Sem categoria

Célula sintética: passo gigante para a ciência e a humanidade

Cientistas lograram criar vida artificial num tubo de ensaio, um feito que promete revolucionar a biotecnologia. A pesquisa abre a via para criar novas formas de vida, geneticamente programáveis para inúmeras funções, como produzir combustível, ou vacinas, ou novas formas de alimento e água potável. Mas o estudo também gera preocupações éticas sobre a tecnologia cair em mãos erradas e, por exemplo, ser usada em armas biológicas, ou para cientistas "brincarem de Deus" com a vida.

Por Steve Connor*


A equipe de pesquisadores, liderada por Craig Venter, que antes dirigiu um dos coletivos que decodificaram o genoma humano, disse ter criado vida sintética, na forma de uma nova espécie de bactéria, operando sob inteiro controle de um código de instruções genéticas definidas pelo homem, originalmente armazenadas num computador.

"Esta é a primeira célula sintética"

Eles sintetizaram o genoma de uma célula de bactéria e o usaram para "reiniciar" a célula vazia como uma nova espécie de bactéria, que desde então se reproduz livremente, como se portasse o seu código próprio de instruções genéticas e não um fabricado em laboratório.

"Esta é a primeira célula sintética que já foi feita, e podemos chamá-la sintética porque a célula é inteiramente derivada de um cromossomo sintético, feita com quatro frascos de produtos e um sintetizador químico, a partir da informação de um computador", disse Venter.

"Partimos de uma célula viva, mas o cromossomo sintético transforma integralmente essa célula viva em uma nova célula, sintética", agregou ele.

"Passo de criança" e "passo de gigante"

Venter já sonhava em criar vida artificial 15 anos atrás, quando conduziu um estudo que produziu o primeiro genoma decodificado de um micróbio. Depois de anos tentando estabelecer o patamar mínimo de genes necessários à vida, e muitos outros anos tratando de suplantar as dificuldades técnicas de construir um genoma inteiramente artificial, ele finalmente teve êxito em sua visão.

"Isto é ao mesmo tempo um passo de criança e um passo de gigante. De gigante porque, até ele ser dado, se ia funcionar era apenas uma hipótese. De criança no sentido de toda a distância que se deve percorrer antes de poder produzir combustível com dióxido de carbono ou ter novos medicamentos ou fontes de alimento", disse Venter.

"É uma tecnologia nova, porém nos fala tanto quanto qualquer outra coisa a respeito da definição de vida. Nós a consideramos um sujeito filosófico capaz de partir da informação em um computador, construir o cromossomo quimicamente e torná-lo ativo. Isto nunca foi feito antes. Mudou as minhas definições sobre a vida e como funciona sua dinâmica. Basta por o novo software na célula, e ela começa a produzir as novas proteínas codificadas pelo software e cria uma célula nova. Portanto, a vida é muito mais dinâmica do que muita gente concebe; e o processo dinâmico é totalmente controlado pelo software da vida, que é o DNA", disse Venter.

Para críticos, Venter "faz o papel de um deus"

Alguns estudiosos de ética, contudo, expressaram preocupações. "Venter não está meramente copiando a vida artificialmente… ele está assumindo o papel de um deus, criando vida artificial que jamais poderia ter existido naturalmente", disse Julian Savulescu, professor de ética na Universidade de Oxford.

O professor John Harris, especialista em ética biomédica da Universidade de Manchester, comentou: "É uma proeza intelectual que Venter admite ter grandes potencialidades tanto para o bem como para o mal. Enquanto Venter é específico quanto aos possíveis benefícios, é impreciso no que toca aos perigos. Essa obra desperta entusiasmo mas apenas até o momento em que os riscos merecerem atenção proporcional aos benefícios."

Erro de uma letra causou atraso de três meses

A pesquisa, publicada no jotrnal Science, foi realizada por uma equipe de 24 cientistas, no Instituto Craig Venter, em Rockville, Maryland. Eles contaram com uma verba de US$ 40 milhões. Uma parte veio do Departamento de Energia dos Estados Unidos, outra de alguns laboratórios farmacêuticos interessados em novos modos de fabricar vacinas e outros medicamentos, ou empresas petrolíferas desejosas de desenvolver novas fontes de energia.

Os cientistas usaram o genoma conhecido de um micróbio chamado Mycoplasma mycoide para construir a sua própria versão sintética, com a forma de um cromossomo circular, uma molécula de DNA composta por uma sequência de 1.080.000 "letras" do alfabeto genético de quatro caracteres. Estas foram reunidas a partir de fragmentos menores, feitos em uma "máquina de genes" de laboratório.

Os pesquisadores então instalaram esse cromossomo sintético na célula de uma outra espécie de bactéria, a Mycoplasma capricolum, que teve o seu próprio cromossomo removido. Após meses de tentativa e erro – um equívoco em uma das letras em um milhão provocou três meses de atraso – os cientistas conseguiram "reiniciar" as células vazias, de modo que as células da Mycoplasma capricoide se reproduzem normalmente, porém sem nenhum dos genes e proteinas originais, apenas com as da Mycoplasma mycoides.

"Uma nova era na biotecnologia"

Cientistas britânicos aplaudiram a façanha como um dos mais importantes momentos da pesquisa do genoma. "É um marco no estudo, representa um avanço de primeira ordem na biologia sintética", Paul Freemont, professor do Imperial College de Londres e um dos diretores do Centro de Biologia Sintética.

"O resultado proporciona a 'prova do conceito'. As aplicações da nova tecnologia são enormes e pode-se dizer que este é um passo decisivo na industrialização da biologia sintética, conduzindo a uma nova era da biotecnologia", acrescentou Freemont.

O diretor executivo do Conselho de Pesquisa das Ciências Biotécnicas e Biológicas, Douglas Kell, disse que o estudo era um importante passo no desenvolvimento de uma nova era da ciência. "A biologia sintética é um campo raltivamente novo e há na comunidade global de pesquisadores alguma ciência realmente de vanguarda acontecendo", agregou.

Contudo, outros observadores condenaram o estudo, considerando que foi promovido com expectativas irrealistas e poderia terminar criando mais problemas do que pode resolver.

"O realmente perigoso são esssas ambições dos cientistas pelo total controle sobre a natureza, que muita gente descreve como 'bricar de Deus'. A pretensão de recriar a natureza vem de braço dado com a pretensão do monopólio dos direitos autorais sobre ela", disse David King, do Human Genetics Alert.

"A compreensão da biologia pelos cientistas fica bem aquém das suas capacidades técnicas. Já aprendemos bastante, às nossas custas, sobre os riscos que essa lacuna acarreta, para o meio ambiente, o bem estar dos animais e a saúde humana", disse King.

* Editor de ciência do diário inglês  Independent; fonte: http://www.independent.co.uk; intertítulos do Vermelho