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A anistia 30 anos depois

Ao completar 30 anos em 28 de agosto deste ano de 2009, o Projeto de Anistia aprovado na gestão do General João Batista Figueiredo, então presidente do Brasil e último da ditadura militar de 1964, veio ao encontro dos anseios de todos os democratas, particularmente aqueles perseguidos que tiveram a coragem e o desprendimento de enfrentar, das mais variadas formas, o regime ditatorial aqui instalado.

Por Ana Guedes*

anistia

Este acontecimento foi conseqüência de toda uma imensa movimentação política de resistência patriótica empreendida pela sociedade brasileira na sua luta contra a ditadura militar e em defesa do Estado de Direito. A aprovação do Projeto de Anistia naqueles idos de 1979 não foi uma benesse. Longe disso. Tampouco foi completo. Mas é resultante da correlação de forças da conjuntura do período e, principalmente, da mobilização de setores do nosso país, que, aos poucos, foram rompendo o cerco do terror e do arbítrio que aqui haviam se implantado em 1964. O governo militar estabeleceu no projeto os chamados crimes conexos, buscando anistiar também os torturadores. Hoje existe uma grande polêmica sobre esta interpretação e o aguardo de pronunciamento, por parte de STF, de ação proposta pelo Conselho Federal da OAB que questiona este entendimento.

Antes do golpe militar, no início da década de 60, era grande a mobilização política no Brasil. A renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961 gerou certa instabilidade e permitiu que forças conservadoras tentassem impedir a posse do seu vice João Goulart. A proposta do presidencialismo contra o parlamentarismo acabou vencendo, após plebiscito popular, permitindo a posse de Jango. As propostas de reformas de base do novo governo, entre elas, a reforma agrária e educacional, passaram a ser acusadas de inspiração comunista. O movimento social também era crescente. Sindicatos de categorias estavam organizados. Floresciam as Ligas Camponesas. Isso tudo, num país cheio de contradições e com muitos desafios pela frente.

Havia, por outro lado, uma ferrenha oposição ao projeto governamental por parte de forças retrógradas e conservadoras, consubstanciadas na UDN (União Democrática Nacional), principalmente. Eram os grandes proprietários de terra, a burguesia aliada ao capital internacional, setores da igreja, setores de classe média como os militares. Estes setores combatiam com veemência a política do governo João Goulart e as organizações populares.

Sob a argumentação de defesa da nação brasileira, estes setores se utilizaram da fragilidade nacional com problemas na economia, como a alta inflação e muitos outros, não hesitaram e tomaram de assalto o governo legalmente constituído. Este golpe não foi um acontecimento isolado. Vários outros países da América Latina, como a Argentina e o Chile, por exemplo, foram vítimas de golpes militares com os mesmos objetivos políticos, patrocinados pelos Estados Unidos na tentativa de mantê-los como aliados naquele período de guerra fria contra o bloco soviético e tentando isolar a revolução cubana.

A partir daí o regime ditatorial passou a perseguir inúmeros brasileiros e brasileiras. Prendeu, torturou, assassinou e levou ao exílio; cassou e baniu do país aqueles que se colocavam contra as medidas do novo governo e os que historicamente já participavam do movimento social e popular no Brasil. Particularmente, após o Ato Institucional n° 5 de 13 de dezembro de 1968, a perseguição se tornou maior, acontecendo os piores crimes até meados da década de 70. Era incalculável o contingente exato de atingidos, das mais variadas formas. Sabe-se hoje que os desaparecidos no Brasil totalizam 136 pessoas e os mortos chegam a 300. Eram trabalhadores, estudantes, religiosos, militares, homens e mulheres.

Estes perseguidos eram apresentados à população como inimigos da nação. Os que conseguiam escapar do cerco viviam na clandestinidade, longe dos seus locais de origem e com documentação falsa, inclusive de filhos menores e eram procurados pelos órgãos da repressão da ditadura, como o famigerado DOI CODI e outros centros de tortura. Outros buscavam escapar saindo do país. As Leis de Segurança Nacional e de Imprensa e outros instrumentos de exceção obstruíam qualquer possibilidade de reação. A guerrilha urbana, a guerrilha no interior do país, como a do Araguaia, e seqüestros de embaixadores estrangeiros que foram trocados por presos políticos, foram ousadas iniciativas de resistência. Os movimentos de guerrilha foram todos aniquilados, deixando um rastro de presos, mortos e desaparecidos.

Nesse período, parte da resistência sobreviveu latente. As organizações políticas que estavam na clandestinidade e que conseguiram sobreviver se articulavam no mais alto rigor e sempre sob o risco. Setores da sociedade brasileira como familiares e amigos de atingidos políticos começaram a levantar a bandeira da Anistia. Primeiro foram as mulheres, que chegaram a organizar o Movimento Feminino pela Anistia. Com esta iniciativa, pela primeira vez, ainda muito timidamente, a realidade da perseguição política no Brasil começou a se tornar pública para toda a nação. Foi se dando visibilidade à situação dos presos políticos, dos exilados, dos mortos e desaparecidos e daqueles que não podiam aparecer com identidade própria. Este movimento cresceu em todo o país e abriu as portas para jornadas gloriosas da capacidade de luta do povo brasileiro. Surgiram logo em seguida os Comitês Brasileiros pela Anistia em todo o país em 1968. Os CBAs, como eram conhecidos, passaram a ocupar espaço no noticiário político e nas mentes dos brasileiros que faziam parte destas organizações. Tiveram a importante capacidade de agregar forças vivas e variadas da nossa sociedade em um só bloco e num só objetivo: a anistia ampla, geral e irrestrita a todos os perseguidos da ditadura militar, esclarecimento das mortes e desaparecimentos por motivação política, punição dos algozes do povo brasileiro, fim de todos os atos e leis de exceção e até a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana.

A conquista da anistia era compreendida como uma etapa fundamental para a conquista do Estado de Direito. Para tal o movimento buscou ocupar espaço na imprensa, realizou manifestações públicas e tomou medidas concretas, inclusive, jurídicas, junto aos atingidos: presos, exilados, torturados e perseguidos.

Nos anos de 1978 e 1979, o movimento entrou em grande ascenso. Realizou dois congressos nacionais, constituiu uma ágil Comissão Executiva Nacional, realizou encontros nacionais e regionais. Estabeleceu como prioridade visitas aos presos políticos, além de apoiar e acompanhar greves de fome, enfrentando a Lei de Segurança Nacional e outros instrumentos repressivos. Contou com a solidariedade internacional, inclusive, com a participação de exilados políticos, nos países onde se encontravam.

Iniciado há mais de 30 anos atrás, o movimento pela Anistia Política foi uma significativa experiência de luta democrática do nosso povo. Reuniu militantes políticos, estudantes, artistas, religiosos, intelectuais, trabalhadores, parlamentares e familiares de mortos e desaparecidos políticos que clamavam pelo fim da ditadura e o retorno do Estado de Direito.
Após a aprovação do projeto de anistia, a luta continuou a partir, mais especificamente, da criação dos grupos Tortura Nunca Mais que congregam familiares, atingidos e militantes. Esta organização, existente em alguns estados brasileiros, é referência na busca da ampliação da Lei de Anistia de 1979, no esclarecimento das mortes e desaparecimentos políticos, na abertura dos arquivos, no julgamento do regime militar e na construção da memória.

Nesses 30 anos, a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República a partir da Lei 9.140/95 e a Comissão Nacional da Anistia do Ministério da Justiça pela Lei 10.559/02, são vitórias objetivas de desdobramento da luta, representando o reconhecimento do Estado Brasileiro da sua responsabilidade por fazer desaparecer, assassinar, prender, perseguir, banir e exilar opositores políticos.

Hoje, com a criação de comissão no Ministério da Defesa – que cumprindo sentença proferida em 2003 pela justiça brasileira iniciou escavações na região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia – os caminhos se abrem para a localização e sepultamento digno dos restos mortais desses heróis do povo brasileiro. Dos guerrilheiros mortos apenas foram identificados, de buscas anteriores, Maria Lúcia Petit e, recentemente, Bérgson Gurjão Farias.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos apreciou e julgou todos os requerimentos a ela dirigidos e os familiares foram indenizados.

A Comissão da Anistia recebeu, até meados de agosto, 64.200 requerimentos. Destes, 48 mil foram julgados. No corrente ano, a Comissão já computou o recebimento de 975 requerimentos.

O trabalho desta Comissão é volumoso e complexo. Apesar da Lei 10.559/02, ele tem exigido o aperfeiçoamento de entendimentos ao longo dos anos, preservando a essência da lei e a Constituição de 1988. Muitos requerimentos são julgados e recebem o reconhecimento da condição de anistiado pelo Estado brasileiro, sem reparação econômica, com o pedido de desculpas pela perseguição política. Este pedido se reveste de grande importância simbólica, pois se trata do reconhecimento oficial do crime cometido contra brasileiros e brasileiras. Aqueles que foram perseguidos e perderam seu vínculo laboral e jamais retornou ao seu local de trabalho e outros que fomos alvos de perseguição sem vínculo laboral, adquirem o direito de reparação financeira, específica para cada caso, além da condição de anistiado político.

Sabe-se que o julgamento destes requerimentos, nas duas Comissões, se reveste de profunda emoção por parte dos envolvidos. São histórias de sofrimento que deixaram sequelas, muitas delas para o resto da vida. Sabe-se também que a reparação concedida, ou não, para cada caso vem ao encontro de toda uma expectativa do requerente o que, algumas vezes, não corresponde a esta expectativa.

O mais importante é que a conquista dessas leis e todos os procedimentos para o julgamento de cada caso, representa avanço significativo na consolidação da construção democrática no Brasil. Os instrumentos que hoje dispomos são resultantes de muitos anos de persistência e luta de setores combativos da nossa sociedade.

Passados 30 anos da Lei da Anistia e 24 do fim do regime militar, apenas retomamos a construção do árduo processo de consolidação da mais ampla democracia para o nosso país, a despeito de significativos avanços alcançados. Vive-se ainda um momento de grande disputa política, de ferrenha luta de classes. Encontra-se ainda grande resistência para a abertura dos arquivos da ditadura militar, por exemplo, e as providências para o resgate dos restos mortais dos desaparecidos políticos apenas foram iniciados.

Portanto, passados 30 anos é preciso consolidar as vitórias e avançar na construção democrática do nosso Brasil.

* Conselheira da Comissão Nacional da Anistia do Ministério da Justiça e membro do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia