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Manoel de Barros: Matéria de Poesia

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A Antônio Houaiss (1974)


 


Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia


 


O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia


 


Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia


 


Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia


 


As coisas que não levam a nada
têm grande importância


 


Cada coisa ordinária é um elemento de estima


 


Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral


 


O que se encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia


 


As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia


 


Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia


 


As coisas que os líquenes comem
– sapatos, adjetivos –
tem muita importância para os pulmões
da poesia


 


Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia


 


Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso


 


Tudo que explique
     o alicate cremoso
      e o lodo das estrelas
serve demais da conta


 


Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada


 


Tudo que explique
     a lagartixa de esteira
     e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia


 


O que é bom para o lixo é bom  para poesia


 


Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
     tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
      sabe a destroços


 


As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora


 


Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda)- Manoel de Barros
Editora Civilização Brasileira – edição 1990