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Camões numa barca sem leme em Que farei com este livro?

Não creio que as artes devam ter algum uso ou função, mas vejo-as dialogando com a sociedade. Não fosse assim, se não se relacionassem de alguma forma com o ser humano, não nos interessariam em nada.

Por Beatriz Helena*

Camões

Marx e Engels analisaram as relações econômicas e de trabalho na sociedade, através da história. Muitos outros teóricos se debruçaram sobre isso. Acho que homens e mulheres de literatura também fizeram e fazem isso:Saramago, Jorge de Sena, Cecília Meireles, Castro Alves, Luiza Neto Jorge…a lista seria imensa.

 Por muito tempo se encarou a epopeia camoniana como um elogio à pátria portuguesa, um registro da história gloriosa que não deveria ser esquecida pelas gerações futuras. Este é um dos rótulos, talvez temido pelo próprio poeta, se seguirmos a sugerida especulação, contida na última fala que Saramago conferiu ao seu Camões/personagem: “Que farei com este livro? “. Sob tal perspectiva, através da apropriação das lacunas biográficas do poeta maior de nossa língua portuguesa, leremos as críticas ao passado e ao presente de Portugal, cujo alcance o formato do texto potencializa.

Luis de Camões publicou Os Lusíadas em 1572. Isso é fato. Por outro lado, há várias incertezas quanto aos dados biográficos deste genial autor, e, talvez por isso, várias leituras surgiram a partir de sua obra. Essa ausência de dados torna o próprio Camões um desafio para biógrafos e ficcionistas de um modo geral; instiga a imaginação a construir uma história sua a partir de sua obra maior. Parece-nos que José Saramago não resistiu a tal tentação.

Em Que farei com este livro? temos Camões e uma história acerca da peregrinação empreendida com o objetivo de publicar Os Lusíadas em Portugal, instalado numa peça teatral do único Nobel da língua portuguesa, onde podemos acompanhar algumas especulações sobre um fato histórico, a publicação, cujos detalhes desconhecemos.

Saramago aproveita as muitas lacunas desta história, portanto especulável, da volta de Camões ao reino, para discutir o impacto da epopeia através dos tempos. Diferentemente de quando insere Ricardo Reis, transformando o mais clássico heterônimo pessoano de espectador do espetáculo do mundo em personagem, num momento histórico conturbado para discorrer criticamente sobre a ditadura de Salazar1 e os resultados das relações capitalistas – principalmente os conflitos entre países – trata-se aqui de oferecer algo para preencher tais lacunas entre o retorno de Camões a Portugal e a publicação de sua epopeia.

Segundo Umberto Eco, “o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional”2, é o que fazemos ao topar entrarmos no texto, algo que Coleridge chamou de “suspensão de descrença3. Neste sentido, sabendo-se que, segundo relato de Diogo do Couto, Camões conseguiu retornar de Moçambique graças a ajuda de amigos, que Os Lusíadas foi publicado contendo os pareceres do Rei e da Santa Inquisição, sem, no entanto, contar com outros paratextos de autores da época, abre-se a possibilidade para toda a sorte de especulações sobre, por exemplo, que partes da epopeia poderiam ter sido escritas sob a influência daquele momento. Nesse contexto, é aceitável a passagem em que podemos perceber que a senhora Ana de Sá, mãe do poeta, mente sobre já ter se alimentado, a seguir:

Luis de Camões – e vós, minha mãe, não comeis ?
Ana de Sá – comi lá dentro, enquanto estivestes conversando.
Luis de Camões – é verdade?
Ana de Sá – é.”

Através deste diálogo, salta aos olhos a denúncia das condições de pobreza em que se encontrava o povo de Portugal naquele momento, bem como o artista e sua mãe, visto que ele parece ter sido um dos muitos que retornaram sem fazer fortuna com a expansão do império marítimo português, conforme afirmou também Jorge de Sena em seu Discurso da Guarda, proferido no dia de Camões em 1977 – “ regressou (das Índias) em 1570, tão pobre como partira”; o que nos traz à lembrança, novamente, o Velho do Restelo: “ Que promessas de reinos e minas/ D´ouro que farás tão facilmente.”

Permanecendo no campo das especulações sobre os momentos de composição artística, temos na peça um encontro entre Camões e D. Francisca de Aragão, de cuja conversa surge o mote Mas porém a que cuidados?, donde resultaram três redondilhas do poeta. De fato, estas foram publicadas, juntamente com uma “ Carta que o Autor mandou a D. Francisca de Aragão com as glosas acima4 e chama a atenção a coerência elaborada por Saramago para explicar a inspiração que as permitiu serem produzidas. Em cada glosa consitutiu-se um sentido diferente, com o auxílio de mudanças na pontuação, para as quais atribuo a seguinte interpretação:

Em ”Mas porém a que cuidados?” temos dúvidas sobre o que moveria o eu lírico, ou poético, a aventurar-se; quanto a ”Mas porém a quê, cuidados?” vejo dúvidas sobre os motivos que trazem alguém até o eu lírico; enquanto que em ”Mas porém, ah! que cuidados!” fica-me a sensação da recepção e aceitação, por parte do eu lírico, do amor (o cuidado) a ele oferecido. Como podemos observar, em cada caso, quem fala nas glosas está posicionado num lugar diferente diante de algo que a vida lhe oferece, e o fato de haverem tantas possibilidades a partir de um único mote reforça ainda mais a tentação de preencher as muitas lacunas na biografia do poeta Camões.

Há casos na literatura, como Nação Crioula, de Agualusa, e o já citado O Ano da Morte de Ricardo Reis de Saramago, de apropriação de personagens, mas aqui é Camões quem é tornado personagem de uma ficção sobre sua própria vida, instalando-se, através de sua última fala, um questionamento relevante de ser desenvolvido no âmbito da própria epopeia camoniana em relação a Portugal.

A leitura de Os Lusíadas simplesmente como um poema de exaltação aos feitos do povo português, que alargaram com seu projeto expansionista as fronteiras do mundo, embora este fato seja memorável, seria reduzir ao mínimo o alcance da obra, visto que temos uma visão muito mais ampla da historia lusitana, sem falar na beleza dos versos e de certas passagens, como quando o soldado, Lionardo, “ A quem Amor não dera um só desgosto/ Mas sempre fora dele mal tratado.”5, no episodio da Ilha dos Amores, bem como nas reflexões criticas empreendidas ao projeto pelo Velho do Restelo, que é mencionado aqui no texto saramaguiano, “Ó gloria de mandar, ó vã cobiça, dessa vaidade a que chamamos fama..”. 6

Um tema que se destaca em Que farei com este livro? é a critica à influencia da Igreja Católica no governo de D. Sebastião presente em vários momentos, cuja fala “ na India não pensávamos que o reino fosse esta barca sem leme nem mastro “(pg. 33), colocada na boca da personagem Diogo do Couto em conversa com Camões resume bem; uma forma de, sem o dizer abertamente, imputar responsabilidades pelos maus rumos do país a esta poderosa e influente instituição, configurando também uma crítica que cabe pela história de Portugal em vários momentos.

O próprio Saramago, ao escrever essa peça em 1979, se apropria do texto camoniano, na medida em que opõe o momento da escrita da dedicatória à situação de completa insegurança vivida em Portugal, devido à epidemia de Peste Negra, como podemos perceber no trecho a seguir:

( começa a ouvir-se a sineta da galera dos mortos de peste ) E vós, ó bem nascida segurança…( p.35)

Tem-se aqui uma das características mais marcantes da escrita saramaguiana: a ironia, cuja construção é potencializada pela estrutura textual do teatro, que é composta por rubricas, como a do trecho acima, opondo a realidade do momento da escrita ao que estava sendo inscrito na posteridade. Embora deva-se considerar que a mera leitura do texto perca muito da realização plena proporcionada pela encenação, é inegável a oposição gritante entre o governo, representado pelas palavras ”bem nascida segurança”, e a situação lastimável em que se encontrava o país, pela referência aos ”mortos de peste”.

Ao logo de toda a trama desta peça, seja nos diálogos entre Luis e Martim da Câmara, o Cardeal e D. Catarina, Diogo do Couto e Camões, Ana de Sá e seu filho, e em que pese o fato de não terem as personagens se encontrado num mesmo espaço, o contexto é um só: a situação de desgoverno, pobreza e, por conseqüência, doença, instalada em Portugal, agravada pela inoperância de seu soberano. Considerando-se que foi escrita apenas quatro anos após o fim da ditadura salazarista em Portugal, é de se supor uma intenção de denúncia também com relação à atualidade, afinal, haveriam outras possibilidades de tema para a ambientação duma obra que desejasse especular os momentos da escritura de Os Lusíadas.

Ao final da peça, temos a publicação de Os Lusíadas, que, ao contrário do que se poderia supor ou mesmo esperar, além de não trazer benefício compatível ao autor, parece-nos ter feito aumentarem as suas angústias, marcadamente pela consciência da personagem Camões de que o texto publicado não mais lhe pertenceria, caíra no mundo para ser usado, curiosamente aproximando-se do pensamento de Barthes sobre a necessidade da morte do autor para permitir o início da escrita.

Em sua última “ fala” –“ Que farei com este livro?”, temos um questionamento lançado por Camões ao futuro; quase que a afirmação da morte do autor, juntamente com uma espécie de conscientização da própria impotência frente às possibilidades e caminhos da obra ora publicada, bem como a crítica condensada aos modos tendenciosos e, por vezes, deturpados de apropriação com que buscaram usufruir da epopeia, principalmente a ditadura de Salazar, o que bem observou Jorge de Sena em seus estudos de literatura7, ao apontar a existência de uma dialética em Camões, enquanto salienta o fato de terem-lhe imputado a defesa da fé e do império em termos não pertinentes à sua obra.

*Beatriz Helena é pós graduanda em literatura portuguesa da UERJ


Bibliografia

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980.

________________, Obra Completa. Organização, introdução e comentários do Prof. Antonio Salgado Junior. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963.

D´ONOFRIO, Salvatore. Forma e Sentido do texto literário. São Paulo: Atica, 2007.

ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SARAMAGO, José. Que farei com este livro? São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SENA, Jorge in Camões e a Identidade Nacional. Temas Portugueses. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

___________. Dialécticas aplicadas da literatura. Lisboa: Edições 70, 1977.

Notas

1 Refiro-me ao enredo central de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago.

2 Seis passos pelos bosques da ficção, pg. 81

3 Ibdem.

4 In Obra completa de Luis de Camões, organizada pelo Prof. Antonio Salgado Junior, 1963, pg. 468.

5 Os Lusíadas, canto 76, pág. 558.

6 Ibdem, pg. 28.

7 In SENA, Jorge. Dialécticas Aplicadas da Literatura, 1977, pg. 28