João Alberto: “Quem cala sobre teu corpo consente”

As tragédias movem as sociedades – ao comover a todos, as tragédias despertam a indignação, levando ao protagonismo maior e mais acentuado na luta contra a barbárie.

A onda de indignação que provocou parece inscrever nessa categoria de acontecimentos o assassinato do homem negro João Alberto Silveira Freitas (o Beto), operário, soldador, a socos e pontapés, pelas mãos bestiais do racismo , por funcionários da segurança de uma agência do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, na noite da quinta-feira (19).

O assassínio de um homem negro pela polícia, o feirante Robson Silveira da Luz, em uma delegacia de polícia em São Paulo, sob tortura, em 18 de junho de 1978, esteve na origem do reaparecimento à luz do dia da luta antirracista organizada – a formação do Movimento Negro Unificado, que, naquele ano, reuniu entidades da luta antirracista de todo o Brasil, levando ao fortalecimento – ainda sob plena ditadura militar de 1964 – da luta contemporânea pela igualdade racial. E criou o contexto em que a celebração da memória de Zumbi dos Palmares tornou o dia de sua morte, em luta pela liberdade, em 20 de novembro de 1695 – data que o movimento negro transformou no Dia da Consciência Negra.

Nos EUA, o assassinato bestial, pela polícia, do negro George Floyd, em 25 de maio de 2020, está também na origem da retomada, em larga escala, da luta contra o racismo e a violência policial – expresso pela palavra de ordem Black Lives Matter (BLM), bandeira que ganhou o mundo, e cabe como uma luva, contra a ação e a barbárie intolerantes do neofascismo – vidas negras importam!

É nessa lista triste, infeliz e sangrenta que o assassínio do Beto, em Porto Alegre, se insere.

A extrema-direita, pela voz do presidente Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, insiste em supor que não há racismo no Brasil. O presidente Bolsonaro diante de uma comoção que se espraia pelo país, que ressoa no mundo, reage com cinismo e ironia: “Como homem e presidente sou um daltônico: todos tem a mesma cor.”

Os dois repetem o mesmo mantra pobre e miserável – a tese conservadora tradicional de que a denúncia do racismo é importada dos EUA e tem o objetivo de dividir os brasileiros, opondo negros aos brancos. A fragilidade boçal dessa tese vem do fato de não reconhecer que não é a luta contra o racismo que divide o Brasil, mas o próprio racismo que tensiona e pressiona negativamente a unidade do povo brasileiro, herança nefasta de mais trezentos anos de escravidão.

Esta brecha entre os brasileiros só será soldada justamente através da luta contra o racismo e o reconhecimento da igualdade plena radical entre todos os brasileiros, com o respeito a seus direitos sociais, políticos e econômicos, para que possam se reconhecer como membros iguais de uma mesma pátria, a brasileira. Hoje, não são – e esta chaga permanece desde os tempos da escravidão.

Para os racistas brasileiros – como em todos os lugares – vidas negras não importam – uma verdade cruel confirmada mais uma vez na véspera deste Dia da Consciência Negra, pelo assassinato bárbaro e brutal de João Alberto Silveira Freitas, o Beto.

É preciso reagir, protestar, é imperativo a punição rigorosa daqueles que espancaram covardemente João Alberto até a morte e de todos que foram diretamente, ou indiretamente, coniventes. Faz parte do processo civilizatório inconcluso do Brasil , é indispensável para construir a união do povo, fortalecer mais e mais a luta antirracista, a jornada secular pela igualdade entre brancos e negros.

Neste momento, diz muito, os versos de uma canção de Milton Nascimento:

“Quem cala sobre teu corpo

Consente na tua morte

Talhada a ferro e fogo

Nas profundezas do corte”