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Italo Bianchi: Meu admirável avô

Creio que quase nenhum escrevinhador de crônicas escapa de explorar, uma vez ou outra, algum período ou algum episódio da sua vida privada. Acho que nada há de presunçoso nisso, pois quem está acostumado a narrar e interpretar momentos ou eventos que acon

Milão, meados da década de 30. Escola pública, classes separadas de meninos e meninas. Esse menino aqui entrando no ginásio, criando novas amizades, os professores indagando o perfil familiar de cada aluno, servindo-lhes, geralmente, para fazer uma apologia da importância social da profissão do chefe-de-família, fosse ela humilde ou de status relevante. Até que chegou a minha vez. Eu já estava preparado para isso, sabendo que a descrição das atividades profissionais do pessoal lá de casa, por ser um tanto sui generis, provocaria uma estranheza mal disfarçada no inquisidor e bastante curiosidade por parte dos alunos meus colegas (a exceção de dois amigões, o filho de um marceneiro e o filho de um advogado, pois freqüentávamos reciprocamente nossas residências para fazer as lições de casa). O meu depoimento sucinto, mas que em seguida fui obrigado a estender um pouco, dizia que meu pai era escultor, professor da Academia de Brera, minha mãe cantora lírica, mas no momento silenciosa, por razões de saúde, limitando-se a dar lições de piano, e meu avô paterno – este sim, uma figura incomum, surpreendente – exercia uma profissão quase desconhecida. Ele era filólogo, especializado em sânscrito. Não preciso dizer que tive que explicar o que significava filólogo e que bicho era esse tal de sânscrito.


 



Mas agora vou pular as indagações da classe e vou falar diretamente com o meu leitor. Não há dúvida que a composição cultural (vamos chamá-la assim) do meu pequeno núcleo familiar e, possivelmente, a herança de alguma combinação genética influenciaram bastante minha formação entre os meus 10 e 15 anos. Foi durante esse período que convivi com meu admirável avô, diferente dos avôs de qualquer outro menino que eu conhecesse, e que terminou em 1939 quando ele morreu e eclodiu a Segunda Guerra Mundial.


 


Pergunta óbvia: por que estou fazendo desse fato o tema de uma crônica? A quem pode interessar a narrativa dessa circunstância? Muito bem. Vou tentar explicar, vou tentar passar o significado emocional e cultural dessa convivência apaixonada que aconteceu nos anos 30 do século 20 entre um pré-adolescente e um velho sábio que pertencia física e ideologicamente ao século 19. Isto é, entre um meninote que vivia sua contemporaneidade ao mesmo tempo em que mergulhava no universo de um intelectual que era talvez uma das últimas personalidades admiradas quase secretamente no seu tempo, que eram os eruditos em algum setor do conhecimento, gente capaz de dedicar uma vida inteira a um estudo muito específico para    despejá-lo, então, no mundo acadêmico, abdicando de qualquer outra atividade que pudesse produzir alguma fama e popularidade.


 



É isso aí. Resumindo resumidissimamente a história, meu avô Giuseppe Bianchi dedicou a vida toda ao estudo do sânscrito, passando longos períodos na Índia, pesquisando as fontes desta língua morta – mais antiga, mas substancialmente menos morta que o latim e o grego – já que forneceu os alicerces de todo um grupo de idiomas indo-europeus. Outros tantos períodos, ele passava na Europa onde, como professor itinerante, dava palestras e cursos em universidades sobre esta língua de origem brâmane preservada durante 500 anos pela tradição oral, mas que adquiriu uma forma escrita um milênio a.C. O leitor pode imaginar quantas situações aventurosas meu avô contava, relativas aos seus estágios naquelas bandas exóticas do mundo, mas nada foi mais emocionante para mim do que examinar algumas reproduções de textos gravados naquela língua misteriosa, que mais pareciam composições de traços caligráficos criados para expressar harmonia e elegância. Decidi, então, copiar diligentemente numa prancha grande, uma espécie de alfabeto (na realidade, sinais que designam agrupamento de sons), tendo como referência uma pequena reprodução de má qualidade. Infelizmente, nas andanças da minha vida, aquela prancha se perdeu. Uma pena. Se hoje ela estivesse ainda comigo, a penduraria na frente da minha cama para, ao acordar de manhã, poder relembrar sempre os primeiros passos do longo caminho do conhecimento que, por modesto que seja, eu acredito ser o melhor iluminado para nos dar o prazer de viver.