Le Monde Diplomatique: Nosso amigo Saddam

Como as empresas e os governos ocidentais, em especial o dos Estados Unidos, apoiaram a ascensão de Saddam, a ditadura de Saddam, as guerras de Saddam e os crimes de Saddam.
Por Michel Despratx

Em um café do centro antigo de Bagdá, os clientes, questionados sobre o processo vindouro do ex-presidente Saddam Hussein, adotam primeiro um ar grave para lembrar os crimes do ditador ou a necessidade desse julgamento. Depois, ao fim de algumas frases, todo mundo sorri e olha para o outro lado, como se o processo não devesse trazer nada de sério. Todos estão persuadidos de que os Estados Unidos controlam inteiramente o tribunal diante do qual vai comparecer o ex-ditador e que nenhum estrangeiro será ali questionado, sejam quais forem os crimes hediondos que possa ter cometido no Iraque. “Se esse processo um dia acontecer mesmo, e eu duvido”, enfatiza um professor, “nunca abordará a questão das relações de Saddam com os países estrangeiros”. Um engenheiro acrescenta: “Isso traria o risco de revelar coisas demais que não são do interesse do Ocidente”.



Consultado muito na contra-corrente pelo Departamento de Estado, que desempenhou um papel chave na criação desse tribunal, o perito judiciário americano Cherif Bassiuni explica: “Tudo foi feito para instalar um tribunal em que os juízes não serão independentes, mas ao contrário, estritamente controlados. Falando de controle, quero dizer que os organizadores desse tribunal têm de assegurar-se de que os Estados Unidos e as outras potências ocidentais não serão questionadas. Os próprios estatutos do tribunal farão com que os Estados Unidos e os outros países sejam completamente afastados das acusações. O que fará desse processo um processo incompleto e injusto; uma vingança do vencedor”.



Os organizadores americanos e iraquianos do processo decidiram, de fato, que o tribunal especial que vai julgar os crimes de Saddam Hussein não poderá acusar nenhum estrangeiro de cumplicidade – o que quer dizer nenhum americano, inglês ou francês. Ora, a história desses quarenta últimos anos transborda de exemplos em que não-iraquianos, entre os quais cinco presidentes americanos, pelo menos três presidentes franceses, vários primeiros ministros britânicos e inúmeros empresários ocidentais foram cúmplices, e por vezes co-autores, de crimes cometidos pelo regime baathista.



Luta contra os comunistas
Foi sob a presidência de John F. Kennedy que Washington começou a apoiar matanças no Iraque. Em 1963, preocupados por ver o presidente Abdel Karim Qassem se aproximar de Moscou e ameaçar nacionalizar o petróleo, os Estados Unidos decidiram agir. Em 8 de fevereiro de 1963, apóiam o golpe de estado de um partido político muito anticomunista, o Baath. Conselheiro político da embaixada dos Estados Unidos em Bagdá logo depois desse golpe de estado, James Akins confirma: “Fornecemos dinheiro aos baathistas, muito dinheiro, e equipamento. Isso não se dizia abertamente, mas muitos dentre nós o sabíamos”.



Depois de fuzilar o presidente Qassem, os baathistas mataram e torturaram milhares de comunistas e simpatizantes da esquerda: médicos, magistrados, operários. “Nós recebemos uma só ordem: exterminar os comunistas!”, confessa um dos autores desse massacre, hoje diretor de uma escola primária em Bagdá, Abdallah Hatef. “O jovem Saddam Hussein estava muito motivado. Torturava os operários, o que consistia em encher os homens com água, em quebrar-lhes os ossos ou em dar-lhes choques elétricos”. Washington sempre negou, mas vários dirigentes do golpe de Estado revelaram que a CIA desempenhou um papel ativo na matança, notadamente fornecendo listas de comunistas a serem presos. Em 2003, uma ex-autoridade da diplomacia americana, entrevistada por uma grande agência de notícias, antes de responder exigiu o anonimato: “Estávamos francamente felizes por nos livrarmos dos comunistas! Vocês acham que eles mereciam uma justiça mais equitativa? Estão brincando. O negócio era sério mesmo!”.



Até então inédito, o relatório de uma reunião ocorrida em Bagdá em 9 de junho de 1963 entre os americanos e os baathistas confirma a “vontade comum de erradicar o comunismo na região”. O inimigo visado não se limitava aos comunistas, mas incluía os curdos resistentes ao poder baathista no norte do país. Em Bagdá, Subhi Abdelhamid, que na época comandava as operações do exército iraquiano contra os curdos, confirmou que havia negociado pessoalmente com o adido americano a entrega de 5 mil bombas a fim de esmagar a resistência. “Depois, os americanos nos ofereceram, sem exigir pagamento, mil bombas de napalm para bombardear as aldeias curdas.” Segundo os curdos que viveram esses bombardeios, o napalm queimou o gado e aldeias inteiras. Mas na época eles pensavam que aquele napalm tinha sido fornecido pelos soviéticos.



A guerra contra o Irã
Em seu processo, Saddam Hussein será acusado de ter empreendido, em setembro de 1980, uma guerra contra o Irã, que custou a vida de 1 milhão de homens e mulheres. Entretanto, várias testemunhas afirmam que Washington o encorajou a iniciar esse conflito. O Ocidente tinha tudo a ganhar em vê-lo atacar a muito ameaçadora revolução islâmica do aiatolá Khomeiny. Um documento altamente secreto do governo americano, datado de 1984, revela: “O presidente Carter deu a Saddam Hussein o sinal verde para começar a guerra contra o Irã”.



Com esse sinal verde, os Estados Unidos participaram também do plano de batalha contra o Irã? É o que afirma o presidente iraniano da época, Abolhassan Bani-Sadr. Segundo ele, seus serviços secretos compraram uma cópia desse plano, redigido, segundo suas fontes, em um hotel parisiense por iraquianos e americanos. “O que me permite afirmar que era autêntico é que a guerra iraquiana foi conduzida exatamente de acordo com esse plano. Foi por ter esse plano que nós pudemos enfrentar os ataques iraquianos.”



Oficialmente, Washington estava neutro no conflito Irã-Iraque. Uma comissão de investigação americana, todavia, revelou que a Casa Branca e a CIA secretamente passaram a Saddam Hussein todo tipo de armas, entre as quais bombas de fragmentação. Suas informações por satélite permitiram melhor visar as tropas iranianas, enquanto que Washington sabia da utilização de armas químicas pelas tropas iraquianas. Segundo Rick Francona, oficial de informação militar americana, que em 1988 levava a Bagdá a lista de alvos iranianos a serem bombardeados, foram essas informações que deram ao Iraque a vitória final sobre o Irã.



Massacre aos curdos
Outro dos crimes pelo qual Saddam Hussein deverá responder diante do tribunal especial é a morte por gás, em 1988, de 5 mil civis da aldeia curda de Halabja. Bagdá os acusou de ter colaborado com os iranianos. Na época, os Estados Unidos e a França fizeram tudo para impedir que Saddam Hussein fosse condenado por esse crime. Não apenas o presidente Ronald Reagan impôs seu veto a uma lei destinada a bloquear o comércio americano com o Iraque, mas Washington enviou um telex a suas diversas embaixadas no mundo, pedindo-lhes para afirmar que os curdos de Halabja haviam sido mortos com gás pelos… iranianos.



A França também “esqueceu” de condenar Saddam por este crime. No dia seguinte ao drama, o governo de Michel Rocard publicava um comunicado denunciando os ataques químicos “venham de onde vierem”, mas sem citar o presidente iraquiano. Ministro das relações exteriores na época, Roland Dumas explica por quê: “É verdade que o Ocidente fechava um pouquinho os olhos, porque o Iraque era um país que nós julgávamos necessário para o equilíbrio da região”. Já Jean-Pierre Chevènement, ministro da defesa na época, declarou: “Se quisermos julgar o caso de Halabja no seu conjunto, é preciso remeter-se à importância decisiva daquela região no fornecimento mundial de petróleo: quem tem essa região tem o equilíbrio financeiro do planeta. Então, nunca se tem a escolha entre o bem e o mal: tem-se a escolha entre o que é horrível e o que é horrendo”. Além de suas necessidades de petróleo, a França era também o primeiro fornecedor militar do Iraque.



Em Paris, o homem que comandava a Direção Geral da Segurança Externa (DGSE) em 1981, Pierre Marion, preocupava-se com o apoio militar da França de François Mitterrand a Saddam Hussein. Ele afirma hoje que esse apoio era alimentado pelos comerciantes de armas, que tinham todo interesse em manter a guerra Irã-Iraque. “Dassault”, diz Marion, “foi o comerciante de armas que mais lucrou com esta guerra e que mais a impulsionou. Ele tinha meios de pressão extremamente enérgicos e potentes sobre todos os dirigentes franceses.” Em 1992, uma pequena associação européia, Juristas contra a Razão do Estado, acionou na justiça os vendedores de armas franceses Dassault, Thomson e Aérospatiale. Os tribunais parisienses chegaram então à conclusão que vendendo armas a um país que as utilizava para bombardear civis, essas companhias francesas se expunham ao risco de um dia, ter de prestar contas à justiça.



Ajuda decisiva
Não é mais segredo: Saddam Hussein nunca teria podido atacar seus vizinhos nem cometer crimes com armas químicas sem ajuda das empresas e governos ocidentais. Os gases mortais vinham da Alemanha, e as fábricas que os produziam ficavam na França ou nos Estados Unidos. A lista exaustiva dessas empresas cúmplices ainda não foi revelada. Em dezembro de 2002, a CIA se apoderou em plena noite de um relatório de 12 mil páginas sobre os armamentos de Saddam Hussein entregues às Nações Unidas. A CIA devolveu-o 48 horas mais tarde, faltando cem páginas.



Um vazamento do governo permitiu a Gary Milholin, perito americano em mercados de armamento, recuperar as páginas retiradas. Nós conseguimos consultá-las: elas revelam que o laboratório Pasteur vendeu germes biológicos ao Iraque, que a empresa alsaciana Protec equipou uma fábrica de gás de combate em Samarra e ainda que a firma americana Bechtel, que financia as campanhas eleitorais da família Bush, forneceu ao Iraque uma fábrica de armas químicas. Outros documentos comprometendo companhias ocidentais dormem ainda na sede das Nações Unidas em Nova Iorque, onde estão guardados os dossiês dos inspetores da ONU no Iraque.



“Conversei com os funcionários da ONU em Nova York e eles me garantiram que essas informações devem permanecer confidenciais”, lamenta Milhollin.



Invasão do Kuwait
Saddam Hussein será acusado de ter brutalmente invadido o Kuwait em agosto de 1990. Da noite para o dia, o antigo aliado tornou-se o pior dos tiranos: “Estamos lidando com um novo Hitler”, garante então o presidente George Bush pai. Mas vários protagonistas iraquianos e americanos acusam o presidente Bush de não ter agido a tempo de evitar esse drama.



Depois de sua guerra contra o Irã, o Iraque em ruínas solicitou a ajuda de seus vizinhos para reconstruir sua economia. Saddam Hussein pediu ao Kuwait um adiamento de sua dívida, mas o pequeno emirado apoiado pelos Estados Unidos se recusou, curiosamente, a qualquer negociação. O Kuwait, aliás, aumentou subitamente sua produção de petróleo e fez baixar o preço, sabotando a recuperação da economia iraquiana. Saddam Hussein acreditou-se vítima de um complô destinado a arruinar seu país. Segundo o ex-embaixador francês Eric Rouleau, especialista em Oriente Próximo, “para Saddam Hussein, isso se tornou uma questão de vida ou de morte. Como suas ameaças não levaram a nada, ele mandou suas tropas para a fronteira kuwaitiana”. Quando os satélites espiões americanos notaram o movimento dos blindados iraquianos, conselheiros do governo americano sugeriram à Casa Branca que mande uma mensagem de advertência forte e clara ao presidente iraquiano. George Bush considerava Saddam Hussein, antes de tudo, um importante parceiro comercial. Ele preferir acreditar em outros conselheiros, que acreditavam num blefe. Nunca houve advertência americana. Muito pelo contrário.



Oito dias antes da invasão do Kuwait, Saddam Hussein convocou em Bagdá a embaixadora americana April Glaspie. Informou-a de que a atitude do Kuwait equivalia a uma declaração de guerra. April Glaspie respondeu-lhe que os Estados Unidos “não tomariam posição alguma em relação a um conflito de fronteiras entre o Iraque e o Kuwait”. Despedindo-se do ditador, a embaixadora anunciou-lhe que saía de férias. Dois dias mais tarde, as declarações de April Glaspie foram repetidas publicamente em Washington por seu superior, o secretário de Estado adjunto John Kelly. À pergunta sobre o que faria seu país se o Iraque atacasse o Kuwait, o americano respondeu o seguinte: “Nós não temos tratados de defesa com nenhum país do Golfo”. Algumas semanas depois, um parlamentar, Tom Lantos, pronunciou um discurso extremamente crítico e devastador sobre a política americana: “A atitude obsequiosa para com Saddam Hussein, expressa pelo mais alto nível do governo americano, encorajou-o a entrar no Kuwait. De modo algum podemos fugir dessa responsabilidade”.



As reais razões da guerra
Depois da invasão, ficou evidente que os Estados Unidos iriam usar de força. Alto dirigente do Partido Baath, Abdel Majid Rafai, relatou-nos que Saddam Hussein informou seu partido, desde o qüinquagésimo dia da invasão, que havia preparativos em curso para uma retirada do Kwait. Entretanto, todas as tentativas de negociação iriam chegar a um impasse, tanto por causa das táticas erradas de Saddam Hussein quanto devido à atitude inflexível dos negociadores americanos. Como fez notar o ex-embaixador americano na Arábia Saudita, Jim Atkins: “Uma vez que George Bush começou a mobilizar suas tropas, ficou excluído que ele e seus conselheiros deixassem o ditador iraquiano escapar. Sua ambição naquele momento era então ganhar uma guerra rápida e triunfal”.



Quanto às verdadeiras razões dessa guerra, foram lembradas recentemente por James Baker, então secretário de Estado americano: “A política que consiste em garantir um acesso seguro às reservas de energia do Golfo Pérsico foi adotada porque, sem esse acesso, pelo menos na época, a economia americana teria sido afetada negativamente. Isso significaria que as pessoas perderiam seus empregos e quando a gente perde o emprego, torna-se descontente e você perde seus apoios políticos. Era este o problema. É uma das razões pelas quais fizemos a guerra do Golfo. Ainda que muitos tenham caído sobre nossas declarações para dizer: ‘Ah! Está bem, vocês não fazem guerra para defender princípios, porque Saddam Hussein é malvado, porque ele agrediu sem razão um vizinho pequeno ou porque ele desenvolve armas de destruição maciça.’ Mas havia uma outra razão pela qual nós fizemos aquela guerra: se deixássemos Saddam Hussein dominar as reservas de energia do Golfo Pérsico, isso afetaria negativamente a economia dos Estados Unidos. Isso também é verdade para a guerra de agora [contra o Iraque]”.



Carnificina dos xiitas
Em 1991, em seguida à operação Tempestade do Deserto, Saddam Hussein esmagou uma insurreição dos xiitas ao preço de dezenas, até centenas de milhares de vítimas. É, em termos de vidas humanas, o crime maior de que o acusam. É também o crime que George Bush cita com mais freqüência para lembrar a crueldade do ditador. Na realidade, na operação Tempestade do Deserto, os Estados Unidos e seus aliados foram cúmplices dessa carnificina, que se produziu literalmente diante de seus olhos.



Foi George Bush pai que conclamou os iraquianos a esse levante, desde 15 de fevereiro de 1991: “O exército iraquiano e o povo iraquiano devem tomar seu destino nas mãos e forçar Saddam Hussein, esse ditador, a se retirar”. Para evitar qualquer equívoco, fez repetir sua mensagem, transmitida através de todo o Iraque pela rádio Voz da América, por várias estações clandestinas da CIA e ainda a reforçou com panfletos que a aviação americana soltou. Pensando que o regime estava à beira da ruína depois da derrota no Kuwait, a população xiita se insurgiu. A revolta incendiou-se como fogo em palha e arrastou também soldados do exército de Saddam. Enquanto isso, ao Norte, os curdos se levantavam.



Nesse momento, uma tragédia se gestava. Antes de mais nada, o presidente George Bush deu a ordem prematura de pôr fim às hostilidades no Kuwait, o que permitiu à maior parte das unidades de elite iraquianas escapar à destruição. Em seguida, quando o general Norman Schwartzkopf ditou os termos do acordo de paz aos generais vencidos de Saddam, permitiu-lhes continuar a utilizar seus helicópteros de combate. Os generais iraquianos então fingem que precisam deles apenas para o transporte dos víveres e dos oficiais. Na realidade, os generais utilizam os helicópteros para esmagar o levante.



Conivência com o massacre
Qual foi a reação dos Estados Unidos e de seus aliados, inclusive dos franceses, diante do massacre dos insurgentes? Cruzaram os braços. Recusaram-se até a encontrar-se com os chefes da revolta, que suplicavam-lhes ajuda. De fato, o presidente Bush e seus conselheiros não queriam que o levante fosse vitorioso. Eles esperavam que a derrota militar de Saddam Hussein convencesse seus generais vencidos a expulsá-lo e instalar em seu lugar um outro homem forte, mais “razoável” e mais maleável à influência ocidental. Eles nunca imaginaram que seu apelo à revolta fosse atendido de modo tão explosivo. A última coisa que eles queriam era um levante popular não controlado, dividindo o país segundo linhas étnicas e religiosas, espalhando a instabilidade pela região e aumentando a influência do Irã.



Enquanto a revolta ainda ardia, o chefe da diplomacia americana, James Baker, explicava: “Não está em nossos planos hoje apoiar ou dar armas a esses grupelhos que se levantaram contra o governo estabelecido. Nós não queremos ver formar-se um vazio político no Iraque. Nós queremos ver preservada sua integridade territorial. E isso é o que pensam também os partidários da coalizão”. Hoje, Roland Dumas admite: “Saddam dominava os iraquianos com métodos extremamente brutal, que nós não tolerávamos, mas era, como se diria, a realpolitik”. E o chefe do Estado-maior francês na época, Maurice Schmidt, também confidencia: “Naquele momento, nós preferíamos um tirano a um poder dos religiosos”. Os aliados então deixaram os helicópteros e blindados de Saddam Hussein dizimar os rebeldes. Nós encontramos em Bagdá sobreviventes desse massacre. Eles contaram que tropas americanas estacionadas no sul do Iraque recusaram-se a deixar-lhes armas e víveres. Essa acusação é confirmada por um veterano das Forças Especiais americanas, Rocky Gonzales, presente no sul do Iraque em março de 1991: “Os insurgentes chegavam em nosso perímetro com queimaduras químicas no rosto e nos lugares onde a pele tinha sido exposta. (…) Nós tínhamos ordem de recusar qualquer pedido de ajuda, fosse militar ou outra. Assim, não podíamos fazer nada. Eu dizia a eles: o presidente Bush disse que a guerra acabou”.



Os americanos não foram somente espectadores. Em certos casos, ajudaram as tropas iraquianas a esmagar o levante. Sobreviventes da insurreição contam foram impedidos por tropas americanas de subir até Bagdá para derrubar Saddam Hussein. Um deles, e não é o único, afirma: “Um dos soldados americanos ameaçou matar-nos se não fizéssemos meia-volta”. Todos esses testemunhos são confirmados pelo general Najib Al Salhi, encarregado por Saddam Hussein de reprimir a insurreição na região de Bassra: “Em suas barreiras, os americanos desarmavam os insurgentes que queriam atacar-nos. Eu até os vi, em Safwan, impedir os insurgentes de chegar às nossas linhas”. Os americanos destruíram também grandes estoques de armas do exército iraquiano em derrocada. “Se nós tivéssemos podido apoderarmo-nos dessas armas, o curso da história teria mudado em favor do nosso levante”, confidencia um dos insurgentes, “pois Saddam, naquele momento, não tinha mais nada”.



Embargo mortal
O massacre mais mortífero jamais cometido no Iraque não foi obra de Saddam Hussein, mas do Conselho de Segurança das Nações Unidas: as sanções impostas ao Iraque depois da invasão do Kwait. Proibindo o comércio com aquele país, essas sanções teriam provocado em doze anos a morte de 500 mil a 1 milhão de crianças, segundo números das Nações Unidas. Coordenador humanitário da ONU no Iraque, o irlandês Denis Halliday demitiu-se em 1998 para não ter que continuar a aplicar o programa de sanções, que ele qualificou de “genocídio”. Ele afirma que o comitê de sanções das Nações Unidas arruinou o sistema iraquiano de saúde, impedindo-o de importar equipamentos de higiene, saneamento e medicamentos vitais, sempre com a mesma justificativa: esses produtos poderiam, de uma maneira ou de outra, servir para fabricar armas de destruição em massa.



Em 1990, o objetivo das sanções era simples: forçar o Iraque a se retirar do Kuwait. A tática fracassou e a guerra aconteceu. As sanções poderiam ter sido suspensas, mas as Nações Unidas decidiram mantê-las, atribuindo-lhes um novo objetivo: pressionar o ditador para que ele abandonasse suas armas de destruição em massa. As medidas atingiram principalmente os habitantes, a começar pelas crianças. Em 1995, uma jornalista americana perguntou à embaixadora americana nas Nações Unidas, Madeleine Albright, se a manutenção das sanções valia o preço da morte de 500 mil crianças iraquianas. A resposta foi edificante: “É uma escolha muito difícil, mas achamos esse preço vale a pena, sim”.



Com o passar dos anos, ficou evidente que o verdadeiro alvo das sanções não era o armamento iraquiano, mas o próprio ditador. Como explica Denis Halliday, o raciocínio era o seguinte: “Se você ferir o povo iraquiano e matar seus filhos, ele vai levantar-se encolerizado para derrubar o tirano”. Durante doze anos, os Estados Unidos tentaram fazer funcionar essa teoria. Em 1991, seus aviões de guerra haviam bombardeado sistematicamente a rede de água, os esgotos, estações de filtragem, assim como as centrais elétricas. Ao longo de toda a década seguinte, os iraquianos tiveram que viver sem água potável. “Epidemias de tifo, todos os tipos de doenças veiculadas pela água não-potável apareceram de maneira fulminante e isso foi devastador”, relata Halliday. Agindo assim, os americanos sabiam que iriam provocar milhares de mortes? Um documento secreto do Pentágono, datado de 1991, confirma isso claramente. Esse estudo secreto, friamente intitulado As vulnerabilidades do tratamento da água no Iraque, calculava que a demolição da rede de água iria provocar mortes em massa e epidemias.



Durante todos os anos em que se essas doenças se propagaram, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, em Nova York, dirigiam o comitê das sanções. Durante doze anos, os aliados utilizaram o embargo para bloquear a importação de peças que serviriam para consertar a rede de água. “E o povo iraquiano, no fim, em vez de jogar a responsabilidade das sanções em Saddam Hussein, o fez sobre os Estados Unidos e as Nações Unidas, tornados responsáveis pela dor e sofrimentos que essas medidas trouxeram para suas vidas”, concluiu Halliday. Com o passar dos anos, os dirigentes americanos deram-se conta de que sua teoria, do mesmo modo que as sanções, ineficazes, matavam milhares de iraquianos. Apesar disso, continuaram a aplicá-las. Por quê? “Não havia outra solução melhor”, confessa simplesmente o representante americano que defendia as sanções na ONU, Thomas Pickering. As sanções finalmente tiveram fim com a queda de Saddam Hussein, em abril de 2003. Depois disso, mais de um ano se passou. Nem a rede de água, nem o sistema de esgoto, nem a infra-estrutura hospitalar foram reparados. Crianças e jovens iraquianos, doentes e moribundos por causa da ausência de água potável, continuam a encher os serviços do hospital pediátrico de Bagdá e todos os hospitais pelo país.