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Trabalho escravo: uma herança perversa do capitalismo brasileiro

O Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir a escravidão, o que ocorreu em 13 de maio de 1888, dia em que a Lei Áurea foi sancionada. A herança do antigo regime, porém, não desapareceu. Em pleno século XXI, o trabalho escravo ainda é uma infame realidade para milhares de trabalhadores e trabalhadoras, uma mancha vergonhosa na economia nacional, notada principalmente (embora não só) nas áreas rurais.

Trabalho escravo

Aos poucos, após a Lei Áurea, as relações de trabalho características do escravismo foram cedendo espaço ao capitalismo, cujo pressuposto é a existência do trabalhador livre e despojado de meios de produção. Todavia, o trabalho escravo sobreviveu ao novo modo de produção, atravessou o século XX e amanheceu vivo no terceiro milênio, revigorado pela crescente desregulamentação das relações entre capital e trabalho, promovida pelo neoliberalismo.

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Impunidade

O governo Lula tem se empenhado com seriedade no combate a esta prática hedionda, mas os interesses que a sustentam são poderosos e renitentes. Além disto, as ações públicas que se desenvolvem no Brasil neste sentido são insuficientes, conforme afirmou o secretário de Assalariados e Assalariadas Rurais da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag), Antônio Lucas Filho, em entrevista ao nosso portal reproduzida nesta reportagem.

As punições são leves face ao crime, o que torna comum a reincidência, e nossa morosa “Justiça” não raro é complacente ou mesmo cúmplice com os criminosos, geralmente muito bem situados na pirâmide social. A fiscalização deixa a desejar e a influência conservadora no Congresso Nacional também protege o trabalho escravo.

Superexploração

Uma das marcas registradas do capitalismo tropical é precisamente o grau superior de exploração da força de trabalho pelo capital. Isto explica, em parte, a sobrevivência de vestígios do antigo regime nas relações sociais modernas, especialmente no campo, até hoje carente e clamando por uma reforma agrária.

As empresas brasileiras praticam baixos salários e altas jornadas, nem sempre se pautam pelo respeito à legislação, em geral abominam os direitos sociais e a regulação das relações trabalhistas. Os capitalistas falam, é claro, em nome da liberdade (entre desiguais) e do liberalismo, da competitividade e do desenvolvimento. Afinal, jornadas longas, ampliadas pelas horas extras, “flexibilidade” e baixos salários foram “o verdadeiro motor do crescimento econômico brasileiro dos anos 1930 até os anos 1980”, conforme observou o sociólogo Sadi Dal Rosso (1).

Resistência

O caráter antissocial do capital e do capitalismo é notório. O trabalho escravo é o aspecto mais degradado e desumano do sistema. É um recurso que os empresários utilizam, especialmente no chamado agronegócio, para ampliar ainda mais o grau de exploração (ou extração de mais-valia, para usar um conceito consagrado por Karl Marx), de forma a maximizar o lucro.

Representantes do patronato que apela a este tipo de exploração gostam de negar a existência do trabalho escravo no Brasil, como fez a senadora Kátia Abreu, presidenta da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em recente entrevista à revista “Veja” (2). Um sinal, entre outros, da resistência das classes dominantes a medidas mais severas para combater o mal pela raiz.

Grandes empresas

É evidente que o trabalho escravo contemporâneo não possui as mesmas características do passado, mesmo porque a Lei Áurea de fato aboliu o direito de propriedade de um ser humano sobre o outro. Mas as relações de trabalho forçado, com novas características, infelizmente ainda persistem.

Há os que alegam que isto ocorre marginalmente, envolvendo apenas alguns empresários particularmente malvados ou inescrupulosos. Também isto não é verdade. A cadeia do trabalho escravo envolve a participação direta e indireta de grandes empresas, incluindo multinacionais como o Grupo Cosan e a JBS Friboi.

PEC do trabalho escravo

A razão maior para a persistência desta herança perversa do capitalismo brasileiro é a força política da “Casa Grande”, concentrada sobretudo na intitulada bancada ruralista. Esta é hostil a toda e qualquer mudança progressista na legislação neste e noutros terrenos. Obstrui a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, que prevê a expropriação da propriedade em que for constatada a prática de trabalho escravo, e vocifera até contra a “lista suja” promovida pelo Ministério do Trabalho para denunciar empresas e empresários flagrados neste tipo de crime contra a força de trabalho.

A isto se soma, como salientou o dirigente da Contag, a pobreza e ignorância das vítimas, em sua maioria trabalhadores sem-terra e sem emprego, migrantes analfabetos, duros e lesos, que se submetem por necessidade e ingenuidade à exploração inescrupulosa dos intermediários de mão-de-obra. Mesmo quando resgatados pelo poder público, o trabalhador “sem qualificação nem escolaridade” tende a se submeter à mesma situação degradante. “O Estado tem de ter políticas públicas para isto”, cobra Antônio Lucas.

O problema não é só no Brasil, onde se estima em algumas dezenas de milhares o número de vítimas. Estudo da Organização Mundial do Trabalho (OIT) estima em mais de 12 milhões o número de trabalhadores submetidos à condição de trabalho que pode ser caracterizada como forçado ou escravo no mundo.

É o que o leitor e a leitora do Vermelho poderão perceber no conjunto de matérias que compõem esta reportagem especial sobre trabalho escravo no Brasil.

Da redação, Umberto Martins