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Por que o SUS não sai da UTI?

Em tempos de batalha eleitoral, o tema da saúde -tão caro à população- volta a ser destaque. Permeia discursos e propagandas, ajuda a contrapor projetos em uma campanha cada vez menos programática. E traz à tona deficiências de um sistema que, se é considerado o maior programa de saúde pública do mundo, faz pessoas esperarem meses por uma consulta. Os avanços do Sistema Único de Saúde (SUS) são incontestáveis, mas ele ainda padece de problemas crônicos, como falta de verba e gestão deficiente.

A Constituição de 1988, que criou o SUS, prevê que ele seja integral, universal e equânime. Ou seja, que atenda aos mais de 190 milhões de brasileiros da forma mais ampla possível. Vinte e dois anos após seu nascimento, contudo, o sistema ainda é marcado por muitas contradições.

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Fruto, em grande parte, da demora na construção de uma política de Estado eficiente para a Saúde e refém das enormes desigualdades regionais do país, o mesmo SUS que é responsável pelo maior programa de imunização do mundo, não é capaz de evitar que pessoas ainda morram de dengue, por exemplo.

Longas filas de espera para uma cirurgia, um exame ou uma simples consulta, hospitais lotados, falhas na prevenção de doenças. Estes são apenas alguns dos males que a população tem que enfrentar. Para o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, o principal entrave é a falta de verbas, o chamado subfinanciamento da Saúde.

“O orçamento do Ministério da Saúde é de R$ 60 bilhões. Temos outros R$ 60 bilhões em gastos estaduais e municipais. Isso dá mais ou menos 650 reais per capita ao ano”, contabiliza o ministro, em recente entrevista à revista Carta Capital de 1º de seetembro, na qual comparou o valor com as despesas da classe média com planos de saúde privados: cerca de 1,4 mil reais por pessoa. “Na Inglaterra, 80% do gasto em saúde é público. No Brasil, é o inverso: 40% do gasto é público e 60%, privado”, completou.

De acordo com o Ministério da Saúde, o problema da falta de recursos para o setor é agravado pela ausência de regulamentação da Emenda Constitucional 29 e também pela extinção da CPMF, que, ao menos teoricamente, significava R$ 40 bilhões para aliviar as contas do SUS.

A Emenda 29 estabeleceu que 12% das receitas dos estados, 15% dos municípios e um percentual ainda não definido da União devem ir para a saúde. Mas apenas a sua regulamentação vai definir claramente o que pode ser considerado gasto com saúde e estabelecer fontes permanentes de receita para investimentos no SUS. Essa é uma bandeira que, nos discursos, une até os adversários na disputa presidencial, mas, mesmo assim, o projeto está estacionado na Câmara desde 2008.

“Na prática, as cidades todas gastam mais, mas nem todos os estados investem o que deveriam, porque não está definido claramente o que é gasto com saúde. Exemplo: os R$ 70 milhões gastos pelo Paraná com distribuição de leite para as crianças. O estado coloca isso na contabilidade de saúde. Isso não deveria acontecer, porque senão tudo pode ser gasto em saúde”, defende o ministro.

Já as despesas da União com Saúde têm sido calculadas contabilizando-se os recursos correspondentes ao que foi investido no ano anterior, mais o percentual referente ao crescimento nominal do PIB. O dado concreto dos gastos, contudo, tem variado muito de acordo com a fonte. Há quem diga que isso representa 4% do PIB; outros atestam ser até 6%.
“Num ano de crescimento econômico, (esse modo de calcular) é bom. Num ano de crise, é péssimo. E a demanda por saúde não para de crescer, aumenta 2% ao ano”, diz Temporão.

De acordo com o presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Cid Carvalhaes, existe uma estimativa desejável de que o investimento em saúde deveria ser de 10% do PIB. Ele, contudo, aponta outros problemas no avanço do SUS. “Há uma insuficiência crônica de recursos, mas existe também uma má distribuição e má aplicação desses recursos que já estão disponíveis”, avalia.

Má gestão

“São contradições próprias da falta de uma política de Estado para a saúde”, diz Carvalhaes. Segundo ele, não há planejamento no uso dos recursos e o resultado é um sistema que ainda não consegue dar conta das demandas da população, em um país com enormes diferenças regionais. “Não há um planificação da atenção básica da saúde, então em alguns lugares ela é fantástica e em outros nem existe. O programa de saúde da família está implantado de maneira falha, existe dificuldade de capacitação de gestores e não há controle social eficiente”.

Cid Carvalhaes explica que, em um país com as dimensões do Brasil e com uma meta ousada de atender a todos os cidadãos, há realidades variadas. “Há lugares com programas de excelência e outros de má qualidade. São situações muito diversificadas, que não podem ser tratadas de forma igual. Temos um programa como o de DST/Aids, um dos mais bem-sucedidos do mundo, mas, por outro lado, não se combate a malária, a esquistossomose, a doença de chagas”, enumera.

Irregular também é a oferta de médicos, por região e especialidades. “Algumas regiões são privilegiadas e outras sacrificadas. Também falta uma política de recursos humanos que atenda ao conjunto das necessidades. Há locais em que falta fisioterapeuta, mas sobra nutricionista. Em outros, há muitos médicos, mas não tem enfermeiros. É grave”, alerta.

Diferente do que ocorre em outros países, o Brasil não regula de forma efetiva a oferta de formação de profissionais da saúde. Em locais como a Espanha, as vagas de residência para as especialidades são definidas de acordo com a necessidade do sistema público.

Para tentar suprir o problema da interiorização dos serviços de saúde, por exemplo, alguns especialistas defendem a prestação de serviço social obrigatório, por parte de todos os médicos recém-formados. Ao sair da universidade, esses profissionais teriam que prestar serviço remunerado no SUS em locais onde houver demanda.

A proposta, contudo, é contestada pelas entidades médicas. Elas defendem que a instituição de uma carreira de Estado para o médico, com a devida atenção às condições adequadas para o desempenho das suas atividades nos mais distantes e inóspitos municípios do país, seria uma solução, no sentido de fixar profissionais naqueles locais.

Na busca por atender aos princípios do sistema, há quem aponte também a necessidade de mudança de foco. Muitos indicam que, no Brasil, apesar de alguns avanços nesse sentido, ainda há uma visão “hospitalocêntrica”, voltada para tratar doenças já instaladas, quando, na verdade, seria tão importante quanto atuar na promoção à saúde, prevenindo doenças. Nesse sentido, a estratégia de saúde da família, que hoje atende mais de 50% da população, precisaria estar no centro da ação dos gestores, até porque ajudaria a evitar procedimentos de alto custo.

Herança do estado mínimo

Nessas mais de duas décadas de existência, o SUS esteve à mercê dos humores de governos e, durante muito tempo, pagou o preço pela adesão de políticos à máxima do “estado mínimo” e às ações que dão visibilidade, mas não resolvem problemas estruturais. O sistema de hoje é, portanto, reflexo de anos de pouco investimento, precarização do trabalho da saúde, adoção de políticas fragmentadas e sem articulação, dependência de produtos estrangeiros, nenhum incentivo ao controle social.

“Programar uma política da envergadura do SUS em pleno processo de implementação do ’estado mínimo’ é impossível. Isso contribuiu decididamente para os problemas do SUS nos primeiros 14 anos. Como desenvolver uma política de caráter público, universal, igualitário e participativo ao mesmo tempo em que o estado brasileiro desenvolvia-se como propulsor de privatizações e repressor da participação popular?”, questiona Maria Eugênia Cury, chefe do Núcleo de Vigilância Pós-uso da Anvisa, que foi do Conselho Nacional de Saúde, representando a Federação Nacional dos Farmacêuticos.

Maria Eugênia avalia que políticas neoliberais prejudicaram o controle social do SUS. “A estruturação do SUS exige decisões políticas, nas três esferas de governo, de pactuações e de governança, que muitas vezes sofrem interferências, que submetem as ações de saúde a interesses alheios às principais necessidades. O mecanismo do controle social é fundamental para equilibrar essa equação. O poder desmantelador que a política neoliberal implementou sobre os movimentos sociais enfraqueceu esse poder, fundamental para a evolução do SUS”, critica.

Público x privado

A falta de estrutura da rede pública faz com que, por meio de convênios, hospitais particulares possam prestar serviços ao SUS, de maneira complementar. Mas há queixas de que, este tipo de atendimento muitas vezes peca na qualidade. ”Os grupos privados têm a lógica do lucro, que muitas vezes significa sacrifício da qualidade. Essa complementação é uma coisa que, às vezes, ajuda, mas, de maneira geral, compromete mais o sistema. Principalmente quando o interesse mercantil fica acima do interesse da comunidade”, explica Cid Carvalhaes, que defende o fortalecimento do serviço público.

As falhas do SUS, aliás, terminam por prejudicar ele mesmo. É que, diante delas, quem pode pagar, opta por fazer um plano de saúde particular. E os gastos com saúde geram renúncia fiscal a seus usuários. Ou seja, com usuários optando pelo sistema privado, o Estado arrecada menos e, portanto, tem menos verba para investimentos públicos. Sem contar que, por lei, os planos de saúde deveriam restituir o SUS, quando um de seus “clientes” utiliza os serviços da rede pública, mas isso não acontece.

“Outro aspecto que precisa ser considerado é o quanto os governos comprometidos com a política neoliberal privatizaram os serviços de saúde. O investimento teve uma lógica de priorização de repasse de dinheiro público para o setor privado”, aponta Maria Eugênia.

De acordo com as entidades médicas, o sistema também tem sido vítima de administrações que defendem a transferência da gestão de instituições públicas para o comando de Organizações Sociais. “Aí existe uma série de problemas. Falta controle do que está sendo feito, não há fiscalização. Apenas há um controle contábil: eu te entreguei 10 unidades monetárias e você me entregou um recibo, dizendo que gastou aquilo. Mas não há interação com entidades médicas e sociais, não existe debate sobre a aplicabilidade desses recursos”, lamenta o presidente da Fenam.

“A partir de 1990, a política econômica tem definido uma prática de subsídios públicos ao mercado de planos e seguros privados de saúde, que vão desde isenção tributária a hospitais privados credenciados por operadoras de planos privados, até participação do orçamento público no financiamento de planos privados aos servidores públicos, deduções no Imposto de Renda dos consumidores de serviços privados de saúde, e o não ressarcimento das operadoras privadas previstos na em lei”, enumera Maria Eugênia.

Da Redação,
Joana Rozowykwiat