O dólar, ladeira abaixo, ainda foge para frente…

Desde princípio de 2002 o dólar iniciou uma descida que atualmente continua e, segundo a maior parte dos peritos, agravar-se-á nos próximos meses. O declínio se agravou pouco tempo depois dos atentados (ou auto-atentados) do 11 de Setembro de 2001, ou sej

Existe um encadeamento causal claro entre a decadência econômica do Império e a tentativa desesperada dos seus dirigentes de travá-la através de uma sucessão de vitórias militares na Ásia Central e no Oriente Médio.



A conexão dólar-Guerra do Iraque



Se essa estratégia tivesse tido êxito, a superpotência controlaria hoje a maior parte da faixa eurasiática que se estende desde os Bálcãs até o Paquistão, atravessando a Turquia, a bacia do Mar Cáspio, o Iraque e o Irã, dominando assim cerca de 70% dos recursos petrolíferos mundiais. Isso lhe teria permitido assegurar sua hegemonia financeira internacional, simbolizada pelo reinado universal do dólar.



Mas a aventura fracassou e hoje os norte-americano estão atolados no Iraque e no Afeganistão, enquanto se reduz a sua influência sobre a Eurásia.



Apogeu e queda de uma dupla fortaleza



André Gunder Frank sustentava que o poder dos Estados Unidos repousa sobre dois pilares decisivos: o dólar e o Pentágono, o primeiro (a hegemonia financeira) a sustentar o segundo e este último a impor os privilégios econômicos do Império. Esta dupla fortaleza predominou desde o fim da Segunda Guerra Mundial e teve seu período de auge entre 1945 e 1971, ano em que a Casa Branca, ameaçada pelas reservas dolarizadas em poder das outras potência industriais, decidiu liquidar a conversão de dólares em ouro.



A partir daquele momento desenvolveu-se uma etapa monetária turbulenta, onde o dólar continuou a reinar no planeta graça a um jogo perverso, com o acordo dos países ricos, e que culmina agora com um empapelamento global que pode conduzir a uma incontrolável sucessão de crises financeiras.



O declínio do dólar



Depois de 1971 o dólar já não era a moeda de uma superpotência econômica ascendente. Era papel-moeda emitido por uma economia que ia perdendo competitividade e cuja produção petroleira havia entrado em declínio.



Entretanto, o consumo dos EUA continuou a crescer e, em consequência, suas importações — o que a converteu no principal mercado internacional. Europeus, japoneses, sulcoreanos e mais recentemente chineses encontram nos compradores norte-americanos clientes cujo volume geral de procura não pode ser substitutído.
Alguns indicadores ilustram bem a decadência da economia norte-americana.



O déficit comercial e suas causas



 Em primeiro lugar o déficit comercial que foi crescendo: de números relativamente modestos em meados dos anos 70 até ultrapassar os 700 mil milhões de dólares em 2006 (veja, acima, o primeiro gráfico). Neste último ano, por cada dólar de exportação de bens importavam-se dois.



Numa primeira aproximação, pode-se distinguir aí dois fatores. Por um lado, a espiral ascendente dos gastos públicos e privados, onde se combinou o consumismo próprio de uma sociedade privilegiada com a expansão do aparelho militar e outras dádivas parasitárias. E, por outro lado, a perda de competitividade industrial, o atraso relativo na corrida às inovações produtivas. Mas ambos os processos fazem parte de um fenómeno mais amplo de decadência cultural, que inclui também a degradação institucional, a crescente apatia da população perante o sistema de representação política, a ascensão da criminalidade, etc.



Outros indicadores da decadência



Um segundo indicador de deterioração é a redução do saldo dos lucros de negócios de norte-americanos no exterior contra os benefícios de estrangeiros nos Estados Unidos. No passado o mesmo compensava em parte os déficits comerciais mas em 2006, e pela primeira em 90 anos, esse número foi negativo.



Em terceiro lugar, e em resultado da evolução dos indicadores anteriores, o déficit de transações correntes cresceu vertiginosamente: 140 bilhões de dólares em 1997, 389 bilhões em 2001, 834 bilhões em 2006.



Um quarto indicador é o crescimento do déficit fiscal, que passou de 2,8 bilhões de dólares em 1970 a 74 bilhões em 1980, 240 bilhões em 2000 até atingir em 2005 os 430 bilhões. A decadência produtiva foi compensada por uma avalancha de déficits e dívidas que suportaram a expansão do mercado norte-americano. O resto do mundo abriu-lhe o carretel do crédito indefinido, entregando mercadorias e serviços em troca de papéis (dólares, títulos públicos, ações, dívidas empresariais, etc) e no interior de sucessivas ondas de créditos ao consumo e ao investimento alentados, sobretudo desde meados dos anos 90, por bolhas especulativas que ampliaram o poder de compra dos estadunidenses. Ao mesmo tempo, a poupança pessoal descia, a parte dos rendimentos destinada à poupança, que historicamente estava entre 7% e 8%, baixara para 4,3% em 1998, para cair a 2,4% em 2003, 2% em 2004 e a números negativos em 2005 e 2006 (respectivamente -0,4% e -1%).



No início do século, os estalidos



Ao começar a década atual, quando foi desinflada a bolha da bolsa, era evidente que a hegemonia financeira dos Estados Unidos havia chegado a um ponto crítico. A enorme desproporção existente entre o seu potencial produtivo declinante e a massa de papéis-dólar a circular pelo mundo (dólares reais e toda classe de papéis dolarizados) começou a provocar os primeiros estalidos da moeda norte-americana, que rapidamente converteram-se em despencamento irresistível do seu valor em relação ao ouro e a outras divisas fortes, o euro e o yen.



O governo Bush respondeu impulsionando uma nova bolha especulativa baseada nos negócios imobiliários, a maior da história: inundou a economia com créditos baratos e reduziu os impostos dos ricos; o consumo e o Produto Interno Bruto cresceram a taxas elevadas. Voltava a prosperidade… mas por quanto tempo?



Ao mesmo tempo, a Casa Branca exacerbou a tendência à militarização. Os gastos militares que ascendiam desde o fim da era Clinton tomaram um forte impulso. Em consequência, aumentaram o déficit fiscal e o endividamento público.



A fuga para adiante



Os Estados Unidos haviam tentado deter o seu declínio por meio de uma louca fuga para adiante, expandindo o consumismo sem retaguarda produtiva interna e desencadeando uma desmedida agressão imperialista na Ásia. Mas essa dupla aposta viu-se rapidamente encurralada pela sua própria debilidade estrutural.



A aventura apoiava-se numa montanha de papel, na acumulação de dívidas de todo tipo e de reservas em dólares de chineses, japoneses e europeus, ou seja, em créditos concedidos ao Império pelos referidos países. Enquanto na superfície a festa militar e consumista aturdia o planeta, na profundidade do sistema global o reinando financeiro norte-americano declinava.



E meados da presente década, os dois pilares do Império começaram a cambalear ao mesmo tempo: desastre no Iraque e degradação do dólar.



Parasita ou lixeira?



O argumento habitual é que os Estados Unidos parasitam a economia mundial, entregando dólares com valor futuro incerto em troca de bens e serviços. Mas a pergunta-chave é: por que japoneses, europeus, chineses, sulcoreanos e outros aceitam esse roubo?



A minha resposta é que tal “roubo” não existe; na realidade o gigante enfermo vem sendo engordado por esses países porque é o seu cliente decisivo. Sem ele, sem o seu consumo, sem o seu espaço de negócios, a crise de superprodução crônica que o capitalismo mundial sofre há mais de três décadas converter-se-ia numa derrocada imparável.



Um terço das exportações chinesas vão para os Estados Unidos e outro tanto para países asiáticos cuja capacidade de pagamento depende estreitamente das suas exportações para a superpotência. Os outros países industriais ou emergentes da Ásia, como por exemplo o Japão ou a Coreia do Sul, têm uma dependência semelhante. A União Europeia, especialmente seus países líderes, apresenta uma interpenetração industrial, comercial e financeira com o Império de tal magnitude que o seu destino está absolutamente ligado a ele.



Em síntese, o parasita é na realidade um enorme depósito de lixo para bens, serviços e fundos e a decadência norte-americana não é outra coisa senão a face visível da decadência global do capitalismo.



E se o dólar despencasse?



O dólar, ou seja o instrumento de “pagamento” da economia (deficitária) norte-americana, é a peça essencial de toda a trama. Sua queda demasiado rápida provocaria uma contração geral das importações dos Estados Unidos e do seu nível de rentabilidade interna (medido segundo as outras divisas) comprimindo diretamente tanto as vendas como os investimentos desses países no Império.



Mas além disso a referida derrocada provocaria a hiper-revalorização do yen e do euro, o que reduziria de maneira significativa as exportações da União Européia e do Japão, com fortes impactos recessivos em ambas as potências. A China também seria negativamente afetada.



Todos estes países tentar então escorar o dólar. Entretanto, à media que a economia estadunidense vai se enfraquecendo (processo irresistível no médio e longo prazo) devem tomar algumas precauções ainda que não seja muito o que possam fazer.
Os europeus tratam apenas de prolongar a agonia porque sabem que o desenlace os golpeará duramente, algo semelhante fazem os japoneses; e os chineses tentam timidamente diversificar (desdolarizar) suas mega-reservas dolarizadas, sabendo que se desdolarizarem demasiado rápido podem chegar a provocar uma catástrofe financeira global que também os atingirá.



Todos chegaram à conclusão de que não podem manter-se indefinidamente no reino do dólar mas também sabem que não podem ir embora de um dia para o outro. Onde está a “solução”? Em parte alguma. Alguns esperam, sem o dizer, que a passagem do tempo abra algum caminho de saída. Por isso avaliam com extrema prudência cada movimento, intensificam as consultas entre si, extorsionam-se mutuamente, dão-se golpes baixos, ajudam-se…



 Sombras ameaçadoras



Contudo, para além dos truques das grandes potências existem fenómenos que determinam a conjuntura e sobre os quais os Estados dos países ricos têm uma influência limitada. Trata-se sobretudo do processo de financeirização, que foi avançando nas última três décadas e que a qualquer momento pode produzir efeitos catastróficos.



Pense-se por exemplo na especulação com “derivados”, complexa articulação de negócios que se expandem vertiginosamente e que segundo o Banco da Basiléia, que contabiliza o seu volume global, estaria a aproximar-se dos 400 trilhões de dólares (o equivalente a cerca de dez vezes o Produto Bruto Mundial). Atente-se para a sobreacumulação de reservas (quase totalmente dolarizadas) nos países periféricos que já ultrapassa os 3,2 trilhões de dólares, mas observemos também o tamanho da bolha imobiliária global, equivalente ao Produto Bruto dos países ricos.



Algumas destas massas financeiras são relativamente controláveis, como por exemplo as reservas. Mas outras são muito menos, como é o caso dos negócios com “derivados” ou a especulação imobiliária.



O dólar cai cai (gradualmente por enquanto) e surgem os primeiros sinais de desconfiança em direção a outras moedas “fortes” como o yen e o euro, cujas economias de suporte, Japão e União Européia, estão estreitamente ligadas à dos Estados Unidos. Isto incita os especuladores a diversificarem seus negócios e a um curtoprazismo maior…



* Professor de Economia da Universidade de Buenos Aires, milita no Partido Comunista da Argentina; intertítulos do Vermelho; o original encontra-se em http://www.rebelion.org/docs/44886.pdf