Necrofilia

Não fosse o costume de Ramiro na remoção de esqueletos, depois de escavar covas, deparar com o estranho entre os túmulos teria sido resultado da erosão em uma cova rasa, deixando escapar o morto que ainda não dera o último suspiro. Ramiro, andando no corredor comprido do cemitério, entre blocos de gavetas tumulares de um lado e de outro, apoiando no ombro direito o cabo da enxada, deu de cara com o estranho.

O homem tinha bermuda com beiras em fiapos; a cor há muito desbotara e confundia-se com o cinza descaído dos blocos de túmulos. A camisa aberta tinha a mesma ausência de cor. O rosto magro, moreno, com narinas acesas feito orifícios de escape, salientava-se sob os cabelos estirados com esforço; logo abaixo do cocuruto os cabelos se eriçavam iguais à crosta de um cupinzeiro. O homem tinha perto de sessenta e dois anos, apoiava o corpo magro numa bengala de alumínio com encosto para o braço. Um dos olhos, o esquerdo, sumira, deixando o oco do olho coberto por um emplastro redondo, com uma largura tão miúda quanto a órbita invisível.

Sem se assustar, arrastando devagar as pernas curtas e sem queixa no rosto largo por conta do tronco grosso feito um caixote, Ramiro estacou:

– Não é uma alma penada. Mas pelo rosto curtido, o olho sumido e o corpo se acudindo num gancho de alumínio, bem que vosmecê se parece com um desemparedado escorraçado da sepultura porque não deu ouvidos à última oração dos parentes.

– Estou morto há cinco anos…! – desentranhou o estranho.

Carece dizer que às cinco da tarde, a sombra pardacenta sob os oitizeiros entre um bloco e outro de gavetas, em muito encobria a rabugice no rosto do estranho; talvez ele se valesse do crepúsculo para tornar-se ainda mais infausto.

– Fui enterrado nesta gaveta – apontou para o túmulo do meio, o de baixo, num bloco com seis gavetas, três em cima e três em baixo. – Hoje, o que o senhor está vendo, é o que resta de minha mortalha.

O coveiro mirou-o de cima a baixo, viu que o homem não estava descalço nem usava alpercatas, tampouco um par de sapatos outrora de couro lustroso mas àquela altura com o solado e o couro estropiados. Tinha, amarrados com força aos pés ainda ágeis, um par de tênis escuros com os bocais cobrindo os tornozelos; empoeirados e úmidos, como se o homem tivesse pisado num charco escuro, da mesma cor dos lados dos tênis.

– Não digo que vosmecê esteja completamente vivo, porque seus olhos não têm lume e de sua boca sai um fedor de enxofre. Mas o que lhe resta de vida, é o sopro de um defunto mal comido pelos vermes. Vosmecê tem parte com quem aqui no cemitério?

O homem voltou a apontar para a gaveta. Ramiro olhou para baixo. Sempre passava por ali, mas nunca se dera o trabalho de memorizar o nome de algum defunto ou defunta, a não ser que, na rua em que morasse, alguém pedisse para verificar o paradeiro de um defunto sumido. Ramiro olhou e distinguiu as letras escuras se apagando na fronte da gaveta – Severina Augusta de Lucena Borges – 1960 – 2010 – Deixou viúvo o sargento do Corpo de Bombeiros – Zoroastro de Lucena Borges.

– Como o senhor tá enterrado aqui? O senhor baba feito visgo de verme roedor. Mas o zumbido de sua fala, que não dói nos ouvidos mas se entranha no juízo de quem ouve, ainda assopra que nem agouro vindo do fim do mundo.

– Vá nos assentamentos do cemitério. Meu nome consta como morto.

– O senhor é mesmo uma praga. Vá embora daqui. Isto aqui é um lugar de repouso. Respeite o sossego de Dona Severina Augusta.

– Severina Augusta era minha mulher. Eu sou o sargento do Corpo de Bombeiros que ela deixou viúvo.

– E está vivo ainda! Arre égua!

Ramiro seguiu o caminho do corredor, agora empunhando a enxada porque tirara-a do ombro para melhor conversar com o estranho. Às seis da noite, voltou pelo mesmo caminho. Não encontrou o suposto morto, mas sorveu em frente ao túmulo de Severina Augusta de Lucena Borges, um cheiro pestilento de carnes não apodrecidas, mas de uma sujeira há muito entranhada em tecidos da pele humana ou de andrajos.

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