O assassinato de Marielle e a fronteira entre Estado e crime

Pode-se dizer que é fácil demais matar alguém no Brasil. Que a vida vale quase nada em algumas localidades deste país, com pessoas sendo trucidadas sem mais nem menos. E que homicídios são moedas de troca nas relações entre os grupos e organizações do submundo, da criminalidade generalizada. Pode-se dizer, ainda, que há mazelas demais regendo e conflagrando o convívio social, obstruindo o caminho do diálogo, da lógica, do argumento, do respeito.

Pode-se dizer muitas outras coisas para explicar as assustadoras cifras da violência cotidiana no país, mas o determinante, nesse momento, é contestar essa ideia obtusa de usar a violência para debelar a violência. Ela é a alavanca do que se convencionou chamar de “crime organizado”, que enverada inclusive pelo descaminho da violência política, como se vê nas evidências surgidas sobre os que seriam os executores do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), na cidade do Rio de janeiro, e do motorista Anderson Gomes.

Esse crime bárbaro precisa ser apurado com rigor. As investigações devem prosseguir até chegar aos mandantes. É uma exigência que se impõe naturalmente. As informações sobre a prisão de dois ex-policiais militares, contudo, suscitam reflexões mais de fundo, uma compreensão estrutural das causas da violência. Ela começa pela “coincidência” — segundo a promotora Simone Sibílio — de um dos acusados, Élcio Vieira de Queiroz, morar no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro, na Barra da Tijuca, e aparecer ao seu lado numa fotografia tirada em 2011.

A proximidade entre os acusados desse crime — cujas investigações se arrastam sonolentamente há quase um ano — e o presidente vai além da fotografia e da geografia. Ela é ideológica e impede uma política de verdadeira profilaxia para estabelecer claramente a fronteira entre o Estado e o submundo da criminalidade, condição básica para se desenvolver ações eficientes de combate à violência.

Que a violência precisa ser combatida, não há dúvida. Mas o incentivo à lei da selva como regra social pelo grupo político liderado por Bolsonaro embaralha esses conceitos, como pode ser facilmente deduzido pelo culto às armas e o incentivo à violência — seja ela policial ou particular — do pacote “anticrime” apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.

Um dos princípios do Estado democrático é o de combate à violência, não o seu incentivo. Admiti-lo, obviamente, não significa tolerar o caos e muito menos ser complacente com criminosos. Significa, na verdade, coibir a tendência de alguns de brutalizar seus atos e de exterminar semelhantes. Significa, banir a lógica que o uso efetivo da violência reforça no leque das atitudes humanas. Esse princípio diz respeito ao Estado de Direito, produto da civilização e mecanismo para impedir que ímpetos ou emoções individuais virem leis ou coisa que o valha.

A base desse cenário democrático é o viés humanista, as forças da civilização. A alternativa é a barbárie. É importante considerar que justiça não é vingança e que vingança não é justiça. A bandeira da violência que combate a violência é típica de gente truculenta, que despreza o ponto de vista social e o Estado Democrático. Como é de se esperar, essa conduta abre espaço ao uso indiscriminado da violência, a começar pelo próprio Estado.

Está aí o exemplo do veto do governador paulista João Doria (PSDB) ao projeto de lei que criava o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura de São Paulo (CEPCT) e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura de São Paulo (MEPCT), uma oportunidade perdida para se banir de delegacias e quartéis a tortura e o desrespeito aos direitos civis, legado da ditadura militar. Além de incentivar o submundo regido por leis próprias e que escraviza os brasileiros menos favorecidos pelo Estado.