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Rosa Regàs, uma ilustre escritora que o Brasil não conhece

A passagem de Rosa Regàs pelo Recife mal foi notada. A não ser por curtíssimas notas onde se anunciava uma espanhola que havia recebido certa vez um Prêmio Nadal, os repórteres locais não foram além do release do Instituto Cervantes. Pior para eles, pior para os amantes da literatura.

Por Urariano Mota*

Em muito breve resumo sobre a escritora, poderiam ter anotado:

Ex- editora de La Gaya Ciencia, trabalhou antes na editora Seix Barral, selo editorial que ocupou importante papel no boom da literatura latino-americana em toda Europa. Rosa Regàs se tornou escritora depois dos cinquenta anos, ao fim de um casamento de mais de 30 de convivência, quando vendeu a sua editora e renunciou “também ao cigarro”, como conta.

Hoje, aos 77 anos, é uma senhora lúcida, elegante, de aparência frágil, mas com um senso de humor sem freios nada politicamente correto. Isso não a impede de espalhar uma indignação contra a injustiça, como uma lembrança e atualização dos republicanos espanhóis da guerra civil. Além do Prêmio Nadal, a mais antiga premiação literária da Espanha, recebeu o milionário Prêmio Planeta, que lhe permitiu, segundo ela, a compra do bem mais precioso: o próprio tempo.

E mais, se os redatores de livros nos jornais ligassem nome e pessoa ao que lêem. Na biografia de Gabriel García Márquez, por Gerald Martin, gravam-se estas linhas:

“Um dos primeiros contatos de García Márquez (em Barcelona) foi Rosa Regàs, nos dias de hoje uma das principais escritoras e empresárias culturais da Espanha, mas, naquele tempo, uma mulher jovem, alta e bonita que se parecia com Vanessa Redgrave de Blow up – depois daquele beijo, de Antonioni, e que era uma das ‘musas’ da esquerda divina.

O irmão, Oriol, importante na área de relações públicas (como tantas pessoas que García Márquez conheceu nos anos no México e na Espanha), também era o dono do Bocaccio, o bar in da Calle Muntaner, onde os jovens belos e perigosos da avant-garde costumavam se reunir.

Aos trinta e poucos anos, sempre de minissaia, Rosa era uma mulher casada e com filhos, mas levava a vida de liberdade dos anos 1960, que escandalizava a maioria tradicionalista e era a viga mestra dos padrões para toda a nova moda cultural. Na época, ela cuidava da área de relações públicas na editora de Carlos Barral, mas, no final da década, teria o próprio negócio: La Gaia Ciencia.

Rosa havia lido Cem anos de solidão e ficara ‘fora de si’: ‘Apaixonei-me perdidamente por aquele livro; na verdade, ainda viajo com ele, como faço com Proust, até hoje, e sempre descubro algo novo. É como Dom Quixote; não tenho dúvida de que perdurará. Mas, naquela época, ele parecia me falar de maneira direta, era o meu mundo. Todos o amamos; era como uma loucura de criança, nós o passávamos adiante para quem não tinha lido’” .

Personagem de Gabriel García Márquez no conto “Só vim telefonar”, Rosa Regàs nos deu esta entrevista:

Ontem, na palestra no Instituto Cervantes, você falou de passagem sobre um livro seu, que você possuía dúvida se era bom, e sobre o qual Gabriel García Marquez teria gostado muito.

– Mas isso é coisa íntima. Não gostaria de falar agora. Eu sou amiga de Gabriel García Marquez, mas não gostaria de falar, porque isso me escapou, não foi para que saia publicado.

Como você conheceu Gabriel García Marquez?

– Eu o conheci quando ele veio morar em Barcelona, depois de publicar “Cem anos de solidão”. Aí por volta de 1969 ou 70. Ele morava na rua Caponata de Barcelona, no bairro de Sarriá, muito bem instalado, mas ninguém sabia. Éramos muito amigos e ainda somos. Foi Carmen Balcells, sua agente literária, que me apresentou a ele. Então eu o apresentei a meus amigos de Barcelona. Foi a época em que estavam ali Mario Vargas, José Donoso e muitos outros escritores latino-americanos. Era uma época gloriosa, fantástica, muito ardente, muito culta.

Agora vamos aos seus livros. Como é que você dá nome a eles?

-Como me ocorre? É difícil, às vezes já escrevi um título, eu o tenho na cabeça antes de começar, como agora num romance, eu já escrevi o título. Mas mudo, por exemplo, o primeiro que escrevi eu gostei muito, o intitulei para sair do sufoco, mas não estou satisfeita. No entanto, por exemplo, em Luna, Lunera, sim. “Luna, lunera” é a canção que os meninos escutam na área de lazer de uma casa velha. No livro é símbolo da fuga do ambiente opressor onde viviam.

E para seu romance Azul, que recebeu o Prêmio Nadal, como você chegou ao nome?

– Não, não o tinha, porque ia dedicar o livro a um amigo, e este amigo me chamava “azul”, por isso escolhi Azul.

E aos nomes dos personagens como você chega?

– Ah, isto é curioso. Sempre as protagonistas começam com A, sempre, não sei por quê. Aurélia, Arcádia… Se me ocorre um nome, sempre começa por A, vou buscando um nome que me parece…quando tenho um personagem um pouco definido, vou buscando um nome…

Ocorre a você mudar o nome do personagem depois de certo tempo, o personagem se chama um nome, depois muda para outro?

– Sim, algumas vezes. No começo lhe dou um nome e à medida que vai se desenvolvendo o personagem, me digo, este nome não dá, e mudo o nome. Algumas vezes.

Você tem mais dificuldade com personagens masculinos ou femininos?

– Não, tanto faz.

Você não tem nenhuma dificuldade em aprofundar um personagem masculino?

– Não, isso nunca me ocorreu.

Você tem tendência a criar mais personagens masculinos ou femininos?

– Tanto faz. Por exemplo, em Luna Lunera, os personagens, na maioria são masculinos. Às vezes quando o romance se explica na primeira pessoa, às vezes tem mais importância o personagem da pessoa que o explica.

Em seus livros, quando você escreve como o narrador na primeira pessoa, essa primeira pessoa é feminina ou masculina?

– Às vezes feminina, às vezes masculina. Quero dizer que para um escritor, se é mulher ou homem, tanto faz escrever como homem ou mulher. Temos escritores homens que escreveram Madame Bovary, Ana Karenina, e são homens, não tiveram nenhuma dificuldade, não tem nada a ver, isso é parte da criação. Há novelas espanholas esplêndidas narradas por homens. O escritor nunca conta a verdade, conta a sua visão das coisas. Se contasse a verdade, seria Deus.

Ontem, em sua palestra, eu lhe perguntei que escritores tocavam o seu coração, você respondeu Proust. Depois acrescentou: quando está escrevendo um livro, gosta de ler Proust, que é pra não ser influenciada. Como é isso?

– Bem, como tenho muitos livros em casa, quando leio um livro e escrevo, não me dou conta que estou escrevendo como o livro que leio. Por isso, quando estou escrevendo, é difícil que entre em contato com um livro poderoso. Mas com Proust, não, porque Proust eu o conheço muito bem. Então não tenho surpresas, já sei, conheço o seu ritmo, conheço a sua música, e o conheço tanto que não o copio. De Proust aprendi muitas coisas. Aprendi a me entreter na prosa, a não ter pressa, a querer narrar as coisas como um interlúdio musical.

Da grande obra de Proust, que é um romance escrito em vários volumes, que revelação maior ele lhe deu?

– Descobri com Proust, à margem de suas belas histórias, a música de sua prosa, o poder da memória na criação, a complexidade de suas personagens. É um prazer inesgotável, constante, que se repete não importa quantas vezes o leia. Posso abrir qualquer dos seus livros, em qualquer página, sempre encontro esse imenso prazer.

E o que ele escreveu sobre a homossexualidade, pra você, não foi uma revelação, uma descoberta?

– A homossexualidade? Não, não foi uma revelação nem uma anormalidade. Durante minha infância, à época do ditador Franco, quando reinava na Espanha a moral da Igreja Católica, minha mãe viveu com uma mulher uma bela história de amor. Isso durou cinquenta anos, até que ambas morreram, com meses de diferença, em 1999. Um de meus livros, Memória de Almator, está dedicado a elas: “A minhas mães, Mariona e Matilde”.

Em palestras, ou quando conversa, você é uma pessoa dotada de ironia, autoironia, bem-humorada. No entanto, por escrito, você declarou que o mundo é mais triste do que feliz, porque existe muito mais infelicidade que felicidade.

– A visão que tenho do mundo é absolutamente pessimista, não tenho nenhuma esperança na humanidade, mas isso não me impede de estar ao lado dos ofendidos, nem que me divirta quando estou com um livro ou escrevendo.

Eu li uma frase em que você dizia: gostaria de ter vinte anos pra voltar a andar de minissaia…

– É verdade. É uma maneira de dizer que não voltaria aos vinte anos, pois aos vinte anos era muito desgraçada, não sabia quem eu era, o que queria, o que eu gostava era minissaia. Por isso, é uma brincadeira, mas para indicar que realmente estou contra a volta, contra as pessoas que dizem que voltariam aos vinte. Eu voltaria aos trinta e cinco, aos 40, mas aos 20, não, é um descalabro, o instinto te leva a uns dramas brutais, “não posso mais”, depois de 30 minutos estás rindo. Te enganas constantemente, crês que estás no fim do mundo…

Você ontem na sua palestra não destacou o significado de ganhar o prêmio Planeta. Pesquisei e vi que, depois do Nobel de Literatura, é o prêmio mais importante que há…

– Não. O Planeta é importante economicamente falando, mas não é o mais importante. Há prêmios franceses e norte-americanos que são, do ponto de vista do prestígio, mais importantes. Mas do ponto de vista do dinheiro o Planeta é o mais importante.

Ficou rica depois do Planeta?

– Eu? (risos) Não.

Mas quando recebeu esse prêmio, você não se disse 'nunca mais terei preocupação com dinheiro'?

– Não, não me disse isso. Eu disse, em público: estou muito contente de ganhar este prêmio, porque ajudarei muita gente, e porque me dará a oportunidade de comprar tempo, que é o que na verdade eu preciso.

Antes de chegar ao Brasil, que imagem você tinha daqui?

– Vou contar uma coisa: estive no Brasil uma vez, pois um amigo me indicou o carnaval do Rio, em 1963. Eu tinha vontade de vir, mas meu marido não me deixava. Então vim ao Brasil por conexões, Lisboa, Nova York, México e Rio de Janeiro. Cheguei ao Rio e me entreguei a dançar, acho que dancei todas as noites, até o dia seguinte. Essa é minha primeira impressão, fantástica. Na época, não havia perigo, dançava todas as noites, fiquei amiga de todo o mundo, bebi, não havia perigo de nada. Começava a dançar às oito e seguia até o fim.

Você parte amanhã. Que imagem leva do Recife?

– Posso me enganar, só passei quatro dias, mas creio que é um país com muitíssimas diferenças sociais e econômicas, diferenças que se dão em toda a América Latina, e inclusive nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, há 25% da população abaixo da linha de pobreza, e isto não se divulga.

Aqui, me dá a impressão que há os ricos, muito ricos, e os muito pobres, que sobrevivem como podem. Mas no geral tenho a impressão, talvez pelo caráter do brasileiro, que são pessoas que mesmo tendo muitas dificuldades, isso não as impede de gozar a vida.

Eu vejo isso olhando daqui do hotel. Há um movimento de placidez, por dizer assim, ou parecido, e posso me enganar, não posso definir um país assim, de passagem, mas me parece que as pessoas não estão dispostas a deixar de ser felizes. E se só podem ir à praia, vamos à praia.

Então Rosa Regàs ri, sorri, encerra a entrevista, e parte para aproveitar o seu último sábado no Recife.

* Urariano Mota é jornalista e escritor