Periferia chora

Aviso: Se quiser ver os pobres se matando, um preto atirando no outro, ou a desgraça da periferia. Você está no lugar errado. Não se iluda com o título. Caso contrário, boa leitura!

É sabadão, com muita chuva, Alan mal chegou da pelada, tomou um banho, deu um beijo na testa de sua mãe, colocou um capacete na cabeça outro no braço. Foi buscar sua mina. – Volto já! – Gritou do portão para sua coroa.

 

Coral de alunos da Orpas  

Eu estou no ponto de onibus, na avenida ibirapuera. Origem: Um debate em São José dos Campos sobre a consciência negra organizado por um galego chamado Diego. Tem gente que estranha um branquelo falando e desenvolvendo atividades para a melhoria do povo negro. Eu estranho é negro que nessas horas amarela. No dia anterior, data de morte de Zumbi, participei da Marcha em São Paulo e falei com Sérgio Vaz, GOG, Markão do DMN, tudo registrado (neste vídeo). Meu destino: é o Céu Vila Rubi no extremo sul da zona sul de SP.

No celular acionava o Juka "Cola lá que é perto da sua quebrada. Também não sei direito o que vai rolar, mas é um tal de troféu Orpas."

Juka é um cara pacato pra quem vê. Rapaz comum; mora na periferia, canta rap, leciona. Pode acreditar. O mano é professor de filosofia. Na escola o professor José da Silva desafiou a mulecada:
– Façam o trabalho sobre os pensadores clássicos, em letra de rap.
Assim surgiu as rimas sobre Socrates, e não era o jogador de futebol.

A chuva que Deus mandou não me empediu de colar na fita. Eu e as mais de 300 pessoas que lotavam o auditório nobre do Céu que fica depois de Interlagos.

Aqui é o Céu

Sou recebido com tratamento VIP, levado à primeira fila junto com Cocão, preto Will, Lucas e os parceiros. Daniel, culpado por aquilo tudo, assim que me viu me chamou para atrás do palco. No caminho alguem grita: – Daniel, Daniel. – Ele se vira pra mim e diz que quer me apresentar para mim (!)
– Toni, este é o Toni. – Falou Daniel me apresentando uma menina linda de peruca black power, oculos escuros, roupa larga e ginga de malandro.
Eu peguntei como se chamava. – Meu nome é Alessandra. Oh, dá hora te conhecer! – Ela falou com um sorriso que descaracteriza o personagem.

A mulecada em volta ia agromerando e falavam um para o outro: "Olha lá o Toni C.", "É o Toni C.", e começaram a ensaiar um coro "Toni C., Toni C.".

Saí de perto daquelas crianças, encabulado. Como retribui um bagulho desses?

Logo começou o evento. Noite de gala na favela, Daniel avisa que o troféu Orpas é o "Oscar de pobre".

Enquanto os jornais só aparecem por aqui para falar de troca de tiros. O crime que praticado alí é troca de prêmios, de carinho, afeto.

Fui chamado ao palco para dar uma idéia. Disse que falaria com as crianças, a maioria por lá. Afinal, falo o tempo tempo todo com adulto e adulto é chato pra caramba.
– Adulto é chato ou não é?
Gritaram todas de uma vez:
– Ééééééééh!
Criança não mente. Falei e voltei para meu lugar para ver e aplaudir os premiados.

Uh Cooperifa!

Agora, a tão aguardada homenagem ao Sarau da Cooperifa. Recriaram o bar, encenaram o começo de tudo, Sérgio Vaz (Taís) em cena é monstro, emociona, pitbul, como o original. O silêncio no Céu é igual ao do Zé.

Cocão (Ricardo) entra em cena ao som de Negro Drama. Daria um filme.

Marcio Batista (Bruno), Seu Lorival (Wendel), Zé Batidão (Cauê), Dona Ediria e Rose (Tainá), todos em miniatura com o dom, o talento e a verdade que só o favelado tem. A Broadway que se cuide, sou mais os brothers daqui.

Tanto que também estava lá. Ou melhor a Alessandra que representou… Forgado, melhor que o original, eu nem merecia.

Pensando bem, porque não?

Não sou modelo pra ninguêm, me seguir só mesmo no twitter (toni_c_). Mas qualquer Latino ou a Xuxa vira idolo pra mulecada. Também o traficante da quebrada. Trabalhador, estudante, escritor, poeta. É boas referências pra mulecadinha.

Termina o Sarau. Fica só Alessandra em cena, ou melhor eu. Já nem sei mais… brigando com o onibus que não vem. Também com o esse Kassab, pensei da platéia. O busão chega, os muleques interpretam uma cena que narrei aqui em artigo há quase cinco anos. Não vou apelar para a memória de ninguêm, eu falava das longas viagens de trem quando: "Sou revistado com os olhos enquanto mexo na minha própria bolsa. Tiro de lá um livro, o medo de uns parece desaparecer de outros aflorar. " Encenam aquilo o que assisto cotidianamente.

Loko! Tudo isso de graça, na periferia! É tudo nosso!

Mais prêmio

Cada troféu mil motivos, alí todos são merecedor. Daniel chama ao palco Domênica, música triste no teclado, ela sobe chingando Daniel e ele dá o troco:
– Eu peso nessa negâ dês de quando ela era pequena. Falou pra mim que queria se médica. Eu perguntei pra ela se conhece algum médico na quebada. Sabe porque não tem ninguêm por aqui que se formou em medicina Domênica? Deve ser porque não é fácil, né meu!? Vai ter que ralar muito.

Domênica hoje tem 17 anos, continua ralando… Conseguiu bolsa em colégio caro, mas pra ser médica ainda tem muito pela frente. Agora tem também um troféu Orpas e esse relato público a mais de responsa. É como diz o lema da entidade "Sonhar não paga imposto".

A música triste aumenta. Dessa vez a emoção será em par. Keila e Débora, irmãs que sempre se atrasam, mas não faltavam às aulas. Num dia Daniel deu carona e descobriu o que chama de maior caso de superação. As duas moram a mais de 25 kms da Orpas, sem dinheiro para o ônibus o triste não era pedir para passar por baixo, era o esporro do cobrador que ainda faziam elas irem até o ponto final, ai dessidiram ir a pé. Explicado o atraso.

Lagrimas era como a chuva daquela tarde. Chorrava com força de todos os lados. Até crocodilo se estivesse nesta festa choraria. Choravam todos, por causa da música triste do teclado, e por felicidade.

Termina o prêmio, me encontro com Juka. Que assim como eu sente um misto de alegria e tristeza. Ele diz que adorou o teatro, mas perdeu o comecinho. Quando vinha para cá, do ônibus viu um monte de gente familiar, amigos, vizinhos numa agromeração. Deu sinal, desceu do onibus e foi ver o que era. Alan, 21 anos, vinha com a moto. Na garupa sua mina. A pista molhada, um carro, fechada. A moto derrapou, se chocou com uma árvore, a mina está no hospital.

Juka não deixou de ir ao prêmio Orpas, mas agora iria voltar para dar apoio à familia de Alan, que também chorou muito naquela noite chuvosa de sábado.

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