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Maria Amélia: viúva de Sérgio, mãe de Chico e "lulista" declarada

A primeira parte do documentário Raízes do Brasil (2004) se propunha a escarafunchar a vida familiar e social de Sérgio Buarque de Hollanda. Quem sobressaiu, porém, não foi ele — mas, sim, sua viúva, Maria Amélia, a Memélia. Não que o cineasta Nélson Pereira dos Santos tenha errado a mão. O “problema” é que quase todos os entrevistados associavam de pronto um dos maiores intelectuais da história do país à sua companheira.

Por André Cintra

Lula e Memélia

Uma das histórias que expressam a lealdade e a presteza de Memélia diz respeito à produção do livro Raízes do Brasil. O prazo para entregar o livro era curto, e Sérgio Buarque estava às voltas com outras demandas profissionais, como o cargo de professor assistente da Universidade do Distrito Federal. Memélia não teve dúvida, nem cerimônia, e datilografou página por página dos originais. “Ele escrevia lá, no tempo que tinha livre, e me trazia. Eu resolvi ser a noiva boazinha. (…) Eu passava à máquina direitinho e devolvia”, conta ela no documentário.

O livro foi publicado em 1936. No final do mesmo ano, a 28 de dezembro, veio o casório. Memélia — que se chamava Maria Amélia de Carvalho Cesário Alvim — virou Maria Amélia Alvim Buarque de Hollanda. Tiveram sete filhos — Heloísa (Miúcha), Sérgio, Álvaro, Francisco (Chico Buarque), Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Cristina. “O que me impressiona é como essa prole foi criada. Para Sérgio se dedicar aos livros, Maria Amélia garantia a retaguarda familiar”, chegou a declarar Nélson Pereira.

Sérgio e Memélia viveram juntos por 46 anos — a maior parte deles num chalé situado no número 35 da Rua Buri, no Pacaembu, em São Paulo, onde a família Buarque de Hollanda passou a residir em 1956. Depois do Golpe de 1964, a casa se tornou um flanco de resistência ao regime militar. Já no começo de 1980, enquanto a ditadura esmorecia, Sérgio ajudava a fundar o PT — a legenda liderada pelo ascendente líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. O historiador morreu pouco tempo depois, em 1982, aos 79 anos, sendo velado na própria casa.

Viúva, Memélia decidiu deixar a Rua Buri. Dona de uma memória detalhista e de um acervo com centenas de materiais sobre o marido, viria a escrever Apontamentos para a Cronologia de Sérgio, que serviu de base para o roteiro do documentário Raízes do Brasil. Sob seus cuidados, a obra de Sérgio Buarque foi catalogada por Antonio Candido e levada a Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda da Unicamp.

Depois da morte do marido, foi com Lula que Memélia preservou uma de suas grandes amizades. Nas eleições presidenciais de 1989, ela fez questão de ser a primeira pessoa a fazer doações para a campanha do candidato petista. O cheque que entregou ao comitê de Lula, por meio de Frei Betto, tinha um valor mais do que simbólico: a pensão que recebia como viúva de Sérgio Buarque.

Em janeiro de 2010, Maria Amélia comemorou cem anos. Já fazia algumas décadas que a mulher (e depois viúva) de Sérgio Buarque tinha virado “a mãe de Chico Buarque”. Mas foi por méritos exclusivamente seus — e de mais ninguém — que a festa reuniu toda a família Buarque de Hollanda, incluindo 13 netos e 12 bisnetos, mais o arquiteto e amigo também centenário Oscar Niemeyer, o crítico literário Antonio Candido e o agora presidente Lula.

Meses antes de seu último aniversário, numa entrevista ao jornal O Globo, Memélia rasgou elogios ao amigo-presidente. “Conheço o Lula desde que ele era metalúrgico e sempre fiz muita fé nele. É um homem tão rico no modo de ser. Uma pessoa que sai de Pernambuco em pau-de-arara, menino, veio rolando por esse Brasil, na pobreza, e hoje é presidente com a cotação que ele está. Tem gente que está besta com o que ele está fazendo. Mas eu já o conhecia.”

Quem compartilha dessa opinião, curiosamente, é outra célebre centenária, Dona Canô, 102 anos, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia. Em novembro, o cantor e compositor baiano tachou Lula de “analfabeto”, que “não sabe falar, é cafona falando, grosseiro”. Constrangida, Canô saiu em defesa do presidente e pediu desculpas em nome da família Veloso.

“Não fique chateada, preocupada, porque gosto muito da senhora e gosto do Caetano também. Está tudo bem, essas coisas acontecem”, disse Lula a Dona Canô, por telefone. Memélia também desaprovou a declaração preconceituosa e infame de Caetano. Já Chico Buarque, questionado sobre a reação de Dona Canô, contemporizou. “Nossas mães são muito mais ‘lulistas’ que nós mesmos”, declarou Chico à revista Brazuca.

Memélia, esta figura ímpar, de fibra e coerência, morreu dormindo na noite desta quarta-feira (4), em seu apartamento no bairro carioca do Leme. “Acompanho com imensa tristeza a dor do meu amigo Chico Buarque e família”, disse Oscar Niemeyer. “Maria Amélia era uma pessoa que aliava ternura a firmeza, inteligência e preocupações sociais”, resumiu Lula, numa nota oficial.

Se a matriarca da família Buarque de Hollanda era uma “lulista”, o presidente pode se juntar à imensa lista de pessoas que se orgulham de terem sido “memeliaistas”.