiros da Escola de Aprendizes. O comandante da guarda-civil enfureceu-se com a prisão dos guardas, metidos no xilindró da Polícia Militar, alvos dos desaforos dos solduados. O incidente criou um pequeno caso político e a melhor maneira que o governador achou para sanar tudo foi mandar passar uma esponja sobre os acontecimentos. Os guardas e inspetores foram restituídos à sua corporação. O cabo e o soldado receberam uma descompostura meio sorridente do comandante. Sobrava Juvêncio. Enquanto preso fizera-se amigo de soldados e cabos, contavam sua história, sua participação na briga, pelos pátios do quartel. O comandante chamou-o:

— Por que se meteu na briga?

Um sargento o havia industriado para as respostas:

— Era dois soldado da Puliça contra quatro guarda… Num queria ver soldado apanhá…

— Gosta da Polícia Militar?

— Inhô, sim…

O comandante tinha uma especial estima por aqueles sertanejos. Eram bons soldados, valentes, os únicos que serviam para a perseguição aos cangaceiros na caatinga, incapazes de roubar, cheios de um certo sentimento de honra difícil de encontrar entre os homens recrutados na cidade.

— Quer ser soldado?

— Queria, inhô, sim…

Estava com a farda há pouco tempo quando estourou a revo¬lução constitucionalista de São Paulo. Juvêncio nada sabia de Política mas se metia nas discussões no quartel e, por uma inclinação natural, era pelos revoltosos contra o governo. Sentia-se contra a ordem estabelecida mas de maneira inconsciente e anárquica. Apesar de suas simpatias, embarcou satisfeito no navio que os levava para o Rio. Iam lutar contra os paulistas e o gosto da luta superou nele as vagas preferências pelos contitucionalistas. Ao demais haviam-lhe dito que eles iam lutar contra os italianos que queriam dominar o Brasil e escravizar os brasileiros.

Revelou-se no front! Destemido como poucos, em breve era cabo e terminou a campanha como primeiro-sargento. Entrara vitorioso na capital de São Paulo, desfilara em suas ruas, e, como sucedeu com muitos, ficou preso pela cidade, pelo seu movimento, aquela vida estuante tão diversa das cidades do Nordeste. Durante toda a sua infância e adolescência, na roça, aquele nome de São Paulo ressoara em seus ouvidos como uma palavra mágica. Para ali se dirigiam anualmente milhares de camponeses em busca de uma vida melhor. Ali havia riquezas sem conta, um mundo imensamente maior. Na Polícia Militar, com um afinco que admirava os supe¬riores, ele se dedicara ao estudo primário e lia e escrevia correta¬mente, passara na frente de muitos outros que haviam começado primeiro. No front, nos três meses que passara lutando, ganhara experiência de alguns anos e, com pouco mais de dezoito anos, sentia-se homem feito, capaz de enfrentar qualquer coisa. Aquela sua instintiva revolta não desaparecera, agora sabia de certas coisas, vivia sempre metido na eterna conspiração de cabos e sargentos de cada batalhão. Insatisfeito sem saber mesmo por quê, contra tudo e todos.

Nas antevésperas do embarque para Santos, onde o navio que os traria para o Nordeste os esperava, o sargento Juvêncio desa¬pareceu sem deixar rastos. Como os paulistas matavam, nas ruas escuras da prostituição, os soldados vitoriosos, pensaram que assim havia acontecido com ele e o comandante lamentou o fato. Gostava de Juvêncio, pensava até em conseguir um lugar para ele na Escola de Cadetes da Polícia, fazê-lo oficial.

Foi Zé Tavares, a quem ele encontrou por acaso (e a quem reconheceu apesar da farda de guarda-civil e de só havê-lo visto há uns oito anos quando Zé Tavares era trabalhador assalariado da fazenda), quem impediu que ele morresse de fome. Levou-o para sua casa, deu-lhe comida. Ficou de ver se lhe arranjava um lugar na Guarda Civil, mas não estava fácil, e Juvêncio terminou engajado no Exército. Foi quando se ligou ao Partido.

De São Paulo mandaram-no para Mato Grosso. A luta na fron¬teira, entre o Peru e a Colômbia, fervia. Um destacamento foi enviado para Letícia, sob o comando de um primeiro-tenente. Ju¬vêncio, que acabara de ser promovido a cabo devido a seus conhe¬cimentos militares aprendidos na Polícia e na luta, foi incorporado para seguir. O Partido deu-lhe uma ligação para Manaus mas eles nem passaram em Manaus, foram pelo interior. O sertão ia ficando cada vez mais distante na memória de Juvêncio. No entanto, por vezes se recordava da roça, da casa, da tia louca, do velho Jerônimo com seu grito de boiadeiro. E em meio à selva amazônica, quando, com a chegada da noite, os corações se apertavam naquele medo ao desconhecido, ele, repetidas vezes, encontrava-se pensando nos seus. Quando rapazinho, na fazenda, com a rebeldia que o lançara em busca de Lucas Arvoredo para entrar em seu bando, pensava que nada de mais desgraçado podia existir no mundo que a caatinga de secas e de fome. Na Amazônia, no coração da selva, ao lado dos grandes rios, vendo o povo nu, camponeses sem ter o que vestir, cortando os seringais, compreendia que a miséria era comum a todos eles, era a única coisa que existia com fartura em toda parte.

4

O primeiro-tenente morreu de febre. O sargento Vicente e alguns soldados morreram de flechadas dos índios. Cada dia caía um, morto pelos índios invisíveis na floresta, ou derrubado pela febre. O impaludismo habitava ali, mais tremendo ainda que o da caatin¬ga, e eles pareciam abandonados do mundo. O segundo-tenente, agora no comando, enviava rádios sobre rádios. Nem uma única resposta, era como se houvessem esquecido completamente aqueles soldados que guardavam a fronteira. Os índios vinham pela noite, roubavam os poucos mantimentos que restavam, destruíam e mata¬vam. O impaludismo estava presente dia e noite. Quando o rádio-telegrafista morreu, o segundo-tenente se apavorou. Resolveu ir com alguns homens em busca de socorro. Ficou um sargento no comando. Restavam uns vinte homens. O tenente partiu pela madrugada, levava seis homens consigo, grande parte das munições e das latas de conserva. A selva o tragou para sempre, nunca mais tiveram notícias.

A ordem era gastar poucos tiros, não tinham muitos e fazia-se necessário caçar para economizar a comida. Durante o dia, na margem do rio, os soldados pescavam. Mas sal já não havia e a comida ficava insossa e sem graça. Os índios, ante a timidez da resposta dos soldados, tornavam-se mais agressivos e chegavam cada vez mais perto. A estação de rádio escangalhada provava-lhes diariamente que eles estavam separados do resto do país. Quando o fumo faltou eles pensaram que iam enlouquecer. Os doentes eram cada vez em maior número. Durante dias e dias esperaram a volta do tenente. Mas uma tarde um soldado, que se afastara para caçar apareceu com umas perneiras, um quepe e a notícia de que havia ossos espalhados em tôrno de um lugar onde existira uma fogueira. O desânimo tomou conta dos homens.

Uma noite, quando os índios estavam bem perto, o sargento foi tomado de uma crise de loucura. E ordenou que todos atacassem. Mataram alguns índios mas ficaram reduzidos a doze homens sob o comando do cabo Juvêncio já que o sargento fora o primeiro a morrer, saíra correndo para o lado onde os índios se encontravam.

O medo chegava com a noite. As grandes árvores da selva, tão diversas da vegetação de arbustos da caatinga, escondiam mistérios mortais. Os passos dos índios eram mais leves que os dos animais e por detrás de cada uma daquelas árvores a morte podia estar açoitada. Os soldados, os sãos e os doentes, se reuniam num grupo denso. O frio dos impaludados era terrível mas tinham receio de acender fogueiras que mostrassem sua localização aos silvícolas. Juvêncio pensava que iriam morrer todos ali e sentia um ódio profundo pelo abandono em que os haviam deixado.

A falta de fumo desesperava mais que a de sal e de feijão e farinha. Comiam carne de caça, chamuscada nas brasas, os corpos se enchiam de feridas. Os mosquitos já não incomodavam. Nos primeiros tempos tinham sido um horror, os homens de braços e pernas inchados da picada do potó. Mas se haviam acostumado e agora não ligavam. Pior eram as flechas dos índios, aquele silvo ouvido tarde demais, quando já era impossível furtar-se.

Juvêncio refletiu a noite toda. No outro dia reuniu os homens. Sãos e doentes, dispensou apenas dois que não se podiam mover.

Foram derrubar árvores, fizeram uma paliçada em tôrno do acam-pamento. Dividiu os tiros que ainda restavam, escalou os homens em turmas para caçar animais fora da paliçada. E começou a resistência organizada aos ataques dos índios. Os homens obede¬ciam-lhe mais pela sua capacidade e bravura que mesmo pelas divisas de cabo. Ali o respeito havia desaparecido. E a fuga (assim consideravam) do segundo-tenente não havia concorrido para que divisas e dragonas pusessem respeito. Mas com Juvêncio era diferente. Êle era o primeiro a se expor, não se furtava ao trabalho, ia caçar com os grupos designados, passava noites acordado, os olhos vigilantes nas frestas da paliçada. Quando os índios se apro¬ximavam — os ouvidos agora mais experimentados já distinguiam os sutis ruídos de seu passo — ele tratava de localizá-los e não deixava que se perdessem balas. Passou cinco dias sem ter um morto, durante três noites os índios não atacaram. Alguns soldados pensavam que eles haviam desistido e já queriam sair, abrir cami¬nho em busca de socorro. Mas Juvêncio adivinhava, no inesperado recuo dos índios, a preparação de um ataque em regra. E prepa¬rou-se para ele. Reforçou a paliçada, mandou cavar trampas em tôrno do acampamento. E quando os índios vieram, como ele previra, foram recebidos com um tiroteio violento. Afundavam-se nas trampas, quebravam pernas, caíam baleados, os homens já haviam ganho experiência e não desperdiçavam bala. Ainda assim os índios chegaram junto à paliçada e a tentaram escalar. Morreram três soldados na luta mas eles conservaram a posição e puderam, pela primeira vez desde que estavam ali, capturar prisioneiros, índios que haviam caído nas trampas. Mataram-nos porque não os podiam alimentar e também por que estavam com ódio.

Quando o socorro chegou, seis dias depois, Juvêncio, com cinco homens, dois dos quais feridos, ainda sustentava a posição.

5

O sapateiro o mandou chamar, com urgência. Estava com dois outros companheiros,ambos da direção. Agnaldo já havia Partido de volta, novos dirigentes tinham passado por ali, sentia-se que o momento se aproximava.

A conversa foi na casa do sapateiro, as janelas trancadas, a porta encostada, eles silenciando a cada ruído de passos que ouviam na rua. Um dos outros dirigentes, comerciário, falava:

— Estão demitindo os guardas-civis em massa… A situação se agravou ao máximo… É possível que os guardas se revoltem…

— Não creio… — disse Juvêncio.

O outro fez um sinal que ele esperasse:

— Tem mais… E é com vocês do 21. Vão começar as trans-ferências de cabo e sargentos e as baixas de soldados… Nós esta¬mos seguramente informados de que quase todos os sargentos vão ser removidos. E os cabos também. Você inclusive. Nossas notícias são concretas… E se isso acontecer…

— Levantar?

— Acho que eles mesmos se levantarão…

Quirino estava também presente, fez um relato da situação no quartel. Juvêncio não teve nada que discutir, o músico falava a verdade, a situação chegara a um ponto morto. Os cabos e sar¬gentos só esperavam a ordem. E, se começassem as transferências, não havia quem os pudesse conter…

O companheiro continuava:

— Estamos informados de que as transferências começarão depois de amanhã…

Juvêncio fazia cálculos mentalmente.

— Mesmo que a gente queira não pode impedir que eles se levantem. E se a gente não apoiar, a Libertadora se desmoraliza…

O outro concordou com um grunhido. Parecia já ter pensado naquilo tudo, pesado todas aquelas possibilidades. E, quando falou, foi para perguntar em meio ao silêncio:

— Que é que vocês acham da noite de 23?

E acrescentou:

— Recife se levantará em seguida. E depois todo o resto do país. Posso informar aos companheiros que o general Luís Carlos Prestes assumirá o comando da revolução…

A atmosfera era tensa, Juvêncio sentia os nervos em ponta. Estava com os lábios apertados, os olhos pequenos, mas conservava a calma e sentia como se tivesse o coração gelado. Um dia pensara em ser cangaceiro. Já aprendera apesar do pouco que sabia ainda, que aquilo seria uma revolta sem solução. Os cangaceiros não iriam resolver os problemas tremendos do sertão. Só o governo popular revolucionário que a Aliança pregava: "Terra para os camponeses." Juvêncio gostava de rabiscar nos muros do quartel a consigna da Aliança: "Pão, terra e liberdade." Mais que o pão e a liberdade era a palavra terra que tocava seu coração sertanejo. Via a alegria no rosto dos colonos, dos meeiros e dos trabalhadores quando aquelas terras que eles lavraram lhes fossem entregues, com papel de cartório e tudo, como pensava Juvêncio.

O companheiro desenrolava detalhes, explicava como deviam agir, dava as consignas políticas.

— Lembrem-se de que a revolução não é comunista. É da Aliança e a Aliança não é o Partido…

As últimas palavras rolavam na sala:

— Os companheiros Quirino e Juvêncio ficam desde agora em ligação permanente com a direção do Partido…

Juvêncio lembrava-se de ferozes discussões entre cabos e sar¬gentos, perguntava:

— O que é que a gente faz com os oficiais?

— Evitar mortes… Não somos assassinos… É claro que o momento é que vai indicar como se terá que agir. Mas nada de violências… Aos que se renderem, garantir as vidas. Vocês serão responsáveis perante o Partido pelo que suceder…

Na rua, Juvêncio via Quirino andar com seu passo pesado. Era o músico quem ia comandar o levante. Em voz baixa, Quirino começou a rememorar as ordens da direção. Juvêncio ia esclare¬cendo, notava que nem tudo o outro compreendera. Mas naquele momento não podia conceber que a revolução fosse dominada. Para ele a causa era tão justa e bela que a sua vitória teria que vir fatalmente. E com paciência ajudava Quirino na análise das pa¬lavras do dirigente.

Chegaram na rua onde o cabo morava. Quirino estendeu-lhe a mão, estavam próximos à casa de Juvêncio:

— Té manhã…

Juvêncio olhou quase com raiva:

— Quem lhe disse que vou pra casa? Agora o lugar da gente é no quartel.

O outro concordou:

— Vamos…

A cidade dormia, as casas fechadas, mas no quartel havia uma onda de boatos, nos dormitórios os homens cochichavam. Quando Juvêncio e Quirino chegaram, cabos e sargentos saltaram dos catres, vieram cercá-los:

— Que é que há?

Macedo anunciava:

— Tão dizendo por aí que vão transferir a gente…

Outra voz confirmava:

— Um tenente garantiu… Disse que é coisa resolvida…

— Nós se levanta… — falou um sargento. Dirigiu-se a Ju¬vêncio: — O que é que tu acha?

— Se vocês se levantarem eu estou com vocês… Mas não se faz um movimento só com querer… É preciso acertar tudo…

As primeiras claridades da aurora rompiam sobre o quartel e a cidade de Natal.

6

Era um pressentimento, nada mais além disso. Mas, apenas soube da notícia das primeiras transferências, alguma coisa começou a comprimir seu peito, Lurdes sentia-se como se tivesse um peso sobre o coração. Naquela rua moravam várias famílias de cabos e sargentos, amásias de soldados, e aquele era o único comentário de todas as casas. Mulheres que temiam ser abandonadas — soldado bota casa e mulher nova em cada cidade onde serve… — mulheres que arrumavam as bagagens para a viagem que se anunciava próxima. O prestígio de Juvêncio refletia-se sobre Lurdes e as esposas e amásias dos primeiros transferidos corriam à sua casa, numa pequena romaria, querendo saber de mais notícias, que impressão ela tinha dos acontecimentos, que ia ser delas… Algu¬mas pediam que ela interferisse junto aos amantes para que não as largassem, mostravam os filhos pequenos:

— Não é por mim, é pelos menino, se não vai crescer sem pai, como filho de rapariga…

Sabiam todas como Juvêncio era ouvido e respeitado:

— Peça a seu Juvêncio… Diga pra ele falar com Manuel..

Outras não o chamavam de Juvêncio, davam-lhe o apelido fa¬miliar para assim ainda mais comover Lurdes:

— Seu Nenén é tão bom… Se ele disser a Antônio pra não me largar, ele não faz… Pra ele é Deus no céu e seu Nenén na terra…

Sucediam-se na distante casa suburbana. Umas tinham vindo do outro extremo da cidade, arrastando suas chinelas, os vestidos pobres, os filhos pela mão. Algumas já vinham se despedir:

— A gente não sabe quando vai. Talvez não tenha mais oca¬sião… Diga a seu Nenén que eu agradeço por tudo…

A muitas delas ele não havia feito nenhum favor mas todas e todos se sentiam obrigados a ele, era o seu jeito, a sua palavra nunca em vão, o seu sorriso terno de criança.

Lurdes consolava, prometia, ajudava, sentia-se cansada com a barriga de oito meses estufando o vestido, as pernas inchadas, o rosto pálido. E aquele aperto no coração como se alguém o com¬primisse. Uma tristeza que vinha das despedidas e do temor das mulheres, mas que vinha também de algo indefinido, sem expli¬cação. As mulheres sabiam perfeitamente que ela jamais havia saído de Natal. Mas ainda assim perguntavam-lhe sobre as cidades para onde os maridos e amásios tinham sido removidos. De algu¬mas Lurdes tinha imprecisas informações, por elas Juvêncio pas¬sara em suas viagens e delas lhe falara nos tempos de namoro. Porém alguma coisa fazia Lurdes pensar que nenhuma chegaria a viajar, que pior do que imaginava as que temiam ser abandonadas, um tempo ruim ia se iniciar para todas elas. Não tinha idéia nenhuma formada, era apenas um pressentimento, uma tristeza sem motivo nascida no fundo dela mesma, como que adivinhava tudo que iria suceder.

A criança movia-se na sua barriga. Ela sentia o minúsculo pé bater-lhe contra as paredes do seu ventre como se o menino já quisesse nascer, olhar a luz do mundo, viver a vida dos homens. As mulheres iam e vinham, a manhã tardava a passar. Ela esperava Juvêncio numa impaciência que aumentava à proporção que o sol caminhava para o meio-dia. Manhã de lágrimas e projetos. A tristeza, era geral, de umas sem saber o que lhes ia suceder, de outras — cuja vida se normalizara em Natal, casa posta, móveis, meninos na Escola Pública — tendo que recomeçar numa cidade desconhecida. Lurdes ouvia umas e outras pacientemente, sentando-se de quando em vez na cadeira espreguiçadeira que Nenén comprara quando a sua barriga começara a aumentar. Esperava que ele chegasse, numa ansiedade. E ao mesmo tempo pensava que o mais certo era ele não lhe dizer nada, se alguma coisa estivesse sendo preparada. Não era segredo dele, Lurdes com-preendia. E se ela soubesse, será que choraria e se lamentaria, será que se dependuraria no pescoço dele pedindo-lhe que não o fizesse?

Em Lurdes nada é consciente nem resulta de uma análise ou de uma profunda convicção. Tudo nela é instintivo, nasce de uma intuição. Nenén estava metido nessas coisas, correndo todos aqueles riscos, porque desejava mudar a vida dos pobres. Ela achava que isso valia a pena mas principalmente tinha uma certeza de que ele não se envolveria em nada que não fosse justo e correto. Sobre muita gente ele tinha influência, porém sobre ninguém tão grande como sobre a companheira.

Êle chegou com sono. Há três noites que não dormia, apare¬cendo em casa rapidamente, saindo logo, numa atividade que Lur¬des não procurava explicar. Alguma coisa extraordinária se pre¬parava, isso ela sentia no ar e no coração. Juvêncio estava silen¬cioso e preocupado, seu riso tão franco era forçado, não chegava a desanuviar totalmente seus olhos nem a liquidar todas as rugas de sua testa. Chegou, comeu, atirou-se na cama. Lurdes veio e deitou-se a seu lado.

Com a cabeça fora do travesseiro, como era o seu jeito de dor¬mir, ele espiava de baixo a barriga enorme da mulher. Chegaria a ver aquele filho? Se não o visse nunca, se jamais voltasse a fitar a face pálida de Lurdes, desejava que eles soubessem que o pai e marido havia morrido pelo bem deles, para que no futuro não fossem tão desgraçados quanto agora. Eles e todos os demais pelas cidades e pelos sertões, esses antes de tudo porque eram os mais pobres e sofredores, aqueles cuja dor Juvêncio sabia pesar e medir. Suspendeu a cabeça, lia nos olhos de Lurdes — Lurdes de lábios fechados para perguntas — uma interrogação ansiosa. Mas não lhe podia dizer, nem na mulher devia confiar, não era sua vida nem sua sorte que arriscaria, era a vida de muitos, a sorte da revolução. Lurdes era boa, dedicada e firme, mas "o segredo não era dele". Sorriu para ela, pinicou o olho num gesto carinhoso, sentiu o.esforço que ela fazia para rir. E para não perguntar. "Mulherzinha valente", pensou.

O sono pesava-lhe nas pálpebras, sono de três noites seguidas. A ordem que ele tinha era descansar naquela tarde, dormir, estar preparado para a noite. O embarque dos cabos e sargentos já estava marcado. Chegara o momento. Ainda a olhou uma vez, abriu a boca para falar, fechou os olhos. Foi um sono pesado, durou toda a tarde e quando ele despertou as primeiras sombras entravam pelas grêtas da janela, o quarto estava envolto numa penumbra morna e triste. E Lurdes continuava a seu lado, velando seu sono, a barriga sobrando para cima, a face angustiada.

Saltou da cama, foi molhar o rosto na torneira dos fundos. Lurdes ouvia o ruído da água nas mãos de Juvêncio, levantou-se com esforço, dirigiu-se para a cozinha. Esquentou o café, enquanto ele vestia o dólmã onde se destacavam os galões de cabo. Êle entrou na cozinha, o cabelo, de onde escorria água, ainda despenteado:

— Tenho que sair logo… Vai demorar?

— Tá quase pronto…

O pão já estava na mesa, ele começou a passar manteiga num pedaço. Via a toalha com manchas de café, o guardanapo, o paliteiro que Valverde lhe dera de presente. Sentou-se na cadeira de palhinha furada pensando que talvez aquela fosse sua última refeição em casa e olhou todas as coisas com carinho e saudade, como numa despedida. Lurdes servia o leite e o café.

— Hoje teve aqui as mulheres de quase todos que foram trans-feridos…

Juvêncio a olhou de soslaio, iriam começar as perguntas? Era como um duelo onde os adversários se estudassem. Mas ela apenas acrescentou:

— Maria, de Antônio, tá com medo que ele não leve ela… Tem três filhos, a pobrezinha… E Elvira…

— Quem é?

— Aquela mulata gorda, amiga de Manuel… Também…

— Que é que eu posso fazer? — achava aquele medo tão absurdo e sem motivo diante do que ele sabia, do que se preparava, que não encontrava o que dizer.

— Elas quer que tu peça a eles… É pra levar elas…
Juvêncio olhou a mulher, de pé ao lado da mesa, cansada e abatida. Por que ela lhe dizia essas coisas se ele tinha certeza de que Lurdes não acreditava na viagem dos homens, se ela sabia que alguma coisa ia se passar? Sabia, ele não se enganava. Ela adivinhava, lia nos seus olhos. Não queria perguntar, fazia bem, ele tampouco podia responder. Achou que devia dizer alguma coisa:

— Diga a elas…

Mas as lágrimas desciam pela face de Lurdes, e ela apertava os lábios para não soluçar. Êle não continuou. Que adiantariam aquelas palavras que ela adivinhava mentirosas, vagas de signifi¬cado, simples palavras ditas por dizer, como quem beija uma mulher a quem não mais ama, por simples obrigação? Levantou-se, bebendo o café aos goles.

— Já tou atrasado…

Deu uns passos, voltou, passou a mão na cintura de Lurdes, sentiu o tremor que a percorria. Beijou-a:

— Não tenha medo…

E saiu rapidamente. Na rua acendiam-se as primeiras lâm¬padas elétricas.

7

De todos os feitos do cabo Juvêncio, no movimento de Natal, um ficou, sobre todos, gravado na memória dos que de qualquer maneira se viram envolvidos nos sucessos daqueles dias. E menos que um feito era uma frase, mas passou de boca em boca, e quando, nas cadeias espalhadas pelo país, nos navios e ilhas-presídios, na ilegalidade, alguém falava no nome de Juvêncio, logo relatavam a história com a qual pretendiam fixar a medida da sua calma nos momentos mais terríveis.

Sucedeu antes de que o movimento estourasse. Por volta das onze horas da noite. Quando já todos os preparativos estavam completos, o início do levante marcado para as duas horas da manhã, Juvêncio resolveu aproveitar aquelas horas para dormir, imaginando que dali por diante não lhe seria fácil encontrar tempo para deitar-se. Pensava assim acalmar também um pouco os companheiros que movimentavam-se inquietos, podendo chamar a atenção dos oficiais mais ou menos de sobreaviso.

Deitou-se, de tão cansado, dormiu. Antes pedira a Macedo que o chamasse à uma e meia da madrugada, trinta minutos antes da hora marcada. E, quando sonhava com Lurdes e o filho que teria nascido e que já falava, andava e ria para ele, sentiu-se sacudido. Abriu os olhos e saltou da cama certo que já era mais de uma e meia e que chegara o momento de agir. Olhou o relógio de pulso (comprado a prestações a um sírio) e viu que marcava doze e meia. Pensou que houvesse parado e o aproximou ao ouvido. Soava o tic-tac do relógio e Juvêncio perguntou a Macedo que o acordara:

— Meia-noite e meia?

— É…

— Há alguma novidade?…

— Bem… Haver, não há…

— E pra que diabo você me acordou? Me deixa dormir, homem de Deus…

E deitando-se novamente retornou o fio do sonho agradável, só despertou quando Quirino lhe disse ao ouvido.

— Uma e trinta e cinco…

Os outros tinham estado inquietos a noite toda, gastando energias naquele nervosismo da espera, espiando os ponteiros dos relógios baratos, indo urinar de minuto a minuto, um frio na bexiga. Apesar do calor que fazia, Valverde soprava dentro das mãos em concha, como se sentisse frio. Enquanto isso Juvêncio dormia, ouviam o seu roncar tranqüilo, um sorriso nos lábios. Mais do que tudo que ele fez no decorrer do levante, essa história ganhou popu¬laridade e servia para defini-lo. Na Ilha Grande, Valverde gostava de repeti-la com seu comentário invariável…

—Sujeito tão calmo nunca vi… Nem Tourinho…

No entanto se esta história dava a medida da calma do cabo nada dizia da rapidez de raciocínio, do senso de oportunidade, da bravura, da lealdade, do sentido de responsabilidade por ele demons¬trados no decorrer da luta. E especialmente depois, quando che¬garam as horas amargas da derrota, quando o pânico dominou os homens antes entusiastas e seguros de si.

Qualidades que novamente se revelaram na prisão, quando dos depoimentos. Assumiu a responsabilidade do movimento e nada mais disse, em resposta às perguntas e às provocações que lhe fizeram, apesar dos castigos e das torturas. O seu depoimento ficou reduzido à seguinte frase: "Nada declarou." O jovem sertanejo que fugira de casa para entrar no grupo de cangaceiros de Lucas Arvoredo, aprendia na cidade e se fazia líder de homens revol¬tados. Por vezes, na cadeia, pensava no sertão, nos camponeses, em Lucas Arvoredo e em José, seu irmão que acompanhara o jagunço. Fora o mesmo impulso de revolta, a mesma sede de justiça que o arrancara da roça. Apenas ele tivera mais sorte e em vez do grupo de cangaceiros, encontrou o Partido e a direção justa para sua rebeldia.

8

Quando os primeiros tiros espoucaram, muitos oficiais não acreditaram ainda que fosse a revolta. Houve resistência, mais séria do que eles pensavam, o sangue correu sobre os pátios e corredores do quartel. Vários oficiais já estavam presos na sala do cassino, mas alguns ainda resistiam, tendo em torno a si soldados armados de metralhadoras. Juvêncio havia ido prender o comandante do regimento que se entrincheirara numa saleta, armado com seu revólver e prometia mandar bala em quem atravessasse o corredor. Macedo fora encarregado da prisão mas como a ordem era procurar não matar os oficiais, enquanto isso fosse possível, preferiu não atirar contra a sala. Tomou as saídas do corredor e voltou. Juvêncio resolveu ir ele mesmo. Quirino assumiu o comando do regimento, a resistência diminuía. Todo o 21º B. C. estava revoltado, apenas uma companhia, sob o comando de um tenente, mantinha-se lutando, num fogo cerrado. Os cadáveres e os feridos atrapalhavam o passo dos soldados em manobras pelos pátios. Juvêncio subiu as escadas acompanhado de Macedo. Soldados guar¬davam o corredor. O comandante botava discursos para eles, lembrando-lhes a obediência que lhe deviam, o castigo que os espe¬rava pela revolta. Quando Nenén chegou os soldados já estavam começando a ficar abalados. A voz do comandante era forte, Ju¬vêncio fez-lhe justiça em pensamento:

— Bicho destemido…

Foi se aproximando ao longo do corredor, encostado na parede, os passos leves. Mas a sombra, sob a lâmpada elétrica, prolon¬gou-se além da porta, o comandante gritou:

— Quem vem lá?

Juvêncio parou, respondeu:

— É o cabo Juvêncio, comandante. Tenha calma que eu já chego…

O comandante gostava dele, sabia-o cumpridor dos seus deveres, correto, pouco dado a cachaçadas e a brigas em casas de mulheres, com uma caderneta limpa. Ao demais ouvira falar também daquelas histórias na fronteira, quando Juvêncio mantivera a disciplina em meio à selva, às moléstias e aos índios. Os tiros rareavam no quartel, apenas do pátio à esquerda vinha cerrado tiroteio. O comandante imaginou que a revolta estava abafada e que Juvêncio chegava em seu socorro. Já não ouvia no corredor o movimento dos soldados nem a voz de Macedo que lhe dava ordem de prisão.

Juvêncio voltou a andar, mas agora ia pelo meio do corredor, escondeu o revólver nas costas. Atravessou a porta, o comandante estava de pé, segurava a arma pronta para disparar. Mas não se encontrava mais em guarda. Juvêncio foi entrando, suspendendo a mão direita para continência mas de imediato a abaixou sobre a do comandante, tomou-lhe a arma, disse:

— Não adianta reagir, coronel. A revolução está vitoriosa em todo o país…

O comandante empalidecia de raiva. Os soldados se aproxi¬mavam, comandados por Macedo.

— Levem para o cassino… — E, para o comandante: — Vá sossegado, coronel, que nada vai lhe suceder… A não ser que o senhor tente fugir ou levantar os homens…

Voltou-se para os soldados:

— Se algum tentar isso, bala nele sem pena…

Desceu as escadas, correndo. Chegavam notícias de que a revolta na Polícia Militar fracassara e que ela marchava contra o batalhão. Conferenciou com Quirino e Conceição. A Guarda Civil levantara-se também, a luta se travava pelas ruas da cidade. Corriam notícias de que o governador já havia fugido para bordo de um navio, mas de nada tinham certeza. O importante era silenciar as metralhadoras da companhia que ainda resistia. Juvêncio chefiou o assalto. Valverde ia ao seu lado, exposto às balas.

— Só à unha, Nenén…

Juvêncio já o compreendera. Tinham que assaltar a posição, liquidar com aquilo quanto antes, se não, iriam ficar entre o fogo da Polícia Militar e o da companhia. Olhou para os homens que o acompanhavam. Pela porta viam o tenente no pátio, no ângulo final do muro, entrincheirado atrás de caixões, e as metralhadoras apontadas para a porta. Era um pulo, uma carreira, cairiam sobre os soldados e o tenente. Mas naquele pulo e naquela carreira muitos iam morrer. Examinou de novo a situação. Não tinha outro jeito. Virou-se para seus homens, disse:

— A gente tem que tomar aquelas metralhadoras… Quem fôr homem que me acompanhe… — e atravessou, num salto a porta, sem olhar para trás. Quando caiu, varado de balas, Valverde estava a seu lado e se curvou sobre ele. Juvêncio murmurou:

— Pra frente, filho da puta, se não, os outros recuam…

E o viu avançar, os soldados correndo, o matraquear das metralhadoras, logo depois um silêncio total que durava ainda quando ele abriu os olhos e gemeu. Depois, semi-inconsciente, foi jogado na maça, levado pelos outros. Abriu os olhos com esforço e viu que a bandeira vermelha tremulava no mastro do quartel. Sorriu antes de desmaiar de novo.

9

Por volta de uma hora da tarde o sapateiro veio visitá-lo no Hospital onde as freiras silenciosas fitavam aterrorizadas aqueles homens barbados que traziam lenços vermelhos no pescoço. Esten¬dido na cama, um braço e uma perna enfaixados um pedaço do couro cabeludo arrancado, Juvêncio ameaçava a cada momento levantar-se e sair. A freira (era ainda moça e possuía um sorriso bondoso com que suavizava as ordens que ditava) ralhava com ele:

— Fique deitado e não se mova… São as ordens do médico.

Afinal pôde mandar um recado:

— Se não vier ninguém eu me levanto e vou para o quartel.

O sapateiro veio cheio de notícias e com muita pressa. Tudo marchava bem, segundo ele, a revolta explodira em Pernambuco, onde o 29º B. C. havia se levantado às nove da manhã. Também o Q. G. se revoltara, estava chefiado pelo sargento Gregório. E em Natal tudo ótimo. Haviam constituído uma junta governamental, da qual o sapateiro fazia parte, o governador fugira, tinham reti¬rado dinheiro do Banco do Brasil para qualquer emergência, a cidade estava calma.

— E o interior?

— Já temos prefeitos em várias cidades…

— Não partiram colunas para o interior?

— Ainda não, mas estamos tratando disso…

— E o quartel?

— Tudo bem… Quirino comandando… Você trate de des¬cansar que o médico disse que suas feridas são graves e necessitam tratamento rigoroso… Depois eu volto e conversaremos mais…

Sozinho no quarto do Hospital sentia a febre crescer. Mas seus pensamentos estavam no quartel. Apesar de todo o otimismo do sapateiro. Juvêncio não estava satisfeito. Duas coisas, principal¬mente, o alarmavam. Primeiro era que a revolução não houvesse explodido em todo o país como ele esperava e lhe haviam dito que aconteceria. Depois a demora da partida das colunas de soldados para o interior. Temia os homens no quartel sem ter o que fazer. Lutava contra a modorra da febre, tentando pensar, raciocinar. Pareceu-lhe em certo momento ouvir a voz de Lurdes no corredor. Prestou atenção, forçando o ouvido, mas era apenas o silêncio e ele pensou que o delírio chegara. Só depois soube que Lurdes fizera tudo para vê-lo e as freiras, cumprindo as ordens do médico, não permitiram.

O sono, apesar de inquieto e leve, fez-lhe bem. Acordou ouvindo novamente vozes no corredor. Mas desta vez distinguia perfeita¬mente o vozeirão de Macedo e o acento incisivo de Valverde. A freira discutia, escutava Macedo:

— Entro de qualquer maneira, dona… É melhor a senhora sair da frente…

E logo depois estavam no quarto e paravam diante dele. Ju¬vêncio sorriu, levantou o braço enfaixado.

— Me maltrataram…

— A gente pensou que tu tinha morrido… — disse Valverde. E acrescentou: — Morreram sete naquele ataque…

Juvêncio quis perguntar quais, mas ficou calado, que adiantava naquela hora saber os nomes dos que haviam morrido? Perguntou por Lurdes:

— E Lurdes?

— Tá cozinhando prós soldados. Ela e as outras… Quis vim te ver, as freiras não deixaram… Não queriam deixar a gente também… Foi preciso…

— Ouvi a conversa no corredor…

Notou que os dois estavam irresolutos como se tivessem resol¬vido, ante a contestação do seu estado, não dizer a que tinham vindo. Inquietou-se e semi-ergueu-se na cama, cuidando de não, gemer para não alarmá-los mais:

— Que é que há? Vamos, desembucha…

Valverde disse:

— Não é nada… Vai tudo bem… — olhava o braço enfaixado, a perna envolta em gaze na altura da coxa, a cabeça de cabelos chamuscados. Que adiantava contar a Juvêncio? Apenas iriam incomodá-lo, ele não poderia dar jeito.

Mas o vozeirão de Macedo o interrompia:

— É melhor contar de uma vez… — e, antes que o outro tentasse impedi-lo: — A coisa pelo quartel vai muito ruim… Se continuar assim não sei como vai terminar…

Juvêncio havia sentado na cama. A freira, restabelecida do susto no corredor, aparecia na porta, soltava um pequeno grito de espanto ao vê-lo naquela posição:

— Vamos deitar-se já, já… — Não sabe que está muito ferido? Que ainda está com uma bala na coxa?

Olhou-a com raiva:

— Saia daqui… — mas logo arrependeu-se, — Desculpe, ma¬dre… Mas estou conversando coisa importante, peço que a senhora se retire… Depois, garanto que deito… Conta… — ordenou, dirigindo-se a Valverde.

— Ninguém se entende, essa é a verdade. Cada um quer man¬dar mais do que o outro, no quartel. No resto da cidade a coisa vai bem, a Junta tomou várias providências. Mas, no quartel. . . Tá uma confusão. . .

— O que é que está acontecendo?

Valverde contou nos dedos:

— Primeiro: falta de comando… Quirino tem pouca autoridade. A nossa gente obedece a ele mas os outros…

— Que outros?

— Os que aderiram… Muita gente… E cada qual mandando mais, dando ordens a torto e a direito. . . A discutir uns com os outros… Cada qual querendo ser mais. E não é só eles, gente nossa também… Conceição a brigar com Quirino, até na frente dos soldados discutem…

Para esticar o outro dedo:

— Segundo: cachaça. Foi proibido mas apareceu, agora é o que sobra por lá… Tem gente que já não se agüenta…

— Gente nossa?

— Um que outro… Quase tudo é adesista…

— Que mais?

— Roubo… Assaltaram o contencioso… E a despensa…

— Gente nossa?

— Não… Andaram vendendo coisas pra gente da cidade…

— Estão saindo?

— E quem pode empatar?… — Valverde desistira de contar nos dedos.

Juvêncio pensava:

— Isso pode ser até o inimigo instigando… Para desmora¬lizar…

Valverde concordou com a cabeça, depois completou:

— O pior… — e silenciou. Que adiantava dizer aquelas coisas ao outro que estava amarrado na cama, não podia dar jeito? Só ia trazer-lhe aborrecimentos. Se ele estivesse lá, a coisa seria outra.

— Conte…

— Tem uma porção que quer matar os oficiais…

— Matar os oficiais?

— É. Tão bebendo e dizendo que oficial só morto… Se já não mataram. Deixei Quirino discutindo com eles. Mas Conceição acha que o melhor mesmo é liquidar…

— Provocação — disse Juvêncio.

— Também acho…

Fêz um esforço com o corpo. O pior era a perna ferida:

— Me ajuda…

— Você vai levantar?

— Vou no quartel — avisou: — E ninguém vai me empatar…

Ajudaram-no a vestir a farda. Pôs o revólver, só podia mover a mão direita, o dólmã atirado sobre os ombros, o peito descoberto. Felizmente a mão ferida era a esquerda.

— Vam'bora…

A freira que se aproximava da porta, para fazer um apelo a Valverde e Macedo, recuou ao vê-lo:

— Onde vai, meu filho?

— Tenha paciência, irmã. Tenho que ir…

Ela moveu a cabeça num gesto de censura:

— Assim você vai morrer, meu filho…

— Não faz mal, irmã. Há coisas mais importantes…

Macedo e Valverde baixaram a cabeça ante o olhar da freira, sentiam-se culpados. Juvêncio ia na frente, capengando. No meio do corredor não pôde mais, pediu:

— Macedo, me dá o braço…

Valverde disse:

— Não é melhor você voltar?

— Vam'bora…

Quando atravessou a porta do Hospital empunhou o revólver. Macedo sentia o peso do corpo de Juvêncio no seu braço. Mas em Macedo e Valverde, Juvêncio confiava.

10

Ao atravessar o portão do quartel compreendeu que a coisa ia mal. A balbúrdia reinava, nada ali restava que lembrasse a disci¬plina dos soldados, a ordem de uma corporação militar. Distinguiu o vulto de Quirino no pátio, discutindo, agitando os braços. Alguém, que o vira entrando, tocou no ombro de Quirino, apontou para o portão. Juvêncio não pôde deixar de sorrir ante o grito de alegria do companheiro que veio correndo. Chegou esbaforido, tinha um ar de alarme:

— Eles foram matar os oficiais… Acuda depressa…

— No cassino?

— É…

— E você não é comandante? Cadê sua autoridade?

Quirino confessou:

— Isso aqui está uma esculhambação…

Apoiou-se em Macedo mas apenas para se firmar, logo saiu andando num esforço que lhe contraía o rosto. Levava o revólver engatilhado. Macedo e Valverde seguraram também suas armas. Os homens acabavam de chegar ao cassino quando eles apare¬ceram. Alguns estavam bêbedos, outros eram arrastados apenas pelo sucesso da revolta. Homens sem partido, que haviam aderido e acreditavam que não deviam obediência a ninguém. Os oficiais, desarmados, juntavam-se num canto. Alguns estavam pálidos, outros mantinham-se firmes. Um deles falava para os homens, mas os bêbedos riam e os demais gritavam. Juvêncio chegou por detrás.

— Sai da frente…

Olharam para ele como se fosse um espectro. Estava com o rosto branco como cal, como se não tivesse mais nem uma gota de sangue. Abriram alas para ele passar. Os oficiais pensaram então que havia chegado a sua última hora. Tinham tido notícias de que era o comunista Juvêncio que estava à frente da revolta, prendera o comandante, atacara a companhia de metralhadoras e pensavam que ele havia morrido. O tenente que comandava as metralhadoras sorriu tristemente. O comandante adiantou-se:

— Cabo Juvêncio, pense bem no que vai fazer…

Juvêncio olhou sem ódio e sem piedade:

— Coronel, cale a boca e não se meta… — os soldados aplau¬diam, um bêbedo gritou um palavrão. — Cale-se, seu estúpido! — Juvêncio voltou-se, fitou o soldado. — Está preso. — Valverde, meta esse tipo no xilindró. Depois veremos…

Silenciaram todos. Os bêbedos ainda tentavam rir mas já não encontravam solidariedade nos que estavam pouco tocados. Ju¬vêncio falou-lhe:

— Vocês vinham matar os oficiais…

— Só pregar um susto…

— Seja homem e não minta, que é pior… Vocês o que é que são? Revolucionários ou assassinos? — dirigiu-se aos oficiais. — Fiquem sabendo os senhores que desses nem um só é comunista nem aliancista. Um comunista não assassina… — novamente falava para os soldados. — Vocês não vêem que é isso que os inimigos querem? Dizer que soldado, cabo e sargento só serve para matar? Para comandar um quartel, manter a ordem e governar, só ofi¬ciais … E vocês em vez de provar que isso é mentira…

— Que me importa a ordem… — disse um bèbedo. — A gente ganhou, agora tem direito de descontar o que esses nos fez… Tem direito… — ia arengar para os outros.

— Com que autoridade você discute minhas ordens? Sou o co-mandante do quartel e você vai responder por crime de indisciplina. Está preso…

— Quem é que me prende?

— Eu… — disse Macedo andando para ele. O soldado bêbedo tentou reagir, Macedo deu-lhe um soco, estendeu-o no chão.

Os oficiais olhavam aquilo tudo achando que, afinal, o quartel voltava a ter comando. E não se enganavam porque a mais perfeita ordem voltou a reinar. Era Juvêncio quem se enganava ao afir¬mar-lhes:

— A revolução está vitoriosa em todo o país… A vida dos senhores está garantida. Garantida pelo comando do quartel. Os senhores serão julgados depois. Agora, quero avisar uma coisa. Aquele que tentar fugir ou aliciar algum soldado será fuzilado sem julgamento…

Dirigiu-se a Valverde:

— Leve os presos e mande quatro homens de confiança.

Os outros soldados ainda estavam por ali:

— O que é que estão esperando aí? Vão para o pátio, desço neste instante…

Os homens obedeceram. Os oficiais começaram a mudar de opiniões sobre o destino da revolta, que antes pensavam perdida. O capitão médico aproximou-se, viu o sangue escorrendo da coxa do cabo:

— Assim o senhor morre…

Disse a Macedo:

— Arranje gaze e algodão…

Juvêncio afastou o médico com a mão:

— Dos senhores não quero nada… Deixe estar que eu me arranjo…
Valverde voltava com alguns soldados. Juvêncio disse-lhes:

— Cuidem das entradas. Metam fogo em quem quiser fugir e metam fogo em qualquer um — seja quem fôr — que apareça por aqui sem ordem minha ou de Quirino… Não discutam, metam bala…

Saiu. Mas, no corredor, Macedo teve que ampará-lo novamente.

11

Ao chegar ao pátio, antes de falar com os soldados, ele desejava poder conversar com Quirino, ficar bem a par da situação, combinar com ele (que era politicamente a pessoa mais responsável) a melhor maneira de agir. Mas, apenas deixou o braço de Macedo, para atravessar sozinho a porta que dava para o pátio, viu que não podia fazê-lo. Quirino estava nos fundos, ao lado de soldados, carcado pelos cabos e sargentos comunistas. Do outro lado, sepa¬rados como se fossem um grupo de adversários, juntavam-se tam¬bém soldados, cabos e sargentos, e com eles estava Chico Conceição. Os dois grupos mais ou menos se equivaliam em forças e Juvêncio olhou para uns e outros, durante uns momentos. Ganhava energias para poder andar, a mão quase não podia sustentar o revólver. Temia cair a qualquer momento. Ainda assim recusou o auxílio que Macedo lhe oferecia num sussurro, marchou para diante, colocou-se entre os dois grupos. Olhou para Chico Conceição lon¬gamente e virando-se para Quirino, falou com voz pausada e grave:

— Estou às ordens, comandante — bateu continência sem largar o revólver, voltava a olhar para os que estavam com Conceição.

Quirino se adiantou, veio andando para ele. Não sabia o que ele ia fazer mas, desde que o vira atravessar o grande portão do quartel, descansara. Com Juvêncio ali, ele tinha certeza de que tudo iria bem. Macedo murmurou:

— Cuidado com Conceição, Nenén… Êle…

Mas a voz de Chico Conceição cobria as palavras murmuradas:

— Comandante, por quê? Quem o elegeu? A gente é menino ou mulher-dama pra aceitar o que qualquer um quiser dar à gente? Nós — apontava para os homens que o rodeavam — não aceitamos Quirino de comandante.

Os soldados que se encontravam em torno e por detrás de Conceição olhavam para Juvêncio mas sem hostilidade. Apesar de toda a conversa macia e aliciadora do outro, confiavam no cabo, conheciam-no e sabiam que era um deles. Juvêncio também os olhou, estudando-os um a um. Conceição estava quase à sua frente, como dera uns passos se separara dos seus homens. Juvêncio passou a seu lado, sem responder-lhe, colocou-se em frente dos soldados, sério e quase severo:

— Companheiros, estou chegando do Hospital e o que é que encontro? Encontro soldados da revolução guarnecendo seu quartel, cumprindo suas obrigações? Não… encontro tudo esculhambado, parecendo que os soldados só sabem se governar quando têm os oficiais para mandar neles, dar ordens, meter na cadeia… Nós nos revoltamos porque o povo está passando fome e os soldados, cabos e sargentos são perseguidos. E agora vamos provar que não vale¬mos mesmo nada? Por mim digo que estou envergonhado… — olhava-os e eles baixaram a cabeça.

Conceição quis replicar qualquer coisa mas Juvêncio não consentiu:

— Depois você fala… Depois fala quem quiser. Mas agora falo eu e tenho o direito de falar porque vim do Hospital para não deixar que vocês morram atacados pelas costas a qualquer mo¬mento… — dirigia-se aos soldados que formavam com Conceição.

— Posso ou não posso falar, companheiros?

Um negro destacou-se dos outros:

— Pode falar, ocê é um homem direito… Nós acredita em ocê…

— Companheiros, a revolução foi feita pela Aliança Nacional Libertadora com o auxílio do Partido Comunista. O Estado tem um governo popular, formado por aliancistas e comunistas. É a esse governo que os soldados da revolução têm de obedecer… Foi esse governo que nomeou o camarada Quirino comandante do Regimento. Por que então não obedecer? Por que essa bagunça aqui dentro? Ou será que os soldados não são capazes? Queriam matar os oficiais, por quê? Onde arranjaram cachaça, com que licença? Vocês são revolucionários ou são integralistas?

Estavam sem jeito. Juvêncio sorriu:

— Muita coisa eu compreendo. O entusiasmo, a liberdade, mas tudo tem seu basta, companheiros. E agora eu digo: chegou. Isso vai entrar em ordem… Estamos de acordo?

Houve um sussurrar entre eles, logo o negro disse:

— De acordo…

E os outros começaram a repetir, e um gritou:

— Viva o cabo Juvêncio!

Quando as aclamações iam morrendo, Conceição exaltou-se:

— Vocês estão bancando os trouxas…

Juvêncio chamou:

— Ricardo! Damião! — e vieram o negro e um mulato baixo.

— Prendam o cabo Conceição. Êle é inimigo da revolução. Que¬ria arrastá-los à cachaça e à desordem para melhor vender nós todos ao inimigo. Vai ser julgado e fuzilado…

Conceição puxou o revólver. Mas o braço de Macedo se abateu no seu ombro:

— Solta essa arma, seu filho da puta…

Juvêncio tomava do braço de Quirino, saía com ele. No cor¬redor desmaiou. Os soldados ainda viram quando ele caiu, cor¬reram de ambos os lados, viram o sangue sobre as gazes do braço, manchando também a calça na altura da coxa. E aqueles que promoviam a desordem foram os primeiros a obedecer às ordens que Quirino repartia.

12

O médico deu-lhe uma injeção para que ele dormisse:

— Assim você se mata… — era um simpatizante e sabia da importância de Juvêncio no movimento.

Lurdes viera, aflita mas sem lágrimas, ajeitando os traves¬seiros da sala improvisada em enfermaria. Juvêncio pediu que ela se retirasse:

— Isso aqui estava cheio de mulheres que até parecia cabaré em dia de sábado… Botei tudo pra fora… Se tu ficar, eu não tenho mais moral para dar ordens… Não se preocupe, amanhã já estou de pé de novo…

Ela compreendeu e partiu. Soldados se ofereceram para acom-panhá-la até em casa, agora, a ordem imperava no regimento.

Juvêncio adormecera preocupado com a formação das colunas para o interior. Durante o resto da tarde não tivera tempo de pensar naquilo, as horas tinham sido pequenas para arrumar as coisas dentro do próprio quartel, discutir com Quirino, formar um comando, distribuir postos pelos homens de confiança. Pensava em tratar à noite, com Quirino e alguém da direção, Luís ou outro, daquele assunto. Era urgente que as colunas partissem. Já tinham perdido quase vinte e quatro horas e não chegavam boas notícias do Sul… Mas, como desmaiasse novamente, foram em busca do doutor que, ao vê-lo em atividade (havia-o deixado após o desmaio da tarde com ordens expressas para deitar-se e repousar), alarmou-se. Obrigou-o a ir para a cama que improvisaram numa sala ao lado do comando, e, sem dizer de que se tratava, deu-lhe aquela injeção que o fizera dormir.

Despertou com Luís e outro companheiro da direção ao lado de sua cama. Olhavam-no como se estivessem com medo que ele acor¬dasse. Viu a claridade do sol alto:

— Que horas são?

— Nove e vinte…

— Como é que dormi tanto? — a cabeça pesava, o estômago doía mas não tinha febre. Quirino explicava:

— Foi a injeção que o doutor lhe deu…

— E as colunas? Já partiram?

— É tarde… — disse o sapateiro.

— Tarde? Por quê?

— A coisa em Recife está preta… Não marcha bem… E não houve mais nada no resto do país…

— Não é motivo para a gente ficar parado — levantava-se, andava para a pia, começara a lavar o rosto.

— É que o 22 da Paraíba parece que está marchando para aqui… O importante é defender a cidade… Garantir Natal até que a coisa estoure pelo Sul… Deve ser de um momento para outro…

Juvêncio voltava a sentar-se na cama.

— Tem café?

Quirino deu um grito, apareceu um soldado.

— Arranje café pro camarada Juvêncio…

— Bem quente… — pediu Juvêncio.

— Como é mesmo com Pernambuco? — perguntava a Luís.

— O pessoal parece que teve de abandonar a cidade… Já não usam o rádio…

— E aqui, como vai a coisa?

— Na cidade, bem.

— E no quartel? Alguma novidade?

— Não — disse Quirino. — Só que de noite fugiram um cabo, o Bonifácio, e quatro soldados… Andaram levando uma coisas…

— É fuzilar o primeiro que fôr pegado fugindo… Na vista de todos…

O soldado chegava com o café. Mexeu o açúcar, tomou em pequenos sorvos. Refletia sobre a situação. Encontrava o sapateiro pessimista e o outro companheiro demasiado silencioso. Riu:

— Vamos tocar para diante…

Aquele dia transcorreu sem maiores novidades. Juvêncio per¬correu a cidade de automóvel, examinando os melhores lugares para trincheiras, mandou soldados prepará-las. Quando voltou ao quartel, encontrou um ambiente de cochichos, as notícias más se propalavam. Sabiam já que o movimento estava perdido em Per¬nambuco, contavam detalhes alarmantes. Do cárcere onde estava, Conceição agia, conversando com os soldados que o guardavam, espalhando notícias tenebrosas. Juvêncio reuniu os comandantes, estudou com eles a situação. Mais alguns homens haviam fugido. Um deles tinha sido preso. Quirino perguntou:

— Vale a pena fuzilar?

— Vamos ver…

Desceu para o pátio, o esforço da tarde fora demasiado, sentia-se tonto, a cabeça pesada, os olhos turvos. Mandou buscar o sol¬dado. Era João Inácio, um camponês de certa idade. Falou-lhe como se estivessem na roça:

— Seu João, que foi que lhe deu que fugiu? Vosmecê teve medo?

— Homem, seu cabo, medo de morrer na hora da briga eu não tive. Mas o cabo Conceição me disse que nóis tava perdido e ia ser tudo metido na cadeia e depois matavam a gente na borracha… Não sou homem pra apanhar, seu cabo…

— João, você fez uma coisa feia e eu devia mandar-lhe fuzilar. Mas você foi enganado por esse traidor. Seu João, pode ser que nós morra tudo mas é de arma na mão se batendo pela revolução. Você tá com medo?

— Assim não. Assim tá direito. Agora, de borrachada…

Deixou o camponês, falou para os soldados:

— Quem estiver com medo pode ir embora. Não quero covardes aqui… A luta vai ser dura, teremos que sustentar o quartel e a cidade até que a revolução vença pelo Sul… Quem estiver com medo, dê logo o fora… Vamos ver…

Ninguém se moveu. Continuou a falar:

— Porque agora não há desculpa para desertor… Não vai ninguém embora?

Esperou. Os homens mantinham-se silenciosos.

— Muito bem. Agora vamos tratar de Conceição. Soldado Ricardinho, vá buscar o preso…

Fêz o julgamento ali mesmo:

— Esse homem espalhou a desordem no regimento, aconselhou a que matassem os oficiais, está espalhando o pânico, inventando mentiras, fazendo os soldados traírem a revolução, fugirem como desertores e covardes. O que é que merece?

Conceição tremia, os olhos esbugalhados, desmoralizado:

— Pelo amor de Deus, Nenén… Pelo bem de sua mulher…

O pelotão formou junto ao muro. Conceição foi arrastado. Juvêncio se retirava quando os tiros soaram.

— Temos pouca munição… — Disse a Quirino mas estava pensando em Chico Conceição. Da porta espiou, viu o cadáver de bruços, o sangue em torno.

13

Era inteiramente impossível controlar os fugitivos. As espe¬radas notícias do Sul não chegavam, a descrença ia dominando a todos. Juvêncio notava que mesmo os cabos que lhe obedeciam cegamente procuravam evitá-lo, olhavam-no como se ele os houvesse defraudado. Mas conseguira que a ordem se mantivesse, que os homens não bebessem, que não tentassem contra os oficiais presos, não desacatassem os companheiros que tinham sido nomeados para postos. Juvêncio sentia que tudo aquilo podia estourar de um momento para outro. Na cidade tampouco as coisas marchavam bem. Agora os reacionários já sabiam que o movimento de Recife tinha sido sufocado e que em nenhuma outra parte houvera levantes. Estavam a 25 de novembro e só dois dias depois o 3.º R. I. e a Escola de Aviação se levantariam no Rio, quando já os soldados do 22º B. C. chegavam em Natal. A junta governamental encontrava dificuldades enormes. O primeiro entusiasmo dos simpati¬zantes e o oportunismo dos adesistas cediam e os revolucionários, ainda no poder, começaram a ser hostilizados.

Juvêncio, na tarde daquele dia, concluiu que a defesa da cidade era inexeqüível com os soldados que restavam. O exemplo de Conceição fora esquecido no decorrer da noite e as fugas aumen¬tavam. Até mesmo oficiais tinham conseguido fugir, comprando a cumplicidade dos homens que os guardavam com dinheiro e pro¬messas de perdão.

A febre voltara e Juvêncio temia não agüentar até o fim. O corpo reclamava cama, as feridas continuavam abertas, a cabeça doía-lhe constantemente. Ainda assim conferenciou com Quirino, depois foi a Palácio entender-se com o pessoal da Junta. Sua idéia era organizar os homens mais leais e conscientes, aqueles que eram comunistas e aliancistas ou que, pelo menos, guardavam fideli¬dade à revolução, em colunas de guerrilheiros que fossem pelo interior, se internassem pelo sertão, na caatinga, e ali levantassem os camponeses, à espera do movimento no Sul que eles conside¬ravam inevitável. Voltariam depois sobre a capital. Os dirigentes concordaram e naquela mesma noite Juvêncio fez partir colunas de guerrilheiros, dando-lhes o melhor da munição. Reservava-se para ir com a última, quando já não houvesse nada a fazer na cidade. Não podia, no entanto, deixar que todos os homens par¬tissem, porque então os reacionários tomariam conta de Natal.

Viu Macedo pela madrugada seguir à frente de uma coluna. Aquele homem grande e conversador, de vozeirão escandaloso e vaidade fácil, era em verdade, um menino. Corajoso e leal, forte mão que não traía, coração apaixonado e punho rude. Abraçou-o e recebeu comovido a recomendação do outro:

— Se cuide, Nenén…

Valverde ficara a seu lado e Quirino crescia na sua admiração. Politicamente era fraco e fora responsável por muita coisa aconte¬cida. Mas mantinha-se ali, disposto a tudo, a morte não lhe impor¬tava. A madrugada do quarto dia raiava sobre Natal, os homens tomavam o caminho da caatinga onde dominavam Lucas Arvoredo e o beato Estêvão. Iam como guerrilheiros, outros como fugitivos. Juvêncio olhava-os até que se perdiam ao longe e, ao aspirar o ar da madrugada, recordava-se das manhãs da fazenda quando partiam para lavrar a terra, aquela terra que era dos coronéis e que ele desejava que fosse dos camponeses. Por isso se levantara com seu regimento. Agora iam começar tempos duros, mas o sertão conti¬nuava e algum dia os demais pensariam como o cabo Juvêncio…

14

O último dia decorreu devagar, os homens saindo pela porta da frente do quartel, já não precisavam pular os muros para fugir. Juvêncio via-os partir. Não eram mais boatos, eram notícias verda-deiras. Os soldados do 22.º B. C. da Paraíba, aproximavam-se da cidade. Os fuzis revolucionários haviam silenciado em Recife. Os soldados partiam, alguns vinham se despedir dele:

— Até outra, cabo… Conte comigo…

Não tinha febre, apenas cansaço, um cansaço terrível, não havia parte de seu corpo que não doesse. A Junta governamental transferira-se para o Quartel. Os dirigentes mantiveram longa conferência com Juvêncio e Quirino e decidiram abandonar a cidade antes da chegada dos soldados.

Valverde queria ficar com ele, mas Juvêncio obrigou-o a partir. Quirino tinha um ar de parente de defunto ao abraçá-lo.

Tinham proposto levá-lo mas ele recusara. Não podia andar dois quilômetros, só iria servir de empecilho aos demais. Mentira:

— Eu me arranjo… Tenho onde me esconder…

No fim da tarde o preto Ricardo veio se despedir:

— Cabo, ocê vai ficar?

— Vou…

— Fico com ocê…

— Praquê, Ricardo? Eu vou ficar porque alguém tem de ficar. Fico eu que tou baleado, eles não vão fazer malvadez com um homem quase morto. E sou responsável, fui um dos chefes. Se eles pegarem você viram pelo avesso… Vá embora enquanto é tempo…

Ouviram o longínquo ruído da marcha dos soldados do 22.º no rumo da cidade. Ricardo ainda teimou:

— É bom eu ficar com ocê…
— Tu é soldado, eu sou cabo… Além disso ainda sou o sub-comandante. E dou uma ordem: vá embora.

O soldado Ricardo, negro alto e feio, deu um passo para a frente, perfilou-se, fez a continência. Saiu marchando como se fosse para um combate. Juvêncio acompanhou-o com os olhos, viu-o desaparecer na esquina.

Ficou sozinho no quartel. Na cidade padres e políticos se movi-mentavam para receber o 22.º B. C. com festas e flores. Os passos estavam mais próximos, agora soavam sobre os paralelepípedos da rua. Restava-lhe ainda alguma coisa que fazer. Desceu a ban¬deira vermelha do mastro onde ela tremulara quatro dias sobre a cidade de Natal. Meteu-a sob o dólmã, saiu do quartel. Juvêncio ia num passo vagaroso, as feridas impediam-lhe de andar mais depressa, a cabeça doendo, um cansaço em cada músculo e em cada nervo, um cansaço que não lhe permitia pensar. Para onde podia ir? Não tinha uma casa que lhe servisse de esconderijo. Para o mato, só se quisesse morrer mais depressa. Tinha dinheiro no bolso, muito dinheiro, nunca vira tanto. Não lhe servia de nada naquele momento. Fêz um esforço para recordar um lugar onde guardá-lo. "Servirá ao Partido algum dia".

Andou para casa. Desde a véspera pela manhã não via Lurdes. A tarde caía sobre os subúrbios silenciosos. Os passos dos soldados estavam próximos, não tardariam a penetrar no quartel deserto. Não encontrariam a bandeira para arrancar do mastro. Sorriu.

Entrou em casa, havia um sofá na sala, umas cadeiras pequenas e incômodas. Lurdes estava sentada no sofá, a barriga subia-lhe pelo peito… Quis se levantar, ele fez um sinal para que ela ficasse ali mesmo. Arrancou as botinas, não teve forças para tirar as meias. Estendeu os pés sobre o braço do sofá, colocou a cabeça no colo da mulher. Vinha dela um calor, uma paz, um descanso, e no seu ventre uma criança se preparava para nascer. Juvêncio fechou os olhos. Agora não pensava em nada, sentia apenas aquele calor vindo da esposa, e parecia que tudo havia terminado, que aquela paz e aquele sossego eram para todo o sempre. Lurdes passou as mãos no cabelo chamuscado, ele sorriu levemente. As sombras do crepúsculo desceram sobre a sala.

Epílogo
**
A Colheita
Tonho

1

— Varda! Que bél toso é Tónho… — disse a italianinha no seu dialeto dos camponeses de Veneza.

E a velha vizinha concordou:

— Bél giovanoto, si…

Tonho passava pela estrada, em caminho da cidade, e talvez houvesse exagero nas palavras elogiosas da moça italo-paulista que já acostumara os olhos na visão dos mulatos e caboclos nor¬destinos. O frio crestara os cabelos rebeldes do menino sertanejo e lhes dera um tom aloirado. O organismo que resistira à viagem através da caatinga, à fome e à sede, à disenteria no S. Francisco, que se formara em meio a todas as enfermidades dos imigrantes em Pirapora, imunizando-se ao contacto com elas, crescera forte, assentado nessas raízes de uma primeira infância de tanto sofri¬mento. Como uma planta ressecada pelo sol que floresce e se alteia com as chuvas do inverno, assim ele cresceu no campo paulista. Sua infância terminara com a viagem de trem, naquele vagão de imigrantes vindo de Pirapora. Na estação, sua tia Marta ficara dando adeus e nunca mais voltaram a saber dela. Tonho pensava nela de quando em vez, ao olhar as moças mais bonitas da região, as caboclas nascidas dos sertanejos, as italianas de face rosada. A recordação que lhe ficara da tia era a de uma beleza surpreendente e se bem jamais pronunciassem em casa seu nome amaldiçoado, Tonho a tivera na memória durante muitos anos. E essa lembrança renovou-se, floriu em recordações que já iam se apagando, quando, três anos após a chegada na grande fazenda de café, onde eram trabalhadores assalariados, seu avô Jerônimo morreu botando san¬gue pela boca.

Jerônimo, nos anos de São Paulo, era uma sombra do sertanejo que partira certa madrugada de suas terras tomadas pelo novo fazendeiro. A tísica ia-lhe comendo as forças e as carnes. No último ano quase não podia mais trabalhar na colheita do café e foi uma sorte que Agostinho chegasse naquele inverno em com¬panhia de Gertrudes e de dois filhos, tocados pela fome que gras¬sava no sertão. João Pedro envelhecera também. Na noite da chegada de Agostinho ficaram em torno ao fogo, encolhidos de frio, aquele frio que tanto os fazia sofrer. O que chegara desfilava notícias, foi então que souberam da prisão de Nenén e da morte de Jão. Jerônimo ouvia deitado, a tosse persistente interrompendo, a cada instante, as palavras do filho. Só teve um comentário para aquilo tudo:

— Quem me dera poder voltar…

Morreu poucos dias depois e, mais que a chegada de Agostinho, foi a agonia do velho — prolongou-se por toda uma terrível noite de frio, quando a geada caía sobre as plantações — que trouxe a lembrança da tia para junto de Tonho, pois Jerônimo, cuja boca jamais se abrira para dizer o nome da filha, agora, na hora extrema da morte, parecia não conhecer outra palavra e chamava por ela, baixinho:

— Marta… Marta…

Jucundina, sentada ao lado do catre, chorava, e Tonho percebia que ela misturava na sua dor as duas saudades: do marido que se finava e da filha que estava em terras distantes nas ruas de mulheres perdidas. Relembrou então, naquela noite de agonia, o rosto belo e terno de Marta, sua silenciosa bondade, seu devotamento à família. Via-a nos braços do médico, comprando com seu corpo o atestado de saúde para o pai tuberculoso. Era como um drama a que ele assistira no teatro da cidade uma vez que fora com João Pedro. Só que no teatro era de mentira e ainda assim as mulheres choravam. Com eles havia sido de verdade e nenhuma notícia Agostinho trouxera de Marta. Jucundina arrastara o filho para um canto, na noite da chegada, quando Jerônimo adormecera e perguntara:

— Tu soube de Marta?

— Num sube nada… Num tá por Pirapora… Dizque viajou faz tempo…

E acrescentou:

— Vosmecê sabe que muié dama num tem pouso certo… É que nem urubu voando pra onde tem carniça…

Naquela outra noite, quando se reuniram no quarto onde estava o velho doente para vê-lo partir, Tonho recolhia as palavras que o avô murmurava no estertor da morte:

— Deus te abençoe, minha filha…

Deitava a bênção em Marta, talvez ele a estivesse vendo e ela naquele momento, quem sabe?, pensaria nele e lhe pediria a bênção antes de deitar-se, o corpo cansado do seu comércio, o coração cansado também.

Botou uma golfada de sangue que misturou-se ao nome de Marta pronunciado com uma voz rouca por todos ouvida. O enterro foi concorrido, vieram os trabalhadores da fazenda, colonos vizinhos, italianos em sua maioria. Os caboclos falavam do sertão, recor¬davam cenas da viagem que cada um fizera para São Paulo. Tonho pensava em Marta, sua tia.

Era a lembrança mais profunda da sua infância que terminara com a viagem de trem. Ali, em São Paulo, ia para o trabalho com o avô e João Pedro. Freqüentou uns meses a escola, o sufi¬ciente para aprender a ler e a escrever. Mas, depois já rapaz, voltou a queimar as pestanas sobre a cartilha, tinha desejos de saber mais.

Poucos fatos importantes lhe haviam sucedido, além da chegada da Agostinho e da morte de Jerônimo, no decorrer daqueles anos. O mais significativo de todos foi a viagem que fez ao Rio de Ja¬neiro, em companhia de Jucundina, pra visitar seu tio Nenén, preso na Ilha Grande. Juvêncio viera, com outros condenados políticos, de Fernando de Noronha. Na Ilha Grande estudava. Para ele a prisão foi a universidade. Os nove anos que levou de cadeia em cadeia, em Natal, no Recife, na Correção e na Detenção no Rio de Janeiro, em Fernando de Noronha e, por fim, na Ilha Grande, foram de aprendizado. Os companheiros mais esclarecidos ajuda¬vam-no. Leu, finalmente, aqueles livros que cobiçava nos dias anteriores à revolução de 35. Em Engels aprendeu que a "liber¬dade é o conhecimento da necessidade" e pensou que o sertão estava aprendendo, com sangue e dor. Tanto falava no sertão, nos campo¬neses explorados, que até faziam pilhérias com ele. Mas, tanto eles como os de fora, os que lutavam na ilegalidade, sabiam que deviam cultivar no moço sertanejo o interesse pelo problema do campo. E lhe enviavam todos os materiais, livros e folhetos que tratavam da questão camponesa. Êle os devorava nos dias longos da prisão.

Jucundina, ao saber que o filho mais querido estava relativa¬mente perto e que as visitas eram permitidas, não descansou enquanto não pôde vê-lo. Juntou dinheiro, moeda por moeda, para as passagens. Informou-se sobre o Rio, a polícia, como ir à Ilha Grande. E um dia embarcou, levando Tonho que já estava um rapazola.

Quase não viram a cidade do Rio. Jucundina meteu-se num hotel barato nas proximidades da estação e passou o dia seguinte na polícia, enviada de um canto para outro pelos investigadores que se divertiam com ela. Só no fim da tarde, quando se cansaram de enganá-la, fazer-lhe perguntas tolas e rir dela, deram-lhe a ordem para visitar o filho. No hotel lhe ensinaram que trem devia tomar, o preço da passagem do naviozinho. Tinham que esperar dois dias mas quase não saíram, o movimento da cidade amedron¬tava Jucundina e Tonho espiava da janela do quarto os automóveis e os bondes, o carro da Assistência com sua ruidosa campainha.

O trem ia cheio de famílias de presos, Jucundina foi pedir uma informação, logo lhe perguntaram quem era e o que ia fazer na Ilha Grande.

— Vou visitar meu filho que tá preso lá…
Como nunca a tinham visto naqueles dez meses em que faziam semanalmente a viagem, imaginaram que fosse a mãe de algum preso comum. Perguntaram-lhe:

— Êle está preso por quê?

— Era cabo em Natal, brigou numa revolução… Condenaro ele, dizque foi um crime muito feio… Mas eu cunheço meu filho, num sei dele se meter em coisa ruim… Num credito…

Aquelas mesmas coisas dissera na véspera na polícia e tinham rido dela, tinham-lhe dito que Nenén jamais seria solto. "Êle é comunista, pior que assassino e ladrão." Mas ela não acreditava e agora aquela boa gente que ia no trem dizia-lhe que ela tinha razão, ele nada fizera de mau.

— Como é o nome dele?

— Juvêncio… A gente chama ele de Nenén…

— Juvêncio?

E então foi um entusiasmo. Havia pessoas que até o nome dela conheciam sem que ela o houvesse dito. Eram todos amigos de seu filho, o coração da velha encheu-se de orgulho. Tonho, com suas calças no meio das canelas, e espantoso chapéu vermelho, espiava sorridente e também ele, foi alvo de palavras amigas e de apertos de mão quando souberam que era sobrinho de Juvêncio.

O resto da viagem a velha passou narrando as peripécias da travessia pelo sertão, quando lhes tomaram as terras que traba¬lhavam. Em redor ouviam espantados e até um gaúcho, guarda do Presídio, na Ilha, sentiu-se comover com aquela narração sem adjetivos e sem lágrimas.

2

A imagem do tio Nenén juntara-se à de Marta na sua memória. Via-o na ilha, um livro sob o braço, andando com Jucundina pela praia. Ficava com ela todo o dia, ouvindo as histórias que a velha contava, enxugando as lágrimas que ela deixava rolar, lágrimas de alegria de rever o filho e lágrimas de saudade dos que haviam morrido ou sumido, como Marta.

Juvêncio estava diferente e não a esperava. Também Jucundina parecia outra, o cabelo totalmente branco, os olhos baços, o rosto cheio de rugas. Maria Barata, quando a camioneta chegou, dissera à velha:

— Espere aqui que eu quero dar a notícia…

E explicara a Agildo:

— É a mãe de Juvêncio…

O capitão condenado ficara conversando com ela enquanto Maria ia em busca do cabo. Encontrou-o lendo:

— Tenho um presente pra você…

— Cigarro ou doce?

— Venha comigo…

Ficou emocionada com o encontro. Via a velha apalpando os braços e as pernas do filho, o seu grito de alegria ao constatar que ele não estava aleijado como lhe haviam dito. E o próprio capitão que tinha fama de nunca ter sentido medo, de ser bravo até o exagero, afastou-se porque seus olhos ardiam e não gostava de chorar…

Passaram quatro dias na ilha, quatro dias durante os quais Jucundina só deixava Juvêncio quando chegava a hora dele trans¬por as grades do edifício e recolher-se ao cubículo. Tonho con¬versava com um e com outro, falavam-lhe coisas estranhas e sedutoras. Foram dias cheios, para Tonho era a revelação de um mundo. Aqueles prisioneiros em nada se pareciam com os que cumpriam pena na cadeia da cidade paulista, próxima à fa¬zenda onde eles trabalhavam. Eram homens alegres e confiantes, tinham a face voltada para o futuro. Tonho gostaria de ficar ali, entre eles, e aprender com o tio e com os demais aquelas coisas que eles sabiam. Uma, principalmente, gravava-se em sua cabeça: "a terra pertence àqueles que a trabalham". Porque o diziam, eles estavam presos. Mas valia a pena. Tonho também não se importaria se fosse preso por aquele crime.

Quando regressou, Jucundina desfeita em lágrimas, só falava no tio e nos seus amigos, companheiros de prisão. Não haviam deixado que a velha e ele voltassem para o hotel, à espera do trem para São Paulo. Parentes de um dos presos os levaram consigo, para sua casa, não permitiram que embarcassem na manhã se¬guinte, passearam com eles pelo Rio de Janeiro. E foram colocá-los de automóvel, na estação, no trem noturno. A moça, ao apertar a mão de Tonho, disse-lhe:

— Até outra vez comunista…

Êle riu:

— Um dia vou ser…

Jucundina mandava abraços para o filho:

— Dê um abraço nele, bem apertado…

Os amigos prometiam, ela chorava ante tanta bondade. E não sentia mais aquela pena do filho condenado, tirando sentença. Agora o seu sentimento era de orgulho. Seu filho não era um criminoso, seus amigos uma gente direita. Enquanto o trem corria, eles recordavam os dias na ilha. Quando Tonho chegou na fazenda, de volta, tinha muito o que contar. E pelas noites, quando o frio descia, e ele se deitava, ficava vendo, de olhos fechados ora a tia Marta acenando a estação, ora o tio Nenén falando na Ilha Grande aquelas coisas que ele repetia para não esquecer jamais.

3

Um dia, sob a pressão dos acontecimentos nacionais e interna-cionais, veio a anistia. O Partido, numa semi-ilegalidade, realizou um Pleno Ampliado ao qual o ex-cabo Juvêncio esteve presente. Depois foi visitar os parentes em São Paulo. O Partido alcançava a legalidade, os primeiros Comitês Municipais iam sendo fundados.

Ao voltar da fazenda onde estivera uma semana com os seus, Juvêncio encontrou, na cidade próxima, um velho amigo. Tonho o acompanhara, e iam os dois pelas ruas quando o cabo gritou:

— Zé Tavares!

O cabelo do sertanejo começava a pratear mas era o mesmo rosto enxuto e sorridente. Sentaram-se num café a conversa se prolongou por toda a tarde. Zé Tavares, andara fugido pelo interior de São Paulo, desde que fora solto a última vez. Agora estava ali levantando o Comitê Municipal. Vivera pelo interior e seu desejo era trabalhar com os camponeses. Repetia as palavras de Prestes sobre a questão camponesa no primeiro grande comício:

— Nós que somos do sertão é que sentimos isso de verdade…

Juvêncio disse a Tonho:

— Foi esse mulato quem me botou no Partido…

E para Zé Tavares:

— Agora tome conta do sobrinho… Esses — batia no ombro de Tonho — é que vão levantar o campo.

Pensavam ambos no sertão distante. Zé Tavares falou:

— Agora vai se acabar os cangaceiros e os beatos… Vai ser a nossa vez…

Levantaram-se, Juvêncio deixou umas moedas na mesa. O sol era leve, quase caricioso, diferente daquele sol de fogo do Nordeste. Zé Tavares ia contando um caso para mostrar como os camponeses começavam a compreender e Juvêncio repetia mentalmente as palavras lidas em Engels. A voz de Zé Tavares ainda conservava aquela moleza cantante da caatinga:

— O camponês era meu amigo, me conhecia de muito tempo. Quando soube que eu tava em Rio Preto, fundando a sede legal do Partido, veio me ver. "Seu Tavares, me diga vosmecê que sabe, o que é esse tal de comunismo…" Expliquei, falei no problema do campo, da terra para os trabalhadores, expliquei, troquei em miúdo. Êle escutando. Quando acabei ele disse: "Seu Tavares, esse tal de comunismo me arrecorda assombração." Quis saber por quê. "Num vê o senhor que aparece uma luz na estrada e vão dizer pra gente que não chegue perto, que aquilo é assombração que mata a gente só de espiar. Mas tanto falam que a gente fica se roendo de vontade de ir espiar. Um dia não arrisiste, vai, chega lá e vê que é o pai da gente…"

Juvêncio riu, entraram na pequena sala. Na rua uma tabuleta recém-pintada anunciava aos olhos curiosos dos passantes:

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL
Comitê Municipal

Operários e homens do povo trabalhavam e conversavam na sede. Tonho reencontrou aquele mesmo ambiente e aquelas mes¬mas conversas da Ilha Grande. Sorria o mais amplo sorriso dos seus dezenove anos. Zé Tavares aproximava-se com um ficha:

— Sabe ler e escrever?

— Sei…

— Então encha sua ficha de inscrição… E vamos depois con¬versar sobre como trabalhar em sua fazenda… Sabe o que é uma célula?

— Não, senhor…

Saíram para levar Juvêncio à estação:

— Creio que o pessoal vai me mandar para o sertão, Zé.

— Tinha vontade de ir também.

— Você já está ambientado aqui… Mas eu, apesar de tudo, é como se não tivesse saído de lá… Vou ficar contente se me mandarem…

Abraçavam-se, o apito do trem cobria as vozes:

— O menino fica com você… Está em boas mãos…

— Deixe ele comigo…

Apertou Tonho contra o peito:

— Até outra vez, companheiro… Seja um bom comunista…

Vontade de poder escrever uma carta contando à tia Marta tudo aquilo, toda aquela alegria em torno. Mas onde estaria ela, em que lugar do mundo, chorando que lágrimas? Tonho sai da estação, vai respondendo as perguntas de Zé Tavares.

— Quanto ganha um trabalhador por dia na fazenda?

O apito do trem na estação, onde andará Marta nesse mundo tão grande? Quem dera que o tio Juvêncio a encontrasse e lhe dissesse que Jerônimo a perdoara na hora da morte e que ela podia vir, Jucundina e João Pedro estavam de boa saúde, Agostinho e Gertrudes já tinham dois filhos, e ele, Tonho, ingressara no Partido Comunista para lutar contra o sofrimento e a fome.

4

Alguns meses depois, o camarada Vítor, secretário nacional de organização mandou chamar Juvêncio. O ex-cabo ficara mesmo no Rio, trabalhando para o Partido. Vítor acabara de chegar de São Paulo, andara pelo interior. Vinha entusiasmado com um ativo de camponeses:

— Cada camponês que faz gosto. Vieram de oitenta municípios … Conscientes e capazes… Te digo que uns dez a quinze dirigentes sairão dos cem homens que reunimos no ativo…

Bateu no ombro de Juvêncio:

— E um deles é teu sobrinho… O menino vai longe… Tome cuidado, se não ele lhe passa a perna…

Depois entrou no assunto. Juvêncio esperava com ansiedade aquela resolução.

— O trabalho é difícil mas você conhece bem o sertão. Tem o exemplo do que estamos fazendo em São Paulo. Ligas camponesas, células de fazendas, levantar as reivindicações…

Juvêncio contou-lhe o caso acontecido com Zé Tavares e os camponeses. Vítor deixou de sorrir para dizer:

— Êle tem razão. Os beatos e os cangaceiros acabarão no dia em que os sertanejos tiverem consciência política. É trabalho teu…

Voltou a ser o camarada brincalhão:

— Toma vergonha se não seu sobrinho te passa, boa vida…

Certa noite escura, Militão andava pelo caminho da fazenda, vinha do arraial. Pareceu-lhe ouvir passos na estrada e pôs-se de sobreaviso. O homem andava apressado e passou a seu lado. Onde já havia visto aquela cara? O caminhante voltou-se, também ele reconhecera Militão. Olharam-se por um segundo, à luz do fifó que o trabalhador levava:

— Nenén!

— Militão…

Militão estava casado e quatro filhos enchiam a pequena casa de barro batido. Juvêncio aspirava o ar da noite sertaneja, profunda e densa. Filhinha não o reconheceu. Era menina quando o cabo partira em busca do bando de Lucas Arvoredo. Quiseram saber notícias de todos, mais uma vez lhe narraram aqueles acon¬tecimentos de anos atrás quando o doutor Aureliano vendera a fazenda e o novo proprietário exigira a entrega das terras dos colonos e meeiros. Será que Juvêncio sabia alguma coisa de Bas¬tião, o tocador de harmônica?

Filhinha comentou:

— Deve ter morrido, já era bem velho…

A frase de Militão era um lamento:

— Tocador tão bom nunca mais apareceu…

E de Gregório, tinha alguma notícia? Mas Juvêncio queria saber era de Militão e dos demais que permaneciam na fazenda. Quanto ganhavam por dia, atualmente? Havia colonos? Meeiros? Continuavam obrigados a comprar no armazém?

Depois pediu que ele reunisse, naquela mesma noite, todos os trabalhadores que pudesse. Ali em sua casa, sem que o capataz soubesse. Partiria manhãzinha e antes queria conversar com os homens. Tinha muito que lhes dizer, ia ensinar-lhes como mudar aquela vida que levavam, tão desgraçada. Militão fitava-o, se não fossem aqueles olhos de criança travessa ele não reconheceria no homem que falava explicado, sabendo tanta coisa, o moço que um dia fugira de casa e do qual apenas vagas notícias haviam chegado à fazenda. Militão perguntou, com respeito, antes de sair para chamar os outros:

— Tu aprendeu isso tudo na capital? Tu não perdeu tempo e o que tu diz é cuma luz que alumia, abre um clarão nos olhos da gente que tava no escuro…

Os homens vieram, reuniram-se na sala, Juvêncio falou. Eles ouviam num silêncio apenas interrompido por. uma ou outra exclamação:

— É isso mesmo…

— Tá dizendo a pura verdade…

E pela madrugada, quando as sombras ainda envolviam os campos úmidos de orvalho, e no ar se elevava aquele cheiro pode¬roso de terra, Nenén partiu para a caatinga pelo mesmo caminho seguido um dia por Jerônimo e sua família. Os brotos de dor e de revolta cresciam naquela seara vermelha de sangue e fome, era chegado o tempo da colheita.

Pegi de Oxóssi (Estado do Rio), junho de 1946.