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FSM: impasses na busca de “outro mundo”

O Fórum Social Mundial (FSM) vive uma encruzilhada decisiva em seus dez anos de existência enquanto milhões padecem a tormenta do capitalismo.

Po Luiz Carlos Antero*

Até o alvorecer de 2001, a reunião das maiores potências do centro hegemônico se apresentava como um fato único e fortemente concentrado no Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça).

Naquele momento, num contraponto ao então absolutismo neoliberal e à globalização capitalista, mais de 10 mil pessoas de inúmeros países se reuniram em Porto Alegre, confluindo para o Brasil o princípio da propagação da idéia de que "um outro mundo é possível".

Brotou, então, do caos germinado no Estado mínimo, no “deus-mercado” e nas privatizações, o Fórum Social Mundial (FSM), o anti-Davos.

Desde então, a cada ano, o FSM oscilou em participação, com picos nos quais chegou a concentrar 150 mil ativistas no ano passado, em Belém do Pará. Em janeiro de 2010, completou dez anos na mesma Porto Alegre onde deu seus primeiros passos, com a expectativa de realizar 27 Fóruns Sociais em todo o mundo, voltados para a preparação do FSM 2011 — em Dakar, na África.

Opções à globalização neoliberal

Do seu objetivo inicial, aos dias atuais, o FSM representou um acontecimento significativo no plano da luta de idéias, logrando impor uma derrota à arrogante unanimidade dos pregoeiros do “fim da história”. Ao construir esta alternativa, mesmo que incipiente, em escala planetária, arranhou a espinha dorsal do pensamento hegemônico de Davos — no qual os gestores das maiores potências e de suas multinacionais determinavam sem contestação as regras econômicas, políticas e sociais para a humanidade.

Do vazio de perspectivas legado pela derrocada da primeira experiência socialista da União Soviética, expandida, após a II Guerra, para vários países do Leste Europeu, o FSM fez surgir no alvorecer do terceiro milênio uma expectativa de enfrentamento social às sequelas da unipolaridade. E aconteceu neste ambiente fundamental no qual se desenha a agressiva política belicista imperial dos EUA, o fundamento superior das determinações do capital sobre os países e seus povos.

Em consequência, entrou em evidência a construção de opções à globalização capitalista sob a consigna de que um "outro mundo”, mais justo, igualitário e harmônico, avesso às guerras, é factível.

Dê uma chance à paz

As dez experiências do FSM foram, neste rumo e a cada edição, multiplicando-se em fóruns regionais, nacionais e locais, realizados no Sudeste Asiático, na Europa, na África e nos EUA, da Índia ao Senegal, de Istambul a Detroit, de Mumbai a Caracas, de Nairóbi a Belém do Pará.
Eppur si muove, como externou num laivo de otimismo Galileu Galilei. E o mundo então se moveu na única e gigantesca Manifestação pela Paz e contra a Guerra no Iraque, quando estimadas 15 milhões de pessoas foram às ruas em fevereiro de 2003 para contestar a infâmia, covardia e crueldade da beligerância estadunidense. Foram mais de 150 mil pessoas em Paris, em dois protestos. Na Tunísia, centenas marcharam pelas ruas da capital cantando Give peace a chance (Dê uma chance à paz). Em Milão, contabilizou-se que 300 mil pessoas participaram de um protesto organizado por cerca de 70 entidades, entre sindicatos, partidos de esquerda e organizações não-governamentais. Os organizadores do evento, porém, falavam em 700 mil pessoas e explicavam que “a manifestação significou uma oposição à guerra em qualquer circunstância”.

No interregno dos fóruns mundiais, manifestações diversificadas foram se apresentando, mas não se registrou outra ação de tal porte. Em 2004 a Índia recebeu, modestamente mas com intensa participação popular, a convergência mundial. Em 2006 três fóruns ocorreram em três continentes.

O FSM flutua

Nesta cadência, o FSM, entretanto, flutua e passa a requerer uma orientação mais unitária e decidida que lhe atribua maior eficiência, eficácia e impacto nas suas decisões e ações, em especial quanto às mais profundas causas da extensa miséria, exclusão social e prejuízos irreparáveis aos ecossistemas ocasionadas pelo centro hegemônico do capitalismo. Trata-se aqui de efeitos que atingem bilhões de pessoas em todo o planeta.

De acordo com João Pedro Stédile, protagonista do MST, de todo modo ainda falta ação. “Não conseguimos ter um programa mais propositivo, não que o FSM tenha que ter um programa próprio, mas que neste espaço pudéssemos construir idéias mais unitárias que representem um acúmulo de forças. Também falhamos em construir dentro do Fórum espaços que possibilitassem ações de massa internacionais”.

Neste prumo, foram produzidas até hoje algumas orientações básicas, materializadas numa Carta de Princípios que, no entanto, funciona como referência geral ainda insuficiente para realizar o contraponto à ação predatória da soberba imperialista, à devastação do planeta e degradação da vida das suas populações.

“Mudar o mundo sem tomar o poder”?

Não obstante os avanços conquistados com a permanência do FSM, os interesses utilitaristas que se reúnem em Davos ainda se sentem confortáveis e sarcásticos diante de sua atual concepção de estrutura, seus impasses e idiossincrasias quanto à “partidarização dos movimentos sociais e do FSM” e à dúbia máxima que consiste em “mudar o mundo sem tomar o poder”.

Esta, num determinado aspecto, minimiza os efeitos mais generosos de um extraordinário encontro da humanidade ofendida, neutralizando as formidáveis potencialidades da ação coletiva e coordenada, inclusive ao vedar a possibilidade de um documento final unitário em cada uma de suas edições ou a constituição democrática de uma direção representativa de todas as linguagens da vivência opressiva.

Desse modo, o entendimento do que seja “respeito à diversidade” termina por inocular as ricas características proporcionadas pelo seu espectro heterogêneo — em comum, ameaçado pela ordem perversa do capitalismo em crise e, nessas condições, mais agressivo e espoliador de grandes contingentes de trabalhadores e de uma multidão crescente de miseráveis sem lugar algum no processo produtivo.

Impulso vital em pauta

No vácuo de equívocos que remanescem, um número expressivo destes, progressiva e diariamente, parte para “um outro mundo” que não é o socialismo ou de qualquer fronteira sonhada pelas mais belas, ponderáveis e reconhecidas utopias.

É necessário hoje o impulso vital a um vigoroso movimento — firmemente direcionado ao objetivo de conter o vagalhão que busca submeter e naufragar a humanidade ao corrosivo e sem retorno estágio da barbárie.

*Luis Carlos Antero é Mestre em Sociologia, escritor e jornalista. No início anos 70 atuou no Jornal dos Esportes, O Globo, Última Hora e Diário de Noticias. Assessor parlamentar no Congresso Nacional desde 1995.