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Italo Bianchi: Do feuilleton à telenovela

Machado de Assis, um dos mais admirados escritores brasileiros, redigiu (quem diria?) uma boa parte de sua obra em forma de folhetim – ou de feuilleton, como se dizia, na época, em bom francês.

Desprezado pelos críticos, o gênero consistia em uma literatura acessível às pessoas de poucos saberes. Tratava-se, sempre, de uma trama dramática infindável, recheada de situações e personagens paralelos, cheia de sobressaltos, publicada em capítulos nos rodapés dos jornais. A narrativa nunca dispensava uma situação final de suspense para provocar a expectativa do desenrolar da história nos próximos capítulos. E quanto maior fosse a bisbilhotice gerada pelo destino dos personagens, maior era a venda de jornais que publicavam este ou aquele romance. Quem achar que esse esquema era muito parecido com o das novelas de tevê de hoje em dia acertou em cheio. Acontece, porém, que estou falando de um gênero de entretenimento de mais de 100 anos atrás. Chovendo no molhado? Isto é, quase todo mundo sabe disso? É provável. Mas quase todo mundo deve desconhecer alguns detalhes, como por exemplo, a diferença da quantidade de profissionais envolvidos na produção do primeiro e do segundo formato. Aqui vai: o folhetim precisava de quatro ou cinco colaboradores, incluindo o autor e aquele compositor tipográfico que sabia decifrar melhor os garranchos do manuscrito do dono da história, enquanto a telenovela chega a utilizar 183 profissionais especializados (contadinhos, vide “Sinhá Moça” no site da TV Globo). Agora se, por malvadeza, procurássemos comparar a diferença do saldo emocional do consumidor em função desses números… Mas isso não vale, é só brincadeira.



 
Bem mais sério e interessante seria analisar o que acontece com centenas de obras criadas para serem desfrutadas através de determinado meio de expressão e passam a ser transpostas e adaptadas para outros meios. Evidentemente, isso é um assunto exaustivo e cheio de espinhos, mais adequado para uma tese acadêmica do que para uma crônica jornalística. Mas a gente pode dar alguns toques, usando o velho truque dos “por exemplo”. Por exemplo, o Dom Quixote – a história e os personagens – talvez sejam diamantes, cujas facetas já lapidadas iluminaram a transposição para todas as formas possíveis (composição musical, balé, peça teatral… até obras de artes plásticas).



 
Descendo do pedestal de uma obra-prima, podemos analisar agora um caso trivial, quero dizer uma destas adaptações que vêm acontecendo às dúzias, sobretudo para serem exploradas pelo meio televisivo, sedento de temas cativantes, um artigo que parece estar em falta nas prateleiras de produtos de fácil consumo. Como exemplo, escolhi “Sinhá Moça”, citada acima, inclusive porque eu, pessoalmente, tenho algo a ver com a carreira dessa história.



 
“Sinhá Moça” foi um livro editado no Brasil na década de 40 do século 20, de autoria da senhora Maria Dezonne Pacheco Fernandes. Gente fina, educada, culta, que certamente não mereceria a classificação de grã-fina, termo depreciativo que, na época, correspondia ao tratamento atual de perua. O romance, que teve acolhimento discreto por parte do público, narrava uma história do tempo do abolicionismo. Ou melhor dito, mais uma história, já que o tema foi amplamente explorado por autores pós-abolição. Mas para continuar a história dessa história, preciso agora lembrar que em 1951 foi fundada, em São Paulo, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz com pretensões hollywoodianas, que, no entanto, teve uma vida efêmera. Entre os recursos nos quais ela precisou investir, destacou-se a “importação” de uma equipe técnica competente para exercer as funções capitais. Formou-se assim uma “legião estrangeira” do melhor gabarito, mas com perspectivas de sucesso desastrosas. Como membro da equipe, estava eu, italiano, o mais novinho, na função de cenógrafo. Certo dia, começo de 53, fui chamado pela diretoria que me confiou uma missão diplomática. Tratava-se de fazer uma visita à autora de “Sinhá Moça” para que concedesse os direitos de uma adaptação cinematográfica da obra que ela já tinha negado. Motivo: a distinta senhora achava o cinema nacional uma merda (foi o que ela pensava, sem usar essa palavra). Pronto. Gastando o meu português já um pouco afiado, esbanjando um certo charme à la Frank Sinatra e exibindo uma bela gravata de seda italiana, lá fui eu. Gastei tudo o que pude de simpatia e boas maneiras, tomei um impecável chá das cinco e voltei com a autorização no bolso. Produziu-se então o filme que, infelizmente, não faria falta à história do cinema brasileiro. Mesmo assim, em 82 foi produzida uma telenovela com a trama de “Sinhá Moça” e, agora, está sendo realizado um remake da mesma novela. No entanto, não posso opinar sobre isso, porque não sou consumidor do gênero. Assim sendo, também, não posso generalizar a seqüência das minhas indagações qualitativas sobre as transposições e adaptações de obras criadas para determinados meios de expressão. Fica o dito pelo não dito.