Chacina da Lapa, 30 anos: ''Valeu a pena, nosso país é livre''

Por Priscila Lobregatte



Em ato realizado na noite desta segunda-feira, dia 11, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond, mortos há 30 anos na Chacina da Lapa, foram homenageados por mais de 300 pessoas que lotaram um dos auditório

Quando Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram executados pelos agentes da ditadura, a pequena casa da rua Pio XI, na Lapa, estava praticamente vazia, João Batista Drummond já havia sido morto nos porões do DOI-CODI e o Partido Comunista do Brasil sofria mais um dos duros golpes que enfrentou nestes quase 85 anos de existência.




Trinta anos depois, o Brasil está preste a ingressar no segundo mandato de seu primeiro presidente operário. A democracia se fortalece, o PCdoB aparece como um dos partidos mais respeitados da cena política nacional e, após vencer mais uma batalha – contra a cláusula de barreira – realizou na capital paulista, na noite desta segunda-feira (11), um ato que reuniu mais de 300 pessoas na Assembléia Legislativa de São Paulo.




A homenagem aos três dirigentes assassinados pela ditadura reuniu sobreviventes da Chacina da Lapa, dirigentes comunistas, políticos e lideranças dos movimentos sociais. “Valeu a pena. Nosso país é livre e está procurando seu caminho. Precisamos reverenciar nossa história porque tudo o que temos hoje foi conquistado com muito sofrimento”, disse Haroldo Lima, membro do Comitê Central do PCdoB e atual presidente da Agência Nacional de Petróleo. Lima, Elza Monnerat, Aldo Arantes, Wladimir Pomar e João Batista Drummond – todos dirigentes do partido nos anos de chumbo – e os militantes  Joaquim Lima e Maria Trindade, foram presos em 15 de dezembro de 1976, véspera da chacina, e barbaramente torturados.




As homenagens




O ato teve início por volta das 20h. O auditório Franco Montoro, da Alesp, já estava lotado de comunistas de diferentes gerações, simpatizantes do PCdoB e militantes de outros partidos e organizações de esquerda. Adalberto Monteiro, secretário nacional de Formação do PCdoB, deu início à sessão lendo mensagem do teatrólogo Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, escrita em 1977, quando participou de evento em Lisboa em homenagem aos comunistas. “Fico feliz sabendo que vocês estão ativamente lembrando essa data. Não podemos esquecer nunca o passado terrível porque é, na sua análise no presente, que poderemos construir o nosso futuro e não passivamente esperar por ele”, dizia o texto.




Em seguida, entrou em cena o coral Cantafro, regido pelo maestro Maya-Maya. No repertório, três canções que simbolizam o período da ditadura. A trilha escolhida foi Sabiá (de Chico Buarque e Tom Jobim), representando a luta pela Anistia;  Vai passar (de Chico Buarque e Francis Hime), que marca o fim da ditadura e Sangue em Flor (grupo Vozes na Luta, de Portugal), feita para ato realizado em 1977, em Lisboa, em homenagem aos mortos e presos naquele 16 de dezembro de 1976.




Representando diferentes gerações e segmentos da luta dos comunistas, Dyneás Aguiar, vice-prefeito de Campos do Jordão,  Nádia Campeão, presidente do PCdoB/SP e Marcelo Brito da Silva, o “Gavião”, presidente da UJS, apresentaram notas biográficas de Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond, respectivamente.




Os sobreviventes




Quando Aldo Arantes, membro do Comitê Central do PCdoB, ocupou a tribuna, o auditório, em silêncio, parecia reverenciar um daqueles que por pouco não fora executado pelos policiais militares. “É muito emocionante rememorar a Chacina da Lapa. Aqueles homens representavam três gerações com algo em comum: o ideal e o compromisso com a luta, até as últimas conseqüências”, disse Arantes, lembrando dos dirigentes mortos.




Criticando o individualismo incutido nas novas gerações pelos valores neoliberais, Arantes declarou que “é preciso reacender o fogo da luta pelo socialismo”. Para ele, essa luta sofreu revezes profundos no campo ideológico especialmente após a queda da experiência soviética, “mas o partido soube reafirmar o socialismo, sem deixar de apontar os erros das experiências comunistas, indicando o caminho do socialismo renovado, que se dará com a superação das desigualdades”. Ao finalizar sua intervenção, Arantes disse que, apesar de todo o sofrimento da luta clandestina, “refaria o mesmo caminho se fosse necessário”. 




Em seguida, Haroldo Lima relatou sua experiência. “No momento em que a Chacina aconteceu, a ditadura já entrava em processo de declínio após 12 anos no poder. (Os militares) liquidaram a Guerrilha do Araguaia, mas perceberam que o núcleo do PCdoB ainda estava em atividade. E para a repressão aquilo era inaceitável”, explicou o dirigente.




O principal objetivo dos militares era matar João Amazonas, presidente do partido que, no entanto, estava na Albânia. Na ocasião, os militares contaram com a ajuda de Jover Telles, o traidor que passou informações sobre a reunião do Comitê Central do PCdoB, do qual fazia parte. Após a morte de Pomar e Arroyo na casa da Lapa, a polícia montou o cenário para que se passasse a idéia de confronto entre os “subversivos” e militares. “Não havia armas ali. Nossa defesa era agir na clandestinidade”, disse Haroldo. O dirigente lembrou ainda de uma imagem que lhe ficou marcada. Preso, Haroldo recebeu a visita do seu então advogado, o jovem Luiz Eduardo Greenhalg, que lhe mostrou – e enfrentou – o cruel delegado Sérgio Fleury. “O homem trabalhava com a arma em cima da mesa. O instrumento dele não era a caneta, era o revólver”, recorda.




Encapuzado, foi levado para o Rio de Janeiro, após sessão de espancamento. No avião, pôde reconhecer as companhias e Aldo Arantes e Elza Monnerat. “Ela dizia ‘Covardes! Covardes’, com um tom de voz pungente, mas inconfundível. Sabia que era a Elza”. Naquele momento, explicou Haroldo, ele se dera conta de que outros companheiros estavam passando por situação semelhante à sua. Um dos torturados de Haroldo chegou a dizer que o PCdoB acabara. “Então, eu disse ‘acabou nada! O senhor não sabe o que está falando”, disse, lembrando que nem a Guerrilha do Araguaia, nem a Chacina da Lapa, foi capaz de apagar do mapa político brasileiro o nome do PCdoB. “Por isso, quando da instituição da cláusula de barreira, eu sabia que o partido não acabaria”, declarou, ovacionado, o dirigente comunista.




Ao iniciar sua participação no ato político, o deputado federal pelo PT/SP, Luiz Eduardo Greenhalg, que aos 26 anos corajosamente defendeu os comunistas contra os desmandos da repressão, recordou o estado precário em que encontrou Aldo Arantes e Haroldo Lima nas dependências do DOI-CODI, após as sessões de tortura. “Aquele processo, pela primeira vez, pôs o DOI-CODI na defensiva”, declarou, lembrando de seu papel como advogado de presos políticos nos anos de chumbo. Segundo Greenhalg, os acontecimentos que levaram à reorganização do PCdoB também contribuíram para que se organizasse a resistência contra o regime e o movimento pela redemocratização do país, bem como para a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia. “É importante que todos os brasileiros, de todos os quadrantes, lembrem desses heróis e que essa lembrança sirva para que se reafirmem seus compromissos na luta por um país melhor”.




Michéas de Almeida, o “Zezinho do Araguaia”, que participou da guerrilha exterminada em 1972, leu, emocionado, uma mensagem em que homenageia aqueles que tombaram na Lapa e no Araguaia. “Este ato não é um aniversário saudoso ou melancólico. Ele representa o reencontro do elo perdido entre o partido e a aliança operário-camponesa. Os camponeses e operários são sustentáculos do desenvolvimento norteado pela Teoria Científica Revolucionária”.





Os dirigentes comunistas




“Este ato tem, para nós, um valor simbólico de grande relevância. É o resgate de um período histórico da jornada pela democracia. É importante lembrar, e mostrar para as novas gerações, o que foi a luta pela democracia em nosso país. E fatos como a Chacina da Lapa não podem ficar escondidos sob o véu do silêncio”. Com estas palavras, o presidente do PCdoB, Renato Rabelo, deu início às intervenções. Conforme salientou o dirigente, “a trajetória do PCdoB é marcada pela luta pela sobrevivência, pelo direito de participar da luta política do país”.




Rabelo explicou que o baque sofrido em dezembro de 1976 obrigou o partido a reorganizar sua direção, mas não pôs fim à legenda comunista. “Hoje, temos um presidente operário e sua reeleição é um grande passo para a consolidação da democracia”, disse, lembrando que o atual período, em que os partidos podem participar ativamente da cena política nacional, é resultado da luta de milhares de pessoas pelo direito à democracia. Por isso, enfatizou, “a vigência da cláusula de barreira, num momento altamente democrático da vida brasileira, era um paradoxo. Como disse o ministro do STF, Eros Grau, a cláusula tinha sabor de totalitarismo”. O presidente do PCdoB ressaltou ainda que a cláusula não acabaria com o PCdoB, como alguns setores chegaram a cogitar citando, inclusive, a fusão como alternativa. “O PCdoB só vai desaparecer, como colocou Marx, no comunismo. Somos um partido forte, em expansão, que honra nossos heróis”, disse, sob os aplausos da platéia.




O presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, recordou o impacto que teve com notícia da Chacina da Lapa. Na ocasião, Aldo era jornalista num diário alagoano. Um dos redatores, conforme seu relato, redigia, chorando a notícia, posteriormente editada com o intuito de amenizar o fato. “O termo ‘assassinado’ teve de ser substituído por ‘mortos’. Era um tempo em que até as palavras eram proibidas”. Para ele, “pessoas que se expuseram a um sacrifício, como eles se expuseram, só podem ter em mente uma causa de muito valor”. Finalizando sua fala, que fechou o evento, o primeiro presidente comunista da Câmara dos Deputados ressaltou que “o sangue derramado na Lapa foi honrado pelo povo brasileiro. Hoje, nosso país vive num ambiente de liberdade em que os comunistas podem lutar fora da clandestinidade”.





Os movimentos sociais




Dentre aqueles que compuseram a mesa do ato político, dois eram representantes dos movimentos sociais. Quintino Marques Severo, secretário-geral da CUT, declarou que “se hoje podemos homenagear esses companheiros é porque muitos lutaram pela democracia. Acredito que a cada dia o povo vai tomando mais consciência do caminho que precisamos percorrer para se atingir a democracia plena”. Para isso, explicou, “precisamos enfrentar algumas ditaduras que ainda existem: a da grande mídia, a do sistema financeiro e a das oligarquias nacionais”.




João Paulo, representando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, disse que o MST “é fruto das lutas do povo pela democracia”. Segundo ele, ao longo da história,  “a burguesia soube aproveitar os momentos de refluxo das lutas sociais para reagir contra a democracia”. Reconhecendo o papel dos dirigentes comunistas mortos na Chacina, João Paulo reafirmou  “o compromisso político de dar continuidade à luta desses heróis”.




Entre os participantes da mesa estavam o presidente do PCdoB, Renato Rabelo; o presidente da Câmara, Aldo Rebelo; o secretário de Formação, Adalberto Monteiro; os dirigentes comunistas Aldo Arantes e Haroldo Lima; o deputado federal Luiz Eduardo Greenhalg (PT/SP); o deputado estadual Ítalo Cardoso (PT/SP); o deputado estadual Nivaldo Santana (PCdoB/SP); o presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República, Marco Antônio Barbosa; o conselheiro da Comissão de Anistia, Egmar José de Oliveira; o secretário-geral da CUT, Quintino Severo e o dirigente do MST, João Paulo.


Para conhecer mais sobre a Chacina da Lapa:


Preservar e ampliar a democracia conquistada pelas jornadas heróicas – Adalberto Monteiro

Chacina da Lapa: que as novas gerações saibam a dimensão da luta pela liberdade – Renato Rabelo

30 anos da Chacina da Lapa: no Brasil de Geisel ainda se torturava e se matava
Augusto César Buonicore

A Chacina da Lapa e a luta democrática – Aldo Arantes e Haroldo Lima

Quem foi Pomar, Arroyo e Drummond

Elza Monnerat – nota do Secretariado Nacional do PCdoB, de 13 de agosto de 2004

Sangue em Flor – letra de música feita em homenagem aos dirigentes assassinados na Chacina da Lapa