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Italo Bianchi: Além do espaço, aquém do tempo

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Estou usando como título uma expressão em volta da qual pretendo costurar essa matéria. A intenção é introduzir um papo sobre um bichinho travesso chamado criatividade. Para começar pelo começo, seria ótimo que dispuséssemos, de antemão, de uma informação científica que nos explicasse como funciona uma coisa chamada corriqueiramente de talento, mas que, a rigor, não passa de uma propensão destacada que certos indivíduos dispõem para alguma área do conhecimento humano. Em todo caso, os que se interessam pelo assunto parece que chegaram, na sua maioria, a um consenso convincente. O talento, esse patrimônio do intelecto do gênero humano, que se manifesta em sentidos e proporções diferentes, seria o resultado de uma soma de heranças genéticas + densidade do caldo cultural onde as pessoas são criadas + oportunidades no contexto social, quando adultas e atuantes.


 



A partir desta fórmula geralmente aceita (expressa com estas ou outras palavras) que define o talento, parece fácil deduzir também qual é o processo de invenção chamado criatividade. Mas a coisa não é tão óbvia como se pode supor, tanto assim que dispomos de uma grande variedade de teses e especulações a respeito, elaboradas por sábios de várias disciplinas, que tentam nos explicar como funciona a mecânica do encadeamento lógico/ilógico peculiar das idéias surpreendentes, isto é, a criatividade como ela é chamada no sentido corrente.


 



O leitor há de me perdoar por ter embarcado neste assunto um tanto esdrúxulo, digamos que de graça, já que ninguém está me cobrando um parecer especializado. E mais: talvez isso interesse a pouca gente. Mas acontece que após tantas décadas de vida dedicadas a atividades profissionais todas dependentes do fator criatividade, estou me arrogando o direito de teorizar sobre o assunto. Que aqui vai pretensiosamente sintetizado em uma única frase: criatividade: além do espaço, aquém do tempo.


 



E agora lá vamos nós para tentar explicar o explicável. Em primeiro lugar, preciso deixar claro que me refiro à criatividade  no campo genericamente chamado de artístico; ou seja, da literatura à composição musical, das artes plásticas ao cinema, à dança, ao teatro… e assim por diante, incluindo a publicidade que, antes de ser um negócio, é um apaixonante exercício de criação. Preciso também lembrar que existe outro ramo importantíssimo e sedutor da criatividade, que é a do campo científico, mas que aqui não é contemplado, pois minha modestíssima bagagem sobre o assunto eu esqueci na sala de espera.


 



Na primeira parte do meu axioma (será que é mesmo um axioma?) estou dizendo que empregar a criatividade significa ir além do espaço, o que, evidentemente está dito aqui no sentido figurado. Vou usar agora um único exemplo histórico que vale, ou pretende valer, para qualquer época e para qualquer tema de qualquer dimensão. Nas primeiras décadas do século 20, uma leitura equivocada do cubismo de Picasso e Braque gerou um estilo logo apelidado de art déco (déco do gratuito décoratif) que geometrizou, nos limites do possível, a arquitetura, o mobiliário, as famílias tipográficas e muitos badulaques. Aí chegou uma senhora de imenso talento, madame Chanel, e com sua criatividade foi muito além do espaço já estabelecido da art déco, oferecendo uma nova linguagem de moda feminina que encantou o mundo. Ela simplesmente produziu um novo ideal de beleza e elegância, baseado no perfil extremamente esbelto e delicado da mulher “moderna” minimizando o volume dos seios e da bunda, encurtando as saias, modelando o corpo esguio com roupa aderente, porém isento de qualquer vulgaridade pelo recurso dos plissés. Encurtou os cabelos e recortou as abas dos chapéus para as cabecinhas ficarem mais delicadas. E ainda por cima, colocou longas piteiras entre os dedos das madames para alongar os gestos nas conversações e torna-las aindas mais sedutoras. E agora? Agora só falta dizer (em trocados, já que não quero empregar o jargão implacável da semiótica): a criatividade de madame Chanel foi uma manifestação aquém do tempo, já que muitos dos seus conceitos se revelaram antecipações diria quase que indeléveis, através dos anos, como poderá demonstrar qualquer estilista de moda ou mesmo a costureirinha do seu bairro.
E eu aqui no meu canto, posando a esteta e inventando moda.